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Manifestação de fé em ritmo de folia

Homenagens dos Reis Magos ao Menino Jesus deram origem a tradição secular

FRANCISCO LUIZ NOEL

O rito se repete de norte a sul, antes e depois do Natal: ao som da cantoria dolente e ritmada por instrumentos de corda e percussão, com ar de devoção e fardas da mesma cor, os fiéis saem às ruas a passo lento, entram de casa em casa e, diante do presépio, prestam reverência ao Menino Jesus. Por conta da dimensão continental e da diversidade cultural do país, variam os cantos, a base instrumental e o papel de alguns personagens da representação. Dependendo da região, muda também o nome do périplo dos devotos – terno de reis, pastoral do Senhor Menino, lapinha, companhia de reis e, o mais comum, folia de reis. Renovada ano a ano, a tradição de reviver o episódio bíblico dos Reis Magos é uma das manifestações populares mais difundidas do Brasil.

A peregrinação dos foliões pelas ruas e residências é costume do período natalino e da virada do Ano-Novo para milhões de brasileiros, seja em pequenos municípios, seja em cidades de médio e grande porte, como Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Os mineiros, pela força local do catolicismo desde os tempos do ouro, no século 18, formam o mais numeroso contingente de praticantes e adeptos. “Temos mais de 4 mil grupos, contando os de folias e de pastorinhas”, afirma a diretora social da Federação das Folias de Reis de Minas Gerais, Dadá Diniz, que participa da Folia de Dona Guidinha, criada pela mãe, no bairro Caiçaras, na capital. Em oposição à hegemonia masculina, as formações de pastorinhas são exclusivamente femininas, numa das muitas versões desse folguedo de natureza devocional.

As folias paulistas também são numerosas. “Temos mais de 400 grupos, com incidência maior no norte do estado”, observa a vice-presidente da Comissão Paulista de Folclore e ex-presidente da Associação Brasileira de Folclore, professora e musicóloga Neide Rodrigues Gomes. Por trás da força da folia na região está a vizinhança com Minas, de onde a manifestação foi trasladada pela migração. “Onde há mineiro, pelo menos um da família já cantou numa folia”, assinala Neide, que há mais de 50 anos pesquisa o tema. Autora de um livro sobre o grupo de Platina, no oeste do estado, ela participa do resgate da manifestação em Joanópolis, no leste paulista, onde reside. A folia local voltou a sair em 2006, após recuperar temas e melodias adormecidos na memória popular. “Em 2008, visitamos 90 casas”, orgulha-se a professora.

A diversidade é tão marcante na folia de reis quanto sua ocorrência generalizada país afora. Exemplo são as variantes mineiras, que começam a visitar as casas em dezembro e coroam a campanha em 6 de janeiro, dia consagrado aos Reis Magos referidos na Bíblia. “Uma forma de folia é a de caixa, com esse instrumento de percussão; a outra é a folia de boi, com a figura do animal, por influência do bumba meu boi”, explica o professor Domingos Diniz, integrante da Comissão Mineira de Folclore. A distinção dos grupos em duas grandes correntes, porém, é apenas o início da diferença. No instrumental, que inclui viola, violões e pandeiro, a rabeca é destaque nas folias de caixa da região do rio São Francisco, enquanto a sanfona predomina no oeste e em outras áreas de Minas.

Diante de tantas variações, Neide Gomes resume o ponto comum: “O objetivo é sempre o mesmo: comemorar o nascimento de Jesus. Em cada região se canta isso de forma diferente, além de variarem os instrumentos. Há folias até com pífanos, no nordeste. Algumas apresentam as figuras dos Reis Magos. E há também folias só de palhaços”. De significado ambíguo, esses personagens mascarados são atração na maioria dos grupos, dançando entre o bem e o mal. Tanto podem representar os soldados de Herodes, prontos para matar o Menino ou já convertidos a Jesus, quanto os reis Melquior, Baltasar e Gaspar, disfarçados na companhia de José, Maria e do bebê divino.

