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Entrevista
Rosa Branca

Ou Carmo de Souza, um dos maiores jogadores de basquete do Brasil, bicampeão mundial, campeão sul-americano sete vezes, dez títulos como campeão brasileiro

É uma biografia rara no basquete brasileiro: bicampeão mundial, campeão sul-americano sete vezes, campeão brasileiro dez vezes. Rosa Branca, nascido Carmo de Souza, 1,89 m, ex-jogador do Araraquara, do São Carlos, do Corinthians e do Palmeiras, é uma lenda do esporte brasileiro. Convidado duas vezes para integrar o Harlem Globetrothers, integrante de uma das mais brilhantes gerações do basquete, Rosa Branca, hoje técnico do Sesc Consolação, afamado como a glória alvinegra, continua sendo uma pessoa humilde, carinhosa, que continua jogando basquete em times de veteranos em apresentações beneficentes: "A gente não quer nada, só um lugar para se alojar", comenta ele. A seguir, os principais trechos de sua entrevista.

Em primeiro lugar, de onde veio o apelido Rosa Branca?
O nome Rosa Branca surgiu em 1954, na ocasião da morte do Getúlio Vargas. Em Araraquara, onde nasci, eu tinha uns amigos na praça de esportes que gostavam de brincar, eram uns gozadores. Nesse dia eu tinha raspado a minha cabeça, acho que fica mais fácil e mais higiênico. Eu tinha um amigo, que vinha com a revista Cruzeiro com a noticia de que o Getúlio tinha falecido, e o motorista do Getúlio estava de cabeça raspada também. O motorista se parecia muito comigo. Ele apareceu e disse: "Rapaz, que você está fazendo aqui? O homem morreu e você continua aqui?". Eu olhei na revista e respondi, brincando, que quem era eu para aparecer na revista Cruzeiro. Dali para a frente eles passaram a me chamar de Rosa Branca, que era o apelido do motorista do Getúlio Vargas. E você sabe, quando você não gosta de um apelido, é aí que ele pega. Meu nome é Carmo de Souza; lá em Araraquara me chamavam de Negrão e eu gostava desse apelido. Eu era muito conhecido naquela época. Ainda hoje sou, só que mudou muita coisa, a população da cidade agora é outra.

O que seus pais faziam?
Eu tenho o nome da minha mãe. Meu pai, que eu cheguei a conhecer, trabalhava na estrada de ferro, era ferroviário. Mas eu tenho só o nome da minha mãe.

Como você foi parar no basquete?
Minha mãe não gostava. Ela era uma cozinheira mineira, cozinhava para todo mundo em Araraquara. Tinha uma casa na qual trabalhava, e quando tinha essas festas grandes ela era chamada para tratar da alimentação do pessoal. Nesse meio tempo eu tive vários serviços em Araraquara. Trabalhei como feirante, em fábrica de vassoura, trabalhei até de pedreiro, de servente de pedreiro. Araraquara tinha minas de água, a gente pegava o garrafão e ia buscar água, sempre procurando fazer alguma coisa, nunca fugindo do trabalho. Um dos serviços que eu mais fiquei foi na sapataria; minha primeira profissão foi sapateiro. Na época o sapato ainda não era industrializado, era feito a mão, o sapateiro era um ponto de referência. Então, era na rua Bonifácio, onde as mulheres levavam todos os sapatos e quem cuidava desses sapatos era eu. E todo mundo me conhecia e tinha um respeito muito grande por mim. Eu sempre fui caprichoso nas minhas coisas, mesmo hoje eu ainda sou.

Você tem talento para coisas artesanais?
Tenho. É uma arte na mão. É um oficio de artesão. Já tinha alguma coisa que Deus estava me iluminando. E daí foi que eu comecei a brincar com a bola. Comecei na escolinha do nosso clube, em Araraquara.

Por que o basquete e não o futebol, por exemplo?
No futebol, na época de moleque, a gente se destacava. Eu não sei, aí foi um momento que conheci pessoas como o Julio Mazzei, que foi administrador do Santos, foi preparador físico do Pelé, hoje se encontra nos Estados Unidos trabalhando com academia de ginástica. E por incentivo dele eu havia tido o primeiro professor de educação física. Sei que pintou aquela amizade. Eu morava perto do departamento de atividades físicas da cidade. O Julio tinha filmes, ele e a esposa me convidavam para ir na casa deles para ver esses filmes. Fiquei encantado. Naquela época eram 8 mm, filmes da faculdade que ele cursou em Chicago. Vi aqueles negões jogando basquete; eu fiquei maravilhado. Daí alguma coisa me iluminou e não teve jeito.

Qual é a sua altura?
1,89.

A altura influenciou?
Para o basquete na minha época quem tivesse 1,89 era chamado de gigante. Hoje eu sou anão. Essa altura nos EUA é um bom armador. Mas já tem armadores mais altos.

