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Zona Leste

A quarta edição do projeto, que se espalha do Sesc Belenzinho pela Zona Leste, propõe uma discussão sobre os rumos da região e das megacidades contemporâneas

Sem dúvida alguma, a zona Leste de São Paulo teve um papel fundamental para o desenvolvimento da cidade. Foi lá que se instalaram, na década de 1920, as grandes fábricas que surgiam a todo vapor em São Paulo. Bairros como Belém, Mooca, Pari e Brás assistiram bem de perto ao primeiro grande impulso industrial da capital paulista. Grandes construções tomavam as ruas, surgiam moradias populares para o operariado e comércio para atender a uma nova demanda de consumo. A efervescência era grande.
Porém, a partir de meados da década de 1950, a região acompanhou quase inerte um longo processo de estagnação econômica. As fábricas rumaram para um novo pólo industrial, situado no ABC paulista, deixando para trás grandes edifícios e uma infra-estrutura bastante razoável. Mas, apesar dessas vantagens e de uma série de outros investimentos que se seguiram a esse período, como estações de metrô, largas avenidas e viadutos, não se alcançou novamente o progresso esperado pelo poder público.
Quem passa hoje em dia por esses antigos bairros fabris tem claramente uma sensação de futuro em suspensão. Mas à medida que a metrópole se integra à rede de cidades globais, a região se mostra propícia a novos grandes projetos de investimento em escala internacional, como o polêmico projeto da SP Tower - um megacomplexo arquitetônico planejado para ocupar dezenas de quarteirões no bairro do Pari.
É esse o cenário escolhido para a quarta edição do Arte/Cidade, que vem sendo planejado desde 1997 com a realização do Sesc São Paulo. "Entendemos essa área como um dos palcos das grandes transformações pelas quais a cidade passará", afirma o curador Nelson Brissac. "O Arte/Cidade quer propor novas formas de discutir as questões da metrópole, por meio do urbanismo e da arte, para gerar modelos de participação, de negociação, e novos instrumentos para conduzir os processos urbanos", completa.
"As intervenções do Arte/Cidade procuram chamar a atenção para a necessidade de recuperar espaços civis degradados, considerando-se não apenas seus aspectos plásticos, mas, necessariamente, os sociais e urbanísticos", afirma Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo. "Sob diferentes formas e em momentos distintos,
a instituição tem estimulado e promovido o exercício de reflexões, a realização de encontros e o desenvolvimento de projetos de arte pública", completa.

Processo
Para esta edição do evento, batizado Artecidadezonaleste, os realizadores convidaram artistas, arquitetos e urbanistas brasileiros e estrangeiros, que projetaram 25 intervenções que ocuparão, de 16 de março a 30 de abril, nove espaços da zona Leste, além da antiga fábrica do Moinho Santista, incorporada pelo Sesc Belenzinho.
Para a gerente da unidade, Elisa Maria Americano Saintive, a incorporação do Sesc Belenzinho no projeto tende a revalorizar uma área urbana cuja história social e produtiva tem particular importância para a população de São Paulo. "Além de seu projeto arquitetônico intrínseco, a unidade converteu-se também em uma das áreas de experimentação estética do Arte/Cidade", afirma. "De um lado, há a implantação de um pólo de cultura permanente, representado pela reconversão da antiga área da Moinho Santista em um centro de atividades sócioculturais, e, de outro, há a possibilidade de usá-lo agora como um local de combinações estéticas múltiplas e de experimentações plásticas condizentes com a dinâmica da cidade".
Durante um ano foram feitos levantamentos das diferentes situações da zona Leste. O critério foi buscar áreas que contivessem as tensões e os processos transformativos característicos da região como um todo. A partir daí, os artistas escolheram as situações com as quais queriam trabalhar.
Entre os convidados do evento, grandes artistas e urbanistas, como Rem Koolhas, que projetou um novo elevador no degradado edifício modernista São Vito; Waltércio Caldas, que concebeu um "antiauditório" no terceiro andar do antigo prédio do Moinho Santista; Carmela Gross, que instalou um painel luminoso atravessando suas janelas; e o alemão Hermann Pitz, que construiu uma imensa maquete de São Paulo com cerca de 45 mil listas telefônicas.

Por trás do caos
Segundo o coordenador do projeto, Ary Perez, os artistas foram convidados a intervir em situações especialmente problemáticas que, na verdade, refletem as dificuldades pelas quais passa não só a zona Leste, mas também toda a cidade. "Essa sensação de caos que nos invade ao visitar a região se caracteriza quando não se consegue compreender a lógica, a dinâmica, os fluxos que estão acontecendo", afirma. "Quando você identifica esses fluxos, percebe que a região é o resultado de séculos de história que foram se acumulando e se cristalizando. E hoje nela convive uma população que interage com isso e com os diversos fluxos urbanos, de energia, de comércio, de desejos, de lixo. São tantos os interesses que, para intervir nessas situações, é fundamental que você tenha a dimensão do que representam esses fluxos." "O Arte/Cidade é muito interessante por essas razões", prossegue Perez. "Trabalhando no contexto urbano, ele propõe a cada artista que consiga identificar esses ritmos, interagir, recortar e intervir nessa dinâmica complexa. A arte consegue fazer essa síntese, consegue ser positiva nesse sentido. Cada um dos trabalhos reflete um conjunto de fluxos e consegue reverberar numa escala urbana, consegue criar uma situação que interfere na vida das pessoas. A arte passa, assim, a ser um instrumento de modificação dos processos e uma finalidade de si mesma", completa.

