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Renato Ortiz





Professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Renato Ortiz se dedica à pesquisa nas áreas de globalização, ideologia e cultura desde o fim da década de 1980. O sociólogo é autor de Cultura Brasileira e Identidade Nacional (Brasiliense, 1998), A Moderna Tradição Brasileira (Brasiliense, 1994) e Mundialização e Cultura (Brasiliense, 1996), entre outros.

Em entrevista à Revista E, ele afirma que é um erro pensar que a globalização extinguiria a diversidade cultural. “Fica evidente hoje que o processo de globalização constitui uma totalidade na qual as diferenças se manifestam”, explica. “O mundo é um todo, mas nada tem de homogêneo. Tampouco ele é plural, como diziam os pós-modernos. As diferenças encontram-se hierarquizadas e constituem relações de poder bem determinadas.”

Graduado na Universidade de Paris 8, é doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e pós-doutor na mesma área pela Columbia University, em Nova York.


Nos últimos anos a indústria cultural ganhou imenso poder, com uma musculatura econômica poderosa. Principalmente para os americanos. Até que ponto ela pode ser considerada um braço avançado de poder, de formação de mentes?

No contexto das sociedades contemporâneas, existem diversas instâncias de socialização das pessoas, ou seja, diversas instituições que “formam suas mentes”. Igreja, família, Estado, escola. A indústria cultural é uma dessas instâncias. Por outro lado, ela não é homogênea, oferece um conjunto de bens simbólicos os mais diversos, de filmes de [Federico] Fellini a Silvester Stalone, de Carta Capital a revista Veja.

Não há dúvida de que nas últimas décadas a relação entre cultura e economia se acentuou. A produção de bens simbólicos em escala nacional e transnacional tem o mercado como espaço privilegiado de sua materialização. Isso implicou a consolidação dos grandes conglomerados transnacionais, o desenvolvimento da sociedade de consumo, o que reforça os laços entre cultura e economia.

Creio, porém, que o poder da indústria cultural não é tanto político, em termos partidários, mas de definição dos padrões culturais dominantes. O processo de mundialização da cultura revela justamente este aspecto, a constituição de uma “crença”, um consenso hierárquico em relação ao que seria o mundo.


Os americanos descobriram o uso do cinema como cartão de visitas do chamado american way of life. Os produtos da cultura americana são dominantes na maioria dos países. Eles continuam a usar a cultura como meio de vender seu padrão e seus valores, embora isso seja sabido mundo afora. Mesmo assim são consumidos e admirados. Como se explica essa subserviência consentida?

A pergunta pressupõe algo que era certamente verdadeiro nos anos de 1950, mas neste início do século 21, com o processo de globalização, e a perda relativa de poder dos Estados Unidos, dificilmente eu diria que o american way of life é um ideal a ser perseguido. Sobretudo conhecendo a realidade atual norte-americana: baixo crescimento econômico, crise política, desemprego e aumento da pobreza.

Isso não significa que certos produtos americanos não sejam hegemônicos no âmbito mundial. É o caso do cinema. Hollywood inventou um padrão de filmes que se tornou dominante. Não se trata apenas de um tipo de narrativa cinematográfica, o circuito internacional de difusão de filmes é dominado pelas empresas americanas. No entanto, o mesmo não ocorre com a televisão.

As produções americanas têm dificuldade em conquistar os mercados nacionais, dominados geralmente pelas programações locais. Não se deve esquecer ainda que a própria noção de “americanidade”, “brasilidade”, “japonidade” se transforma com o processo de globalização. Madonna já não é mais americana, assim como Gisele Bündchen não é brasileira, ou Pokemon é japonês.

Eles são personagens-?-ícones desterritorializados de seus lugares de origem. Do ponto de vista cultural, certamente os Estados Unidos possuem uma grande vantagem quando comparados a outros países. Principalmente quando o inglês se torna o idioma da modernidade-mundo. Mas estamos distantes dos tempos do imperialismo cultural ou da sedução do american way of life.


Sempre que há um movimento de proteção à cultura brasileira, em especial o cinema, há uma corrente que critica a ação falando em nacionalismo. No entanto, sabe-se que a cultura é ponto importante na constituição das nações, na sua identidade. O que pensa a respeito?

Isso é um problema ideológico. Os críticos, ao se afastarem do que eles consideram como provincianismo nacionalista, cultivam a ilusão de serem cosmopolitas, cidadãos do mundo. Diante da estreiteza da visão particular, afirma-se pretensamente um universalismo abstrato. No caso brasileiro, existe ainda a herança colonial, isto é, o fato de o país situar-se na periferia.

A valorização do estrangeiro termina sendo um elemento de autoafirmação. Basta, porém, conhecermos a história do cinema nos Estados Unidos para percebermos que a indústria de Hollywood garantiu sua produção internacional afirmando-se como nacional, norte-americana. Os mecanismos de protecionismo foram vários. Por outro lado, os europeus contam com inúmeras estratégias para o desenvolvimento de um cinema endógeno. Somente na província a defesa do universalismo coincide com a tolice hollywoodiana.


Dizia-se que a globalização iria