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Mulheres protagonistas de suas próprias histórias

“Não acredito em inspiração, nem em dom. Essa é uma ideia que só exclui as pessoas, fazendo com que elas não escrevam”.

É assim que a escritora Jarid Arraes iniciou a Oficina de Escrita para Mulheres, que aconteceu em junho de 2016 no Sesc Consolação.

Sua formação em psicologia uniu-se ao ofício da família, o cordel e, desde então, ela trata a escrita e a leitura como poderosos aliados terapêuticos.

“Tudo o que a gente escreve tem muito da gente”, ela diz, com a proposta, então, de que as 17 mulheres presentes na sala coloquem no papel o que desejam – sem regras, sem censura, sem amarras.

A primeira ideia foi a construção de uma personagem, inspiradas nas próprias participantes. Como que em uma ficha cadastral, elas apresentaram suas protagonistas, enquanto podiam refletir mais sobre si, sobre suas experiências, suas angústias e desejos. A leitura do texto em voz alta, com a única obrigação de não justificar a produção, quebrou o gelo e despertou o diálogo entre a turma.
Para Jarid, essas justificativas – a pressa no desenvolvimento do texto, a falta de inspiração, a ausência da prática - que sempre apareceram em outrou cursos, vinham com o propósito de criar um ambiente seguro para um suposto fracasso que poderiam enfrentar. Então, essa é a principal – e talvez a única – regra existente. Assim, o espaço fica pleno para a ajuda, a escuta e a gentileza, o que, consequentemente, reflete em textos mais libertos e francos.  

Essa sequência abriu espaço para a próxima construção, que previu a escrita de narrativas diversas com as personagens, textos que, com a evidente diferença das participantes, ora se apresentaram poéticos, ora cômicos, ora dramáticos.

Acompanhe aqui alguns textos produzidos.

Lia, de Ana Clara Squilanti

Rita, de Janaína Moitinho

Espelho, espelho meu, de Fernanda Beirão

Voando com Orgulho, de Isabel Dias

Opostas, de Margareth Bevilacqua

Goiaba, de Katy Illy

Alanis, de Amanda Cardoso

Magda, de Bárbara Zocal

O poder está na raiz, de Grasiele Maia Brito

Sempre igual, de Leila Rodrigues

Inverno/Viagem, de Valquíria Pimentel

Lia
Pés descalços e peito aberto

Sempre quando acorda e pisa no chão, instantaneamente lembra-se de que amar andar descalça vai acabar te trazendo um resfriado. Andar descalça é quase um ritual, e todas às vezes quando chega em casa, a primeira coisa que faz, logo após dependurar a chave tetra atrás da porta maciça de madeira da entrada, é descalçar os pés. Desde pequena tem uma relação com o chão e, esoterismo ou não, sente como se realmente descarregasse suas energias quando o toca. É como se houvesse algo mágico em sentir o solo, de modo que se enraizasse, mesmo quando nessa conjuntura o solo seja o piso frio do apartamento do 11º andar. Enraizar é algo que anda se questionando muito ultimamente.

O gelado do chão é tão penetrante no inverno que parece embrenhar-se por todas as camadas da pele, até encontrar o espírito. Os seis passos que dá até alcançar a privada do banheiro assemelham-se a caminhar em pequenas agulhas. Ao se sentar e tirar rapidamente os pés do chão, a sensação de frio vai para as costas, pois se esquecera de fechar a porta do banheiro, deixando entrar aquela corrente de ar proveniente lá da janela da varanda.  Quando termina, levanta-se e por vezes se assusta com o rosto pálido no espelho. Vinte e nove anos olhando para esse reflexo e mesmo assim ocasionalmente não se reconhece. Se aproxima da pia, respira fundo para abrir a torneira e enxaguar o rosto, num processo de limpar a cútis e lavar o sono. Escova os dentes observando o cabelo curto amassado, as marcas do travesseiro no rosto, os pelos rebeldes fora do desenho da sobrancelha, e muitas vezes se perde na escovação, sendo necessário recomeçar. Molares, pré-molares, caninos, incisivos. Incisivos centrais superiores um pouco tortos, mostrando que os anos de aparelho ortodôntico foram um pouco em vão.

Ao se arrastar para a cozinha observa fracos feixes de luz entrando pela janela da sala, marcando o amanhecer. Coloca uma xícara de água no fogo no bule de porcelana, uma fatia de pão na sanduicheira, e observa as horas. Já são 06h40. Está atrasada. O bom é que em Julho todo mundo fica mais cinco minutinhos na cama, tornando o metrô às 07h não tão caótico quanto nos outros meses de veraneio.  Volta para o quarto para ganhar tempo enquanto espera a água ferver, e se troca: meia calça, calça legging preta por cima, vestido de lã azul e gorro. A beleza do inverno talvez se resuma também à praticidade, qualquer malha cai bem e já compõe um visual, melhor para ela, que não consegue combinar bem peças de roupa. Sente um cheiro de queimado e volta correndo para a sanduicheira, imaginando o pão queimado, e suspira aliviada ao verificar tudo em ordem, o tostado vinha de um resquício de queijo sabe-se lá de quando. Passa uma generosa camada de manteiga no pão, verte a água fervida em uma xícara com um saquinho de chá de hortelã, e separa o que irá levar para o trabalho a tarde.