Outra distinção entre as folias é o ritmo da cantoria, puxada pelo mestre, guardião dos versos herdados dos mais velhos. “A história é a mesma, mas muda a toada”, assinala Clenilza Ferreira Silva, filha e mãe de mestres reiseiros de Macuco, no centro-norte do estado do Rio de Janeiro. Seu filho João, de 13 anos, comanda a folia Estrela Cadente; o pai dela, João Ferreira, a Estrela do Dia. “A batida aqui na região é mais corrida; em Minas, é mais melancólica”, compara. As variações ocorrem mesmo entre áreas próximas, como o centro-norte e o noroeste fluminense, exemplifica Clenilza, bandeireira da folia paterna. “Nossas bandeiras têm a imagem do presépio e são levadas sem movimentos; já em São Fidélis há bandeiras com Jesus de um lado e São Sebastião do outro, e o bandeirista sai fazendo acrobacias.”

Devoção e promessa

Apesar do nome, folia de reis é coisa séria. Sua prática deriva de devoção ou promessa quando a criação do grupo se deve a retribuição do líder a uma cura ou outra graça divina. Muitas folias devocionais surgiram assim e perduraram após a quitação das promessas, que devem ser pagas por sete anos, sob pena de represália do além. Encabeçada pelo mestre, folião-guia, reiseiro ou embaixador, cada folia tem como símbolo máximo a bandeira, um estandarte colorido com a estampa de um protetor – Jesus, um santo, Nossa Senhora, os três reis ou a estrela que os guiou a Belém. Ao mestre e ao contramestre juntam-se, atrás, foliões com instrumentos e personagens que variam de região para região, como os reis, pastorinhas, coroinhas e os saltitantes palhaços, com suas fardas multicoloridas e máscaras horripilantes.

Nem todos os grupos incluem o palhaço, embora ele seja presença recorrente, sozinho, em par e até em trinca. A ausência do personagem, também chamado de mascarado e bastião, caracteriza as formações conhecidas como ternos de reis, em estados como Espírito Santo e Minas Gerais. “O terno não tem palhaço porque, embora conte também a viagem dos reis, não canta a perseguição ao Menino Jesus”, explica a pesquisadora capixaba Joelma Consuêlo Fonseca e Silva, observando que os 12 grupos de terno de reis do estado têm origem italiana, diferenciando-se também por cantar em estilo coral. Em Minas, assinala o professor Domingos Diniz, há vários grupos de folia que não usam a figura saltitante e irreverente do palhaço, em municípios das regiões do alto e médio São Francisco e do alto Paranaíba.

Em folias paulistas e mineiras, os palhaços vão adiante, enquanto nas fluminenses ficam na retaguarda, proibidos de ultrapassar a bandeira. A ambiguidade da figura é apontada pelo professor e pesquisador Daniel Bitter, autor de tese de doutorado sobre as funções rituais da bandeira e da máscara, premiada em primeiro lugar, em 2008, no Concurso Sílvio Romero de Monografias do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan): “Num determinado momento, os palhaços devem pedir perdão ao Deus Menino e, para isso, retiram as máscaras para se aproximar do altar onde estão as imagens dos santos. Ocorre uma conversão simbólica e se diz que os palhaços se transformam nos Reis Magos. O palhaço ocupa lugar importante no sistema ritual, ao afirmar a superioridade moral do bem sobre o mal”.

As folias remontam aos tempos medievais, trazidas da península Ibérica pelos portugueses, no século 18. As mais antigas menções a elas em língua portuguesa aparecem em autos do dramaturgo Gil Vicente, no início do século 16, como assinala Neide Gomes. “A folia de reis conta os cinco passos do nascimento de Jesus: a anunciação do anjo Gabriel à Virgem Maria, a revolta de José com a gravidez da mulher, a chegada do casal a Belém da Judeia para o censo dos romanos, a visita dos três reis do Oriente, confirmando a chegada do Messias, e a ida da família para o Egito, fugindo dos soldados de Herodes, que mandara matar os recém-nascidos”, diz a professora, explicando o enredo inspirado no Evangelho de São Mateus. No Brasil, tambores e outras contribuições africanas ampliaram a força da manifestação da religiosidade popular.

A folia era praticada no país já na década de 1740, atestam relatos transcritos pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo. Em Festas e Tradições Populares do Brasil, de 1901, o historiador Mello Moraes Filho descreve o ritual numa véspera do Dia de Reis na Bahia, onde é conhecido como lapinha: “Dessa noite em diante, os cantadores de reis percorrem a cidade cantando versos de memória e de longa data. Esses ranchos compõem-se de moças e rapazes de distinção; de negros e pardos que se extremam, às vezes, e se confundem comumente. Os trajes são simples e iguais: calça, paletó e colete branco, chapéu de palha ornado de fitas estreitas e compridas, muitas flores em torno etc.; as moças, de vestidos bem feitos e alvos, de chapéus de pastoras; precedendo-os na excursão, habilíssimos tocadores de serenatas”.