No basquete, como você achou essa posição?
Eu sempre tive facilidade de aprender os fundamentos do basquete. Não sei, é aquilo que falei, alguma coisa estava me iluminando. Eu jogava de pivô, de armador, de ala. Não tinha posição. Com catorze, quinze anos, no departamento de educação física em Araraquara, esse negócio que o pessoal faz de enterrar bola na cesta eu já fazia lá numa quadra externa. Eu tinha uma velocidade muito boa, tinha uma impulsão muito boa, já estava começando a aperfeiçoar o meu arremesso de longa distância e de costas. Devo muito ao Julio Mazzei e ao seu conhecimento sobre o basquete americano, não menosprezando os outros que também me ajudaram muito.

Em que momento você viu que aquilo ali podia virar uma profissão?
No momento que um outro colega meu em Araraquara me levou para jogar em São Carlos. O nome dele era Laércio e o apelido dele era Pelica porque era muito alto, tinha 2,01. Ele não se destacou muito, já estava em São Carlos fazendo a faculdade de educação física. O time de São Carlos estava super adiantado, disputando o campeonato estadual, nacional. O Araraquara só disputava os jogos abertos e o campeonato da cidade, não tinha como eu me destacar, mas eu já vinha me destacando, pelo que falavam. Aí ele me levou para São Carlos. Foi a gota d'água. Dali começou o Rosa Branca, que está aí até hoje. Ninguém me chama pelo meu nome. Se bem que alguns olham meu crachá e dizem 'oi seu Carmo, como vai?'.

Quando você foi para São Carlos ainda estudava?
Estudava. Quando fui, fiquei morando no ginásio de basquete. Os apartamentos dos jogadores eram embaixo da arquibancada, era muito bom já naquela época. Bem instalado, com rádio, só não tinha telefone porque na época era meio complicado. A gente tinha as refeições numa pensão em frente; havia um pessoal que lavava nossas roupas... Para continuar estudando, eu pedi a transferência, só que era mais complicado do que hoje, fiquei seis meses sem estudar. Depois que consegui, fui estudar na escola estadual, completei o ginásio e o colégio.

Você chegou fazer educação física?
Cheguei a fazer aqui em São Paulo. Já na época do Corinthians. Fiz na FIG, Faculdades Integradas de Guarulhos. Me formei professor de educação física de 1977 para 1978 e fui trabalhar no Sesc.

Como você foi parar no Corinthians?
Antes de jogar no Corinthians, eu já tinha sido convidado. Mas você sabe como são essas mães de interior, essas mães caipiras, ela não me deixava ir. O diretor do Corinthians foi conversar com ela, mas ela bateu o pé e eu não fui mesmo. Acabei ficando por lá. Só o Mazzei conseguiu me levar porque já conhecia minha mãe e aconteceu essa chance de ir para São Carlos. Depois vim para o Palmeiras. Minha caminhada foi gozada. Os Fachina eram todos de São Carlos, mandavam na cidade e estavam vinculados ao Palmeiras. Um deles disse que queria me levar para São Paulo. Só que parte da população de São Carlos não gostou muito porque eu já era querido na cidade. Sempre fui uma pessoa alegre, dada e humilde, como sou até hoje. E caí na simpatia do povo são-carlense, que me adora até hoje. Cada vez que eu vou lá é uma festa, eu fico até meio bobo sem ter o que falar. Mas bem, foi feita a transferência. A imprensa de São Carlos meteu a boca no Palmeiras, dizendo que o time estava dando milhões para mim, e eu não recebi nada. Vim para jogar num clube grande, sob os cuidados dos Fachina e do meu técnico.

No Palmeiras você ficou quanto anos?
De 1959 até 63. Depois fui para o Corinthians.

No Palmeiras quantos títulos você conquistou?
Fui campeão do campeonato estadual, sul-americano e brasileiro. O primeiro título mundial foi pelo Palmeiras. Minha caminhada nesse grupo foi excelente, foi maravilhosa, com muita iluminação.

Como foi ganhar o primeiro campeonato mundial?
De 1957 para 1958 nós ganhamos o primeiro sul-americano. Era um trabalho que já vinha sendo feito com o técnico Canela, que era tio do Jô Soares. Um trabalho com a seleção que já vinha há mais ou menos seis meses. O ano de 1959 foi o ano do Brasil. Aí foi continuando o trabalho do basquete e o esporte cresceu muito na capital: Palmeiras, Corinthians, Sírio, Monte Líbano, Espéria, Tietê, Pinheiros etc. O que tornava o campeonato paulistano muito forte. Era uma briga violenta, os jogos eram no Ibirapuera ou no ginásio do Pacaembu. Alguns jogos a gente fazia na quadra, naquele tempo podia fazer até em quadra externa. Era gostoso, a noite em São Paulo era maravilhosa. O Palmeiras vinha se destacando, era eu, o Jati, o Mosquito, o Laerte, o Reno, o Walter, o Peninha. Depois entrou o Edson também. Foi um campeonato de altos e baixos. Às vezes, ganhava o Sírio; noutras o Palmeiras, e o Corinthians sempre fora. Os corinthianos ficavam malucos, sempre em terceiro ou quarto lugar. Foi aí que eles foram buscar o Vlamir em Piracicaba. Pegaram o Ubiratan no Espéria e mais uns jogadores que vieram do Rio de Janeiro. Foi aí que saí do Palmeiras convidado pelo pessoal do Corinthians. Aí sim eu fiz um contrato maravilhoso. Aí ganhei dinheiro.