“Caralho” – exclama ao perceber que comeram, de novo, suas bananas. Ou há alguém roubando suas frutas, ou a gata da vizinha se metamorfoseou num orangotango e anda invadindo a casa durante a noite.
- Tudo bem, Lia? – questiona uma voz feminina. Ao se virar repara numa figura ruiva ainda vestida de pijamas se espreguiçando na entrada da cozinha.
- Oi Bruna, bom dia. Tudo sim, só o ladrão de bananas que atacou novamente.
- Ê laia. Acho melhor você começar a comprar outras frutas hein. Tipo abacaxi, quero ver sumir - e esboça um sorriso amarelado. Já está saindo?
- Daqui a pouco.  Vou esperar o chá esfriar para toma-lo sem queimar a língua. Quer que eu te espere? Se troca lá, dá tempo.

Bruna concorda, pega um copo d’água na talha de cerâmica e sai apressada em direção ao seu quarto. Ela foi realmente um achado. De todas as pessoas com quem já residiu, a Bruna com certeza é quem mais traz o conforto do que seria morar com sua família. Encostada na pia da cozinha enquanto come, pensa que sem ela, se sentira menos em casa ainda. Casa. Esta aí uma referência que constantemente se questiona se tem. Há anos saiu do interior onde morava, e há quase tantos outros já não se fixa em um mesmo endereço. O que seria casa então? Conceitualmente é um edifício construído para se habitar, na maioria das vezes com no mínimo quatro paredes, portas e um teto, no sentido figurado, casa é aonde você encontra conforto, segurança, onde você se sente bem e é quem você é. Seria o corpo então a casa da alma? Por onde andaria a sua, que não mais encontra seu endereço?

- Estou pronta. Vamos?
- Vamos sim, Bruna. Mas vai na frente. Vou lavar a minha xícara ainda.

Ela olha debochada e solta uma última frase enquanto sai pela porta de entrada - Ok, Lia, mas se apresse  aí, porque você consegue ser mais lerda que esse elevador.

Lava o utensílio e segue a amiga pelo corredor no prédio. Dividem o elevador de porta sanfonada com mais duas pessoas de outros andares. Ninguém fala nada além do costumeiro e educado bom dia até o térreo.
A nebulosidade era tamanha nesta manhã que se não fosse o relógio, poderia jurar ainda ser 05h. A rua estava bem escura. Deve ser a terceira vez na semana que está chovendo, e hoje ainda é só quinta-feira. São Paulo não é a terra da garoa à toa.

- Puta merda, esqueci meu guarda-chuva. Vou voltar pegar, Lia, ou ficarei ensopada.
- Ok, eu vou passar na farmácia antes de qualquer forma.

Trazia a sua sombrinha preta de bolinhas brancas comprada desses vendedores ambulantes da Paulista pela bagatela de 20 reais, porém ela permaneceria fechada agora. Se acostumara com o chuvisco da época de Manaus, e andar sob a fina cortina d’água trazia uma gostosa nostalgia.
Caminha olhando para o céu em busca daqueles fracos feixes de luz que entraram pela janela minutos antes. O acinzentado do céu confunde aqui. Nunca se sabe se as nuvens são de poluição, ou de chuva. A menstruação que chegara hoje de manhã não tornaria o seu céu cinza em azul, mas pelo menos faria uma das suas tempestades passar.
Entra na Droga Raia e busca a sessão de higiene íntima para comprar vitoriosos absorventes. Suave, Sempre seca, Adapt, Interno, coletor menstrual.  Pega essa embalagem desconhecida e lê as informações. Coletor menstrual de silicone cirúrgico, hipoalergênico, reutilizável, mantém a umidade natural da vagina, amigo do meio ambiente, pois não gera lixo. Sorri ao ler isso. Já ouvira comentários sobre o utensílio, mas sabe como é, até então estava sendo como caviar: nunca vira, nem comera, só ouvira falar. Resolve investir os 70 reais no cálice menstrual, afinal há tempos tinha desavenças com o absorvente de algodão. Irritava, assava, trazia mau cheiro, e vazava. Porra, como vazava. Não há lençol ou calcinha que se prive da sua marca. Tentou usar absorventes de pano em uma época mais hippie, mas desistira por causa da tremenda trabalheira. Morar com outras pessoas tornava a opção difícil, não é todo mundo que aceita bacias d’água mensais na lavanderia com flanelas de sangue de molho.

É engraçada essa relação que alguns têm com sangue, principalmente o menstrual. Geralmente provoca repulsa, mas se ele se atrasa um dia para chegar, causa outras sensações bem piores. Transar menstruada, em contrapartida, gerava sensações bem prazerosas. Se alguém tivesse lhe falado isso cinco anos atrás teria discordado. Uma pela percepção de nojo que tinha, e outra pela excitabilidade medíocre que sentia. Depois de parar o anticontraceptivo, lá naquela fase mãe natureza, ficou bem mais sensível e hormonal. Atualmente fica reclusa na TPM, e com um tesão absurdo na ovulação.

- Moça?
- Oi?
- Crédito ou débito?
- Nossa, desculpa, me perdi nos pensamentos aqui...