Tradição artesanal

Muitas folias mineiras mantêm a tradição dos tambores forrados com couro, que produzem som mais rouco. Entre as fluminenses, o náilon produz sonoridade mais estridente. Um dos motivos da adesão ao produto sintético é a natureza itinerante das folias, que saem às ruas em época pródiga em temporais e precisam ter zelo redobrado na proteção dos instrumentos quando caem os aguaceiros. “O couro, quando molha, fica frouxo e não dá para tocar. O grupo de meu pai já voltou para casa no meio de uma jornada, porque o couro estava tão molhado que só se ouvia o toque da sanfona”, conta a fluminense Clenilza. “De couro, só o pandeiro e um lado dos bumbos. No outro, o pessoal daqui põe náilon, para não ficar na mão se chover forte.”

Minas Gerais preserva, em vários municípios, a confecção artesanal de instrumentos usados na folia de reis e em manifestações como as festas do Divino e do Bom Jesus ou a dança de São Gonçalo. Uma das produções de destaque está em São Francisco, norte do estado, por conta de violas, rabecas, caixas e pandeiros criados pelas mãos de mestres artesãos com materiais e técnicas tradicionais. Outra arte valorizada é a das máscaras, principal atributo dos palhaços na função de atrair a atenção na peregrinação das folias. No Rio de Janeiro, um dos criadores de máscaras mais requisitados é Manoel Batista Cordeiro Neto, de 31 anos, de Miracema, na região noroeste. Batista, que herdou o ofício do pai, produz mais de 60 máscaras por ano. Sua fama se estende à Zona da Mata mineira e ao sul capixaba.

As máscaras são feitas com couro de boi curtido, ornamentado com produtos como espuma colorida e ponta de rabo de boi, nas sobrancelhas e bigodes. “Meu pai, antigamente, usava couro de preguiça, tamanduá ou quati”, conta Batista, que amacia o rabo de boi com sabão em pó, xampu e óleo de ovo ou de uva. Ele recebe pedidos o ano todo, sobretudo a partir de setembro, e só deixa de fazer máscaras às vésperas do Carnaval, quando se dedica a alegorias para essa festa, e na Quaresma. Dependendo da complexidade e do tipo da encomenda, os preços das criações variam de R$ 150 a R$ 250.

“A procura aumenta, mas não faço mais por falta de quem ajude. Corto o couro, pinto, espero secar, colo – é tudo por minha conta”, diz o artesão, que também trabalha como servente de obras na Região dos Lagos. Criando para os palhaços há 16 anos, Batista encarnava o personagem desde criança, ao lado do pai. Há quatro anos, abalado pela morte de um amigo palhaço, trocou a função pela de violonista na octogenária Folia Costa Melo, no município mineiro de Recreio. A participação no grupo é herança do pai, Mané Gato, que, sem recursos para fazer uma farda vistosa de palhaço, ganhou a indumentária de um fazendeiro local.

Do campo para a cidade

A cada residência, o ritual do mestre e demais integrantes se repete, assim como a acolhida hospitaleira. Criado numa fazenda em Pirapora (MG), o professor Domingos Diniz relata a cena, que se acostumou a testemunhar desde criança, nos anos 1930: “Depois que a folia bate as caixas e entoa o canto de chegada, do lado de fora, o dono da casa abre a porta, recebe a bandeira, passa com ela por todos os cômodos, para proteção da moradia, e a coloca num bom lugar na sala, onde os foliões cantam na frente do presépio. Quando acaba, o anfitrião oferece um café, serve uma cachacinha e dá uma esmola para a festa. Na roça, por vezes um fazendeiro oferece um boi ou um capado, porque festa popular tem de ter muita comida, para quem chegar”. Quando o giro pelas moradias termina, às vezes depois de varar a madrugada, prega o costume que os foliões nunca voltem pelo mesmo caminho.