A arte diante da cidade
Uma preocupação comum a alguns artistas do projeto se refere à organização espacial, à paisagem e às diferentes formas de ocupação da cidade. Em muitos casos, elas têm sido determinadas decisivamente por sucessivas intervenções urbanas do poder público, que afetaram de maneira profunda os territórios sobre os quais foram realizadas. Muitos deles foram condenados à desertificação, ao uso como corredor de passagem, à ocupação informal ou ao completo abandono. Não faltam exemplos de intervenções públicas que geraram grandes catástrofes urbanas. Sobre eles, vários artistas projetaram seus trabalhos.
O projeto do espanhol Antoni Muntadas consiste em colocar placas em diversos pontos da zona Leste considerados desastres urbanos ou sociais. A partir de uma pesquisa, o artista determinou os projetos e as operações que geraram situações críticas, como os incomunicáveis conjuntos habitacionais em Guaianazes, construídos pelo ex-prefeito Reinaldo de Barros (1979-82), ou a construção do viaduto Alcântara Machado, na gestão de Celso Pitta (1997-2000). Concebidas nos mesmos moldes daquelas usadas em inaugurações de obras públicas, as placas trazem os nomes dos responsáveis pelas intervenções e as datas de suas realizações. Além disso, também serão produzidos cartões-postais como os que tradicionalmente retratam os pontos turísticos da cidade. No Sesc Belenzinho, serão montados um grande mapa com a localização das placas e um ponto-de-venda dos postais. "As decisões políticas e econômicas determinaram as situações atuais de desuso, abandono e ruína que levaram a desastres urbanos e à precariedade social", afirma Muntadas.
Já o artista gaúcho Carlos Vergara toma para sua intervenção um espaço considerado urbanisticamente catastrófico, gerado pela implantação mal planejada da estação Brás do metrô. Quando o ramal leste foi construído, desapropriou-se uma grande área no entorno da linha, antes ocupada pelo casario tradicional do bairro. Apesar da construção de alguns conjuntos habitacionais de baixa renda, a região não foi reintegrada e tornou-se um grande vazio urbano em desuso. A equipe do metrô projetou para essa área um grande camelódromo. Por uma série de circunstâncias, mas sobretudo porque pouca gente freqüenta a estação, o espaço nunca foi ocupado para os fins sugeridos.
A intervenção de Vergara pretende instalar no local um conjunto de barracas feitas de vergalhões de ferro intencionalmente inconclusas, de modo que os usuários possam fazer com aquilo o que bem entenderem. "Esse é um trabalho experimental", afirma o artista. "Com ele pretendo abordar não só as questões da zona Leste, mas também do desenvolvimento de São Paulo. Se eu pudesse dominar todas as variáveis, gostaria de fazer uma feira de adivinhações delirante para descobrir qual o futuro daquele lugar", completa.
O ousado projeto do norte-americano Vito Aconcci mexe também com outra área abandonada. Mas não se trata de um território vazio. Desfigurado pela implantação de grandes estruturas viárias e edificações institucionais, o largo do Glicério é hoje parcialmente ocupado por uma população sem moradia. O artista utiliza um viaduto no qual constrói um equipamento de vivência para a população que habita o local. Trata-se de um dispositivo urbano-arquitetônico cujas paredes, revestidas de material semitransparente, evidenciam a precariedade da situação e a exposição pública a que estão sujeitos os moradores de rua.
Equipamento para os usuários da região também é a proposta do artista polonês Krzysztof Wodiczko, que projetou veículos para o que chama de "nômades urbanos contemporâneos" - na verdade, migrantes, sem-teto e estrangeiros que transformam as cidades ao inserirem suas histórias na configuração e no discurso urbano. "São táticas de sobrevivência desenvolvidas a partir das especificidades de cada terreno, que visam também destacar a voz, as experiências e a presença daqueles que são silenciados e marginalizados", afirma Wodiczko. "São dispositivos que rompem a percepção corrente dos excluídos, que expõem a escandalosa situação a que são submetidos e, sobretudo, instauram um diálogo entre seus operadores e aqueles que têm lugar na sociedade", conclui.


Arte sem fronteiras
O diálogo entre a arte e a cidade contemporânea

A quarta edição do Arte/Cidade, que invade diversos espaços da zona Leste a partir de 16 de março, é, sem sombra de dúvida, a mais ousada e elaborada de todas as anteriores. "Houve uma nítida evolução. Sem dúvida, houve um enorme amadurecimento dos projetos", afirma o curador Nelson Brissac. A primeira edição do Arte/Cidade aconteceu em março de 1994 nos galpões do antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana, que depois se tornaria a Sala Cinemateca. Entre os artistas participantes, o cineasta André Klotzel, o músico Livio Tragtenberg e artistas plásticos como Carlos Fajardo, Marco Giannotti e José Resende. A segunda edição aconteceu alguns meses depois no vale do Anhangabaú, reunindo novamente artistas de diferentes meios, como o videomaker Tadeu Jungle, o multimídia Wilson Sukorski e a artista paulistana Lenora de Barros. Para a terceira edição, que já contou com a participação do Sesc São Paulo, os organizadores se apropriaram de uma linha de trem que liga a estação da Luz a dois pontos de vital importância para o desenvolvimento da cidade: o Moinho Central e as Indústrias Matarazzo. No percurso, pôde-se conferir o trabalho de nomes como Laura Vinci e Evandro Carlos Jardim.