E no Palmeiras?
O Palmeiras conquistava títulos e a gente ganhava dinheiro com isso. O clube nos pagava em títulos, que nós podíamos vender. Um título que custasse, por exemplo, um,real a gente podia vender por dez.

Vendia para quem?
A gente saía na rua vendendo. Vendia para Deus e todo mundo! Eu me identificava, tinha um cartãozinho do Palmeiras e as pessoas compravam dois títulos. Ganhei muito dinheiro com isso também. Mas eu já tinha minha profissão. A minha idéia era ganhar dinheiro com o basquete e abrir uma sapataria em Araraquara, já estava tudo planejado. Só que me convidaram para ser técnico de uma categoria. Mas se você vai tomar conta de uma categoria não joga. E eu tinha de jogar. E aí, quando aconteceu, saí do Palmeiras e fui para o Corinthians.

Como era esse ambiente na época?
Não tinha patrocínio. Era um departamento autônomo dentro do clube, era meia dúzia de dirigentes. Mas a imprensa dava cobertura o tempo todo. Não tinha frescura do jogador querer receber para dar uma entrevista.

E tinha bastante público?
Tinha. Descia todo mundo quando tinha jogo no Pacaembu, os palmerenses, os corinthianos. Era uma loucura. Era briga de quadra. Aí terminava o jogo e todo mundo se dava as mãos.

E São Paulo era menor, devia fazer diferença.
Era muito melhor. Era São Paulo da garoa. Você era conhecido, tinha um relacionamento muito mais forte do que hoje. A gente saía na rua, os mais velhos logo nos cumprimentavam. Mas hoje a molecada não lembra mais e eles são não são culpados disso. Hoje estão vivendo na era Michel Jordan, Oscar, Hortência, Paula, Janete - logo, logo vai acontecer o mesmo com esses daí. Existem outros atletas que estão aparecendo. Então a gente tem sempre que botar na cabeça: sou um ídolo, mas virão outros.

Olhando a questão do esporte em relação ao que você passou. Hoje, se fala muito em dinheiro, você não vê as pessoas tendo amor à camisa...
Eu vejo muito longe isso, porque na nossa época a gente vivia numa sociedade diferente. Primeiro porque diziam que havia preconceito e isso não é verdade. Eu fui um dos negros que entrou no Palmeiras e usufruía o clube da melhor maneira possível, freqüentava as piscinas, bares, salão social, onde conheci minha esposa. Falar que tinha preconceito no Palmeiras não é verdade. Eu acho que no momento que eu estiver com você eu tenho que deixar a discriminação de lado. As Olimpíadas servem para esse encontro de amigos atletas, todos os jogos são para isso. Nós temos o campeonato dos velhinhos, dos idosos como se diz. São os velhinhos enxutos. Começa desde os 45 e vai até os 70/80 anos. Não é só realizado aqui em São Paulo, mas em Fortaleza, Paraíba, Rio Grande do Sul, todos os estados que reconheçam esses atletas.

Você era um menino do interior, que veio para São Paulo, foi uma das lendas do basquete brasileiro. Hoje em dia existem pessoas como você que viram de ponta-cabeça com essa coisa de fama.
A verdade é que o grupo no qual vivíamos antigamente era completamente diferente. Era uma sociedade que te dava a chance de você poder conviver naquela sociedade. Hoje, o atleta vem e não se comunica com você. Ele sai do vestiário, vai embora, para casa dele, cuidar da vida dele. O tempo dele é curto. É o profissionalismo. Essa convivência que a gente tinha não existe mais. Chegava dia que não tinha jogo, a gente se reunia numa casa e fazia uma feijoada, qualquer coisa, inventava. Ficava até quatro ou cinco da tarde e depois cada um seguia seu caminho. O pessoal tinha carinho até pelo adversário. Hoje, eu jogo no veterano do Sírio e o nosso grupo é como uma família na qual nunca ninguém brigou com ninguém. A gente sai por aí fazendo atrações beneficentes, ninguém quer nada, só um lugar para se alojar e comer alguma coisa e acabou. Na quadra a gente era um contra o outro, era vida ou morte, mas fora da quadra existia um respeito pela pessoa.