A tradição reza que a época das folias começa em 24 de dezembro, na noite de Natal, e termina em 6 de janeiro, Dia de Reis, com uma grande e farta comemoração – a festa de arremate. Em muitos lugares, no entanto, os grupos saem em 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, e estendem o giro às casas até 20 de janeiro, dia de São Sebastião. No interior do Rio de Janeiro, algumas folias só encerram a campanha em abril ou maio. Fora da época tradicional, mestres como Geraldo Abel, da Folia Três Reis do Oriente, do município de Duas Barras, no centro-norte, versejam sobre outros temas bíblicos consagrados no imaginário popular. Entre eles, a fuga dos judeus para o Egito, os 12 apóstolos e a ressurreição de Cristo.

Outra frente de apresentação extemporânea dos grupos são os encontros de folias de reis, que se espalharam por vários estados, ao longo de todo o ano. O mais antigo ocorre no Espírito Santo há 59 anos, em Muqui, no sul do estado. Com 14 mil habitantes e um rico acervo de casarões históricos dos tempos do café, que atingiram o auge na década de 1920, o município recebe, em outubro, dezenas de grupos capixabas, mineiros, fluminenses e paulistas. No encontro de 2008, o maior dos últimos anos, foram cem folias participantes. “Só foliões, foram 1,5 mil. Ao todo, recebemos quase 8 mil pessoas”, orgulha-se o secretário municipal de Cultura, José Antônio Wencioneck. No Espírito Santo, pelo menos 65 folias estão em atividade.

Os foliões já têm itinerário certo em Muqui. Eles chegam cedo, em ônibus alugados por prefeituras, e confraternizam em torno de um café da manhã no centro. Após o almoço, desfilam pela rua principal, cercados pela multidão, e se concentram dentro da Matriz de São João Batista, onde a devoção popular é sacramentada por uma missa. Somente não entram na igreja os palhaços, que, como encarnação do profano, esperam fora a saída das folias. De volta às ruas, os grupos se dividem em giros pelas casas, brindados com lanche após a função ritual diante dos presépios. No fim da festa, na praça central, as folias recebem troféus e bônus em dinheiro da prefeitura.

Os encontros nas grandes cidades – entre elas São Paulo e Brasília – demonstram como a tradição acompanhou o êxodo rural no século 20, passando a conviver com formas culturais da modernidade urbana. “Nesses novos contextos em que o status dos migrantes na estrutura social é incerto, as folias de reis assumem papel central no fortalecimento da solidariedade e das identidades locais”, assinala o pesquisador Daniel Bitter. Durante a produção de sua tese de doutorado, Daniel estudou a Folia de Reis Sagrada Família, da Mangueira, berço da famosa escola de samba do Rio de Janeiro. Rabequista, ele testemunhou no local a importância da manifestação para os moradores da comunidade.

A folia mangueirense chegou ao Rio com o fluxo migratório dos anos 1940, cumprindo um percurso semelhante ao de outras igualmente ativas nos centros urbanos. Da zona rural de Laranjal, município de 6,5 mil habitantes na Zona da Mata mineira, famílias inteiras mudaram-se para a Mangueira em busca de empregos e levaram junto o ritual, formando duas folias na favela. Na Sagrada Família, com 20 integrantes, a tradição é zelada pelo mestre Hevalcy Ferreira da Silva, neto da primeira geração de migrantes. Portando chapéu encimado por coroa colorida, os foliões combinam viola caipira com sanfona de oito baixos, secundados pela percussão, diferenciando-se de outros grupos da capital do estado e da Baixada Fluminense, que usam quepe e tocam acordeão.

Manter uma folia não é fácil e exige dedicação permanente, observa Hevalcy, expressando o orgulho comum aos mestres, quase sempre às voltas com dificuldades materiais para pôr seus grupos na rua. Todo ano, na noite de Natal, a Sagrada Família visita dezenas de casas na Mangueira. “A gente faz por amor e devoção, mas tem de meter a mão no bolso”, diz, referindo-se ao reduzido poder aquisitivo dos foliões e às despesas, como a confecção e a lavagem de fardas, manutenção de instrumentos, transporte e alimentação dos integrantes. A folia, que já se apresentou no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e em unidades cariocas do Serviço Social do Comércio (Sesc), costuma visitar outras favelas do Rio e municípios da Baixada, além de participar de encontros em outros estados. Prova de que, mesmo com as adversidades, as folias de reis resistem.

 

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