A caixa fez uma cara de quem pouco se importava com isso e colocou o cartão de chip na maquininha. Enquanto digita a senha, ainda absorta nos devaneios, lhe ocorre a última transa que teve, durante o período fértil.  Consegue ouvir o blues que tocava, sentir a respiração no pé do ouvido, a barba roçando na nuca, e o braço lhe envolvendo pela cintura apertando seu corpo contra o dele. Sente uma forte contração no ventre, e um aperto no peito.
Sai da farmácia sem graça, desviando o olhar das pessoas que cruzavam seu caminho, como se pudessem saber o quê se passava em sua mente.

- Ei! Aqui.
Levanta o rosto e vê Bruna fumando um cigarro, encoberta por um guarda chuva verde.  Odeia cigarro, mas tem pessoas que ficam tão sexy tragando eles.  A amiga olha o pacote através da sacola de plástico e diz, depois de soltar a fumaça:
- Desceu?
- Sim - suspira aliviada.
- Nossa, que consolo.  Até eu já estava desesperada. Graças a Deus não passo por isso.
- Porque? Você está tomando pílula?
- Nossa, Lia. Porque eu sou lésbica! Mas de qualquer forma, ninguém merece um filho do ex. Vamos, seu ônibus está chegando.

Olha o visor do celular dela e verifica o 875A-10 se aproximando.  Caminham um pouco juntas até cada uma tomar seu rumo.
A chuva apertava, mas continuava a caminhar descoberta. Não sobrou mais nada agora. Essa menstruação selava o fim desse relacionamento incendiário, e a água que caía ajudava a garantir que tudo virasse cinzas.  Lágrimas escorriam pelo seu rosto e se misturavam com as gotas de chuva, se distinguindo somente quando chegavam na boca, através do gosto salgado. Todo fim é triste até que consiga ser visto como um novo começo.
Pelo menos segue com a certeza e o alívio de ser uma pessoa só buscando um endereço. Mais fácil assim.

*Ana Clara Squilanti encontra na literatura lazer e refúgio.  Escreve quando lhe sobra tempo, ou quanto lhe falta algo que só a escrita pode ajudar a preencher. É como versou a estimada Ana C, meu texto é meu corpo, você me segura quando me lê.
 

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Rita

Rita falava pouco e pouco também era o que a tirava do sério. Em seu trajeto dos dias, pessoas a olhavam como se identificassem algum grave defeito. Ela já não ligava, era sempre assim. Aquele olhar de desdém ou o pescoço de medir insignificância que lhe apontavam pela rua fazia parte do percurso.

Há alguns meses Rita tinha convidado sua mãe para vir à cidade grande, sabia que envelhecer sozinha não era coisa de se permitir escolher. Seus irmãos não davam a mínima e o restante da família dizia "ter problemas demais". A mãe não aceitou de primeira... era costume daquela senhora que a criou se fazer de durona. Escondia os remédios que precisava tomar e por vezes fazendo isso até os perdia. Os médicos no interior são bem intencionados até, mas não dão conta de tanta demanda, não perceberam as faltas e o avançar da doença dela. Depois de muita insistência e diferentes estratégias de convencimento, Rita conseguiu combinar o dia da mudança.
A mãe fazia questão de dizer que seria só por uns tempos, a filha sabia que era pra sempre. Ao menos até o sempre de sua progenitora.

O tempo correu rápido, chegara o dia de buscar sua mais importante hóspede na rodoviária. Assim que a mãe desceu do ônibus, Rita sentiu um bambear nas pernas, o ombro sentiu a responsabilidade e pesou. A passos lentos e conversas desconexas caminharam juntas. Pela primeira vez a filha seria responsável pela mãe, ela só pensava que estava vivendo uma gestação ao contrário... seriam meses de preparação para o fim... quando sua mãe se preparava não para dar, mas para encontrar a luz.

Rita determinou-se a fazer deste período o mais significativo e feliz para elas, mesmo sabendo que, até então nem ela havia encontrado a receita, o caminho, a razão...  Mas sabia fingir bem, na cidade grande a vida também é de aparência. Há muito sangue e choro a noite, mas com o cantar do galo todos já estão a postos para fazer coro com ele e trabalhar, trabalhar, sem porque, sem parar.

A mãe assustou-se com as novas dimensões e paisagens, mas sabia que tamanho não significava muito. O maior medo dela era outro: ser descoberta, ter sua fraqueza exposta e atrapalhar a vida da filha. Teria que fingir estar bem, dar conta do recado, não sucumbir a doença. Esticar os dias a ponto de serem suficientes para convencer que podia voltar. Preferia morrer sem plateia, ter o corpo parte da terra de onde veio, alimentar o que já a alimentou. Morrer na cidade, pensava, só daria destino cinza e fumaça, e ela não queria.

Ambas pensando, cada uma em seu mundo paralelo, encontravam-se repetindo a tarefa comum como mantra: fingir, fingir, fingir.

*Janaína Moitinho é educadora e poeta. Trabalha com crianças e com as palavras.

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Espelho, espelho meu
 

Seis horas da manhã. O dia era frio e nublado. Lá fora, muitos carros. Olhou pela janela localizada bem em frente ao minhocão e observou o trânsito. Notou os carros todos cinzas como o céu. Nenhum verde, ou azul, ou mesmo vermelho. A moda do amarelo que ela havia lido em uma revista que estava dominando as pistas do Rio parecia não ter chegado aos motoristas paulistas. Todos os carros eram cinzas.

Refletiu alguns minutos e chegou à conclusão que somando todos os motoristas solitários naqueles carros cinzas devia haver mais gente que em Lagoa dos Três Cantos, sua terra natal.

Desde que havia posto fogo no centro de convenções da cidade no dia que foi eleita soberana, o nome boçal que dão para a mais bela da cidade, nunca mais tinha voltado a Três Cantos. Lembrava com alegria da primeira chama pegando na palha e o fogo se alastrando. Sua vingança contra o concurso de beleza no qual se inscrevera só para ter acesso ao local onde estariam os líderes da cidade havia se completado. Metade da infância de Belinda foi dedicada a maquinar ideias de como acabar com o concurso. Não tendo capital, força política ou um grupo forte ao seu lado, lhe restou a sabotagem.

Apagou o cigarro e fechou a janela. De repente todo barulho da pista havia sumido e São Paulo vista por de trás dos vidros parecia um vídeo de time lapse sem trilha sonora. Os carros iam rápido e o silêncio era absoluto. Apesar de julgado como mal localizado, o apartamento tinha uma qualidade de construção impressionante, além das janelas anti ruído o piso era de mármore e as paredes pintadas com tintas importadas que não descascam, não mofam e não sujam. Toda a mobília, que era pouca, também era de primeira qualidade. Nas paredes da sala muitos quadros abstratos e posteres alternativos. Na cozinha uma cafeteira italiana original, realmente antiga, compunha com a geladeira old school vermelha. Dentro da geladeira apenas água.

Belinda só se alimentava de líquidos havia anos. No início passou a rejeitar carnes, lembrava que aqueles bifes um dia estiveram enrolados em ossos e isso lhe dava muito nojo. Daí passou a evitar também biscoitos, balas, cenouras e qualquer coisa que fizesse estalo. Ela sempre pensava em ossos quebrando e de novo se enjoava. Depois foi aos poucos criando uma ojeriza a tudo que tinha uma consistência firme, era um medo que estalasse, que a imagem de ossos lhe viesse a cabeça justo quando estava comendo . Líquidos eram seguros. Bebia muita água mas também tomava coisa mais nutritivas como sucos, shakes, cremes e as vezes tomava sopa, desde que não tivesse nada dentro, só o liquido.

No quarto, em frente à enorme cama de casal estilo vitoriana, um espelho grande de bordas douradas permanecia a maior parte do tempo coberta com um lençol de seda branca. Mas nessa manhã sabia que deveria se olhar, tinha trabalho marcado. Ela não evitava se olhar no espelho porque se achava feia, na verdade ela se achava linda quando se olhava. Mas várias pessoas já haviam dito a ela que quem ela via não era quem aparecia ao mundo. Essa sua suposta disfunção lhe atormentava. Pelas descrições que recebera parecia horrorosa, apesar de esse horror, ela ter consciência, ser considerado beleza aos olhos do mundo.

Caminhou até o quarto em passos oscilantes, puxou o lençol com cuidado e pode ver aquela linda forma no espelho. Seu corpo gordo e forte, suas bochechas enormes que a faziam parecer um bebê. Seus joelhos largos, cheios de carne, a perna que se encostava, o pé roliço. Era tão fofa. Se achava muito bonita.

Quem a observasse se descrever, o que Belinda havia feito não mais que meia dúzia de vezes na vida, entrava em colapso. Pois a mulher que o mundo via não era essa criatura rechonchuda que a própria identificava. Belinda, aos olhos do mundo era magra. Sua ossada da clavícula era bem aparente, o que lhe rendera muitos ensaios para joalherias. Seus seios, pequenos, mas não inexistentes. Suficientemente grandes para ser identificada enquanto mulher, mas sem que as roupas lhe parecessem vulgar, diziam os críticos de moda. O quadril estreito tinha ossinhos aparentes na lateral, o que virou febre depois de uma imagem publicada no Instagram, onde ela entendia estar fotografando suas gordurinhas.

 

*Fernanda Beirão escreve ficção desde a infância mas só havia publicado em sua mente ou com nome dos outros. Esse texto é o primeiro que assume autoria.

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Voando com Orgulho

Ao embarcar já ficou assustada em ver o passageiro a sua frente ser retirado da fila por agentes da Polícia Federal e ser conduzido, escoltado, juntamente com sua bagagem.
Passou pelo raio-X sem que o cinto apitasse e seguiu pelo finger atrás de uma moça que devia estar indo para a praia do Leblon no alto verão - vestidinho leve, curto, cavas profundas, um soutien de renda preta absolutamente visível e saltos 47. Ela morria de inveja de pessoas que não sentiam frio nos ares-condicionados de aeroportos e aviões. Sempre se vestia para viagens como se estivesse na Sibéria e os sapatos tinham que ser os que andam sozinhos, sem precisarem de equilíbrio.

Casualmente, sua poltrona era atrás da moça calorenta.

O oriental com quem a jovem repartia a dupla de poltronas ficou visivelmente amarelo ao vê-la e, ao sentar, a garota recolheu as pernas sob o vestido e acompanhada do travesseirinho rosa, desmaiou de sono antes mesmo dos avisos da tripulação.
Voavam em céu de brigadeiro quando a garota acorda e pede licença para sair. O oriental levanta para lhe ceder caminho, e alguns vizinhos de poltronas próximas se fixam na jovem - alta, morena, cabelos longos, ela chamaria atenção mesmo que misturada num desfile de modelos. Ainda mais pelas pernas descobertas.
Stella olha para o rapaz, que continua em pé, encarando a moça que caminha para o banheiro, e ele cora. Ela tem vontade de questionar "Pensando o quê, cara pálida ? (aliás, deveria ser cara amarela!)".
Três turbulências depois, a passageira retorna ao seu lugar e se acomoda com o cobertorzinho vermelho.
Sentada atrás do casal via bem os dois - a morena deitada na janela e dele, via o braço esquerdo envolto num paletó azul noite (ou seria night blue?), seus cabelos pretos ensebados, penteados cuidadosamente para trás e um tico do seu cobertor vermelho.

Viu!! Viu a mão do oriental mudar de lado, com o seu braço invadindo a poltrona da jovem!
Fechou os olhos. Deu um suspiro e, recostando-se na poltrona, divagou.
A transparência que sentia ficava cada vez mais evidente, fosse em mesas de restaurantes ou em vôos.
Fugir das lembranças vinha sendo sua rotina nos últimos anos, e o apartamento pequeno escondia a casa enorme onde ela se achava ter sido tão feliz. Agora, era tudo em uma mala. A dor, a angústia e a tristeza tinham sido embaladas e descansavam no bagageiro.
A pessoa que julgava ter sido estava de volta. Deixara de ser o pedaço de carne grelhada pelas emoções e apodrecida pela falta de sentido da vida.
Adorava ser transparente para os outros e tão consistente consigo mesma.
Quando se lembrava da vontade de voar sem asas, percebia que o medo da vida esvanecera, e a segurança estava dentro dela e não na aeronave.
Dependia só dela. Como para todos. Cada um sabendo bem o que era o melhor para si.

Agora, o voar era só em avião para mais um compromisso profissional, carregado de simbologia pessoal.

Se acomodou para dormir.
A moça da poltrona da frente se mexeu, assustada. Pôs-se em pé, descabelada, esbravejando contra o oriental.
Sentou a mão na cara dele! Os gritos acordaram alguns passageiros e chamaram atenção da tripulação, que acudiu correndo antes do massacre ao japonês.

Bem-vindas de volta a vida, meninas!

Cintos afivelados em vôos e respeito na vida continuam a ser fundamentais!

*Isabel Dias é escritora. Com cinquenta e alguns anos publicou seu primeiro livro (32 - Um homem para cada ano que passei com você) e sente que escrever virou o respirar. Fez com que mudasse a forma de enxergar a vida, e o viver, independente do número que carrega.

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Opostas

É na fronteira
Das idas e vindas
Que ela trabalha
Batalha a mulher
A Mulher do Clarim
Aos que dizem sim
Os ponteiros do relógio
Param enfim
Não, não é o fim
É o início de mim
De mim?
Fronteira?
É bobeira
Batalha?
Me deixa com as minhas tralhas
Som do clarim?
Só se for o tim-tim
Das taças
Tingidas de carmim  

*Margareth Bevilacqua escreve para dar voz a sua voz interior. Aprecia o caminho do meio, mas não abandona os extremos.

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Goiaba

Maria Eduarda gosta muito de ver tutoriais de qualquer coisa no Youtube, principalmente os de maquiagem, apesar de usar apenas três batons, rímel, delineador e corretivo. Também gosta de ver receitas, mesmo não gostando de cozinhar. Gosta de saber fazer as coisas e de ver as pessoas fazendo.

Através dos textões de Facebook, descobriu que é feminista, e cavando mais descobriu o feminismo negro. Foi assim que descobriu que é negra. Claro que sempre soube que é negra, mas percebeu o peso de ter um tom de pele que não é o branco, percebia que incomodava, mas sempre deixou pra lá.Agora não pode deixar mais pra lá. Porque sua percepção de si mudou de maneira irreversível. Vivia perdida em uma névoa, onde não tinha respostas para as perguntas que a atormentavam. Por que não consigo me relacionar? Por que tudo parece mais difícil pra mim? Por que pra todas as minhas amigas é tão mais fácil? Eu sou tão feia assim? O que há de errado comigo? Então, em um único texto, onde se reconheceu e viu suas iguais se reconhecendo também, encontrou as respostas e a névoa se abriu mostrando um azul muito forte e triste de clareza.

Maria Eduarda se sente perdida. Por isso decidiu sair para se de distrair, para se perder na multidão.

Adora caminhar pelo centro da cidade, gosta da Paulista aberta. No domingo ensolarado e frio caminha do Paraíso até a Consolação.
Enquanto olha as bijuterias na feirinha do parque Trianon, percebe que é observada por um homem do outro lado da barraquinha, mas não tem certeza. Acha ele bonito, não muito mais alto que ela, cabelos pretos bem curtos, quase raspados, não é gordo, mas não é magricelo, tem barba. Camisa xadrez, calça jeans e tênis. Comum, mas  gostou do nariz. Continua a caminhar entre as barracas, foge, continua pela avenida, no seu ritmo, se distrai novamente com as pessoas andando de skate, os grupos de dança, compra um sorvete no McDonald's. Quando pensa que ele se foi, esbarram na entrada do metrô, já na Consolação. Se desculpa, ele também, eles se olham por um tempo demorado demais, aquele tempo constrangedor, sem saber o que fazer.

Qual seu nome?", fala antes que ela se vá.
"Maria Eduarda", ela diz sem o encarar por muito tempo.
"Te achei muito bonita".
Ela não responde, olha para o chão, mexe no cabelo.
"Gostaria de te conhecer, me passa seu telefone".
Ela sorri, diz que tudo bem, ele pega o celular desbloqueia entrega pra ela, que digita seu telefone.
"Qual seu nome?".
"Samuel".
"Está anotado Samuel, até mais então".
Um sorriso. Começa a se afastar.
Com um sorriso largo, ele diz que vai ligar.

Desce as escadas rolantes, passa a catraca, mais escadas rolantes, entra no metrô e  se lembra dele. Se conheceram assim no metrô, dentro do trem, ele a olhou. Ela também. Ele pediu o telefone. Ela deu. Ele ligou. Saíram uma vez, ela não gostou muito. Saíram duas vezes, gostou mais um pouco. Saíram mais uma vez, gostou muito. Passaram a noite juntos, gostou de dormir de conchinha e do jeito que ele fez carinho nas costas dela. Ele ligou no dia seguinte, e não ligou mais. Ela tentou. Mensagens visualizadas, nunca respondidas.
Demorou.
Veio a resposta: "me desculpa, voltei pra minha namorada, não sei se fiz o certo, mas achei mais cômodo".

Foi assim sua primeira vez. Mas, ela não chorou. Doeu.

Chega em casa, dá comida pro Goiaba, seu gato, faz um chá, senta no sofá, se enrola em uma coberta, passa muito tempo tentando escolher um filme na Netlfix - tem essa dificuldade desde a saudosa época em que frequentava locadoras, passava horas lá dentro sem conseguir escolher os cinco filmes do pacote promocional.
Sabe apenas que não quer romance, há quatros anos não via mais romances. Escolhe um filme de ação com Keanu Reeves, em que matam o cachorro dele, e ele vai se vingar. O tipo de filme que ela gosta, violência, sangue e vingança.
Sentada no sofá com o Goiaba esquentando seus pés, ela pega o celular várias vezes durante o filme. Mesmo sabendo que ele vai ligar pro número errado.

*Katy Illy, preta, fotógrafa, caminhando para os 30 anos e descobrindo como ser nesse mundo complicado, enquanto escreve para aliviar a alma.
 

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Alanis

Era mais uma manhã fria, enquanto bebia seu café extra forte, aproveitava para terminar os últimos retoques de sua maquiagem. Colocou seu salto preto, seu casaco e todos acessórios de inverno para sair, se olhou no espelhou como de costume, mas nesse dia se permitiu um olhar mais demorado. Começou a refletir sobre si mesma e perguntar-se o porque muitas pessoas a viam, mas não a enxergavam? Será que ela se deixava ver ou o mundo que estava cada vez mais cego?

Ela via uma jovem que, apesar da pouca idade, já conquistara algumas coisas na vida, que julgava importantes, como um diploma, um emprego do qual gostava e uma carreira que se iniciava da melhor maneira possível, de certa forma era independente financeiramente - pelo menos conseguia pagar as faturas dos cartões de crédito, tinha uma família incrível apesar de pequena, tinha alguns poucos amigos, mas... sempre tinham os MAS da vida. Existiam certos conflitos internos que a intrigavam muito, como por exemplo o fato de ainda morar no apartamento de sua mãe; não que o relacionamento mãe e filha tivesse problemas, pelo contrário, eram grandes companheiras, mas achava que aos 25 anos já deveria ter seu próprio imóvel, ou então ao menos ter um carimbo em seu passaporte, pois, até o momento, não tinha nenhum, e era nessas coisas que pensava enquanto olhava sua imagem refletida no espelho...

Será que as pessoas que conhecia e com quem convivia percebiam isso nela ? Sabia que não. As pessoas viam apenas uma jovem trabalhadora, vaidosa, extrovertida (quando queria) e com “grandes conquistas”. Era sempre assim: as pessoas costumavam ver apenas o superficial dos outros, e até ela era assim.

Foi quando percebeu que já era hora de sair para trabalhar ou iria se atrasar, pois o trânsito de SP estava cada vez mais caótico. Se despediu da mãe e saiu. Enquanto dirigia seu Monza vinho de 82, o único automóvel que conseguiu adquirir até o momento sem financiamento e se orgulhava disso, pensou em como aquele carro ainda andava, mas logo retornou a sua reflexão anterior.

Ficou pensando em como ela também tinha aquele olhar superficial para as pessoas, e começou a se questionar: será que realmente se preocupava com o interior das pessoas a sua volta? Será que de fato as enxergava? Percebeu que não. Alanis se sentiu egoísta. Como queria que as pessoas a enxergassem se nem ela era capaz de enxergar as pessoas além do que os olhos podem ver?!

Talvez não enxergasse nem mesmo sua própria mãe que dividia o mesmo teto que ela e dormia no quarto ao lado. Será que percebia o que sua mãe verdadeiramente sentia? Conhecia suas angústias, pensamentos antes de adormecer, medos? Aliás, será que sua mãe tinha medos? Medos de verdade, além do medo de perder a hora da missa de domingo?

E enquanto dirigia pela avenida movimentada ao som de Legião Urbana (sim, o seu Monza tinha um toca disco), Alanis decidiu que a partir daquele momento abriria os olhos para enxergar as pessoas além de vê-las apenas, só assim poderia ser enxergada por elas também.

*Amanda, 25 anos, é estudante de letras e auxiliar administrativo em uma empresa de formaturas. Sempre gostou de ler e escrever, mas a escrita criativa estava adormecida dentro dela e, após a oficina no Sesc Consolação, a vontade e a coragem de escrever vem crescendo a cada dia.

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Magda

Trinta e quatro anos arrastados em desassossego, meu filho. Casei por amor, casei. Mas com os anos passei a desdenhar a alegria.
No primeiro tapa, o medo, que estava na espreita, se alojou. Ria amarelo, de dar pena.
Resisti. Ou me rendi?
Em casa, era um passarinho numa gaiola. Bom era sair pro trabalho. A rua me era muito mais acolhedora. Nela distraia as angústias.
Porque as angústias, meu filho, sempre vão existir. O que nos cabe é escolher qual delas queremos viver.
Liberdade? Ah! Era passar pelas ruas do bairro, que conheço oh! como a palma da minha mão, cumprimentar os vizinhos, vender minhas tapiocas.
Suportei, sim, suportei outros beliscões, tapas e palavrórios. Mas me empurrar escada a baixo, meu filho, foi o fim. Que remate! Corri pra a delegacia na mesma hora. Exame de corpo de delito. Fichei ele! Não falei nada.
Levou um tempo, até que ontem a oficial de justiça veio aqui tirar seu pai de casa. Ele quis até bater na mulher, acredita? Dei uma hora pra ele pegar algumas coisas. Saiu esbravejando que eu tinha roubado tudo o que ele construiu. E eu trabalhei nesses trinta e quatro anos pra ninguém?
Vocês estão todos aí, bem criados. Saiu com a roupa do corpo e com o que deu pra pegar dentro de uma mala. Agora, você vem me falar de liberdade?
Como vou sair? Só de pensar - disse, passando uma das mãos na nuca -, sinto frio, meu medo escorre como suor desde esse dia.
Afundada no mar, vejo o céu embaciado lá fora.
Ele deu o recado: “Eu vou te matar!”
Seu pai já falou. Vai me matar.
Magda abriu o papel que apertava em suas mãos, que estava levemente úmido de suor, cortou quatro tiras de fita e colou-os na parede da cozinha.

Denunciar seu pai foi meu suicídio.

*Bárbara Zocal, mulher, tradutora, escritora. As palavras são poder e a escrita é sua luta. Criou o projeto “Traga meu amor de volta”, contos que expurgam as angústias causadas pelas violências – visíveis e invisíveis – vivenciadas pelas mulheres no cotidiano.

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O poder está na raiz

“Porque não herdei os cabelos da minha mãe?” – matutava ao desembaraçar os fios castanhos, que desde criança sonhava em ter os cabelos lisos e soltos assim como as primas. As primas... que quando saiam da piscina não precisavam amarrar os cabelos.
Quando chegou à adolescência, o pai - responsável geneticamente pelos cabelos crespos - a levou ao cabeleireiro que prometia alisar os fios. Ansiosa, não teve dúvida e foi ao tal milagreiro.

Puxa aqui, estica ali. Espera mais 10 minutinhos, aguarda mais 20. Muda de cadeira, cochila um pouco, e, após horas no salão, lá estavam os cabelos que tanto desejava. O andar mudou. Estava mais segura. Na escola, não zoariam mais do “rabo de cavalo”, que os coleguinhas diziam parecer um poodle.

Porém, as raízes não negavam as origens e a cada três meses, o ritual deveria ser repetido. Estica aqui, puxa ali. Espera mais 10, aguarda mais 20. Troca de cadeira. Queima a orelha. “Ops, desculpa, moça. Tá quente?”

Ir ao salão era tomar uma dose de autoestima, sentia-se mais bonita e mais feminina. Os anos passaram, quando algo mudou. Aquele ritual começou a perder o sentido. O que era prazer havia se tornado um martírio. Não sabe ao certo quando a chave mudou, mas a mudança aconteceu. Precisou tomar coragem. Foram meses de conversas. Conversas internas. Conversas sinceras.

Os meses passaram e lá se foram 12 meses sem ir ao cabeleireiro. Os cachos, crespos, tomaram o lugar de direito. E, ela por fim, percebeu que as doses de autoestima estavam na raiz e não mais em um pote industrializado.

*Grasiele Maia Brito é cacheada e, atualmente, faz parte dos 54% da população que declara ser negro ao IBGE. Estudou jornalismo, pois queria salvar o mundo, desistiu ao perceber o quão difícil é salvar o próprio caminho. Escreve sobre as coisas do cotidiano e sobre as emoções que a cercam.

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Sempre Igual

I

Um copo... dois...três... e quatro
Mais pratos...
colheres, facas e garfos
e a montanha aumenta...
e a louça espera

A rotina abafa o coração, a vida e o tesão
Cansada, mesmo sem fazer nada
sonha com a novela, pensa no casamento
e na encomenda do novo batom
Pensa na mãe e na mãe da mãe dela
Sempre tudo igual
Bem normal, lê nos romances

Olha a pia e enxerga além
a tralha aumenta e não cessa
A sua história? Será essa?
Poucas novidades e mínimas lembranças,
apenas rotina e frágeis esperanças

II

Amanhecer, noutro dia, parecia diferente
Céu de um azul muito mais claro,
o ar quase parado anunciando:  tempo de inverno.
O sol tinha nuvens para se esconder
e o vento  buscava as folhas do fundo da casa
e as trazia para o jardim
o portão destrancado batia...batia...
num vaivém sem fim

A louça do café mergulhada na pia
e o burburinho da rua trazia pequenas lembranças:
o esconde-esconde, a amarelinha, sem pisar na risca
Na adolescência, quase menina, as brincadeiras de
abraços, amassos e beijos escondidos de língua,
Aos dezesseis, o susto e a gravidez
O casamento, que insensatez!

Louça lavada, casa brilhando e o tempo passando
No banheiro, cabelo escovado
 batom, bem delineado, contorna os lábios
A maleta empoeirada desce do armário
peças de roupas,  livros no fundo e o porta-retrato
Janelas fechadas  e  porta aberta
Inspira a brisa suave com cheiro de liberdade
Bate o portão e sai
Nem olha pra trás 

*Leila Rodrigues Leila é jornalista de formação e, desde menina, gosta de escrever e de ler. Todos os gêneros na literatura a atraem, mas o preferido é a poesia. Para ela, dizer muito em poucas palavras é difícil, mas é uma arte fascinante. Um aprendizado constante e que a coloca em alerta, pois sempre há muito a dizer com o mínimo. Vide o hai cai. A poesia lhe acalma, a faz sonhar e também a situa na realidade. Está sempre escrevendo. Não tanto quanto gostaria, mas contina sem desistir.

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Inverno/Viagem

Ana Tereza estava animada para a sua viagem de estudos. Enfim iria ao velho continente.
Tudo correu conforme o previsto: sobrevoo sobre o oceano Atlântico, travessia sobre uma zona de turbulência e, no aeroporto, com a ansiedade junto dela, ia seguindo as placas indicativas para a conexão, pedia informações aos funcionários e preocupava-se com o extravio das bagagens. Mas finalmente chegou à cidade de destino, sem nenhum maior contratempo

Antítese do clima tropical de onde viera, de cara enfrentou um frio intenso, com os dias mais curtos e o rápido anoitecer. Flocos de neve caíam; o vento glacial soprava da região dos Alpes em direção à cidade. Levou roupas de frio, mas não tão adequadas para aquele inverno rigoroso e hiperbólico.

Hospedou-se em um casarão do final do século XIX, com um grande portão na entrada, um jardim e uma porta cuja fechadura abria-se com uma chave antiga. Uma médica, proprietária do imóvel, alugava os quartos e uma senhora da ex-colônia francesa realizava os serviços domésticos.

Enquanto tomava o seu café da manhã, conhecia a vida familiar da proprietária. O filho caçula trabalhava em outro país do continente e vinha visitá-la uma vez por mês. A mãe iria para uma residência de idosos, pois já não podia viver desacompanhada.

Na escola encontrou estudantes de outros países. O grupo era inusual: uma sérvia, dois marroquinos, um francês que morava em Belém, na Palestina. Conversavam sobre as curiosidades, cultura, história de seus respectivos locais de origens. Os colegas estavam interessados no carnaval, na violência, no tráfico de drogas, na Amazônia, assuntos sobre o Brasil mais divulgados pela mídia no exterior. Apesar de tudo novo, sentia-se apta para compartilhar, trocar experiências, conhecimentos e receptiva para ouvir as histórias.

Com o colega da Palestina visitou alguns pontos turísticos e interessantes da bela cidade francesa, como: Museu da civilização greco-romana, teatro romano do século XV A.C na parte alta e antiga da cidade e o Museu da Resistência (construído na antiga sede da Gestapo). Entre os passeios, ia tomando contanto com outras histórias também, como os relatos do cotidiano da vida em Belém.

Em uma noite, assistiu a uma peça de teatro e reviveu sensações de que já estava se esquecendo, ao passar por ruas tortuosas e íngremes ou pouco iluminadas e silenciosas. Apressava os passos, cruzava com pedestres, olhava para os lados. Na chegada à casa, com as mãos congeladas, abriu o grande portão, atravessou o jardim até chegar à porta principal, escapando do frio cortante da madrugada. Subiu os dois lances de escadas, nas pontas dos pés, para não acordar a dona da casa. Passava da uma hora da manhã do sábado.

Algo de mistério e esplendor da cidade acabou passando para ela. O casarão, a escola, o grupo de novíssimos amigos, as histórias de Belém, o caminhar pelas ruas, sentia, não sabia o que, ter penetrado num universo familiar. Ana Tereza encantou-se facilmente. Tudo foi tão bonito, aquela experiência era tão sinestésica, que se sentia como se vivesse um início descritivo de uma singela narrativa de amor e aventura. Ela se pergunta se esse período de sua vida não foi sonhado.

*Valquíria Pimentel é bibliotecária do Sesc Consolação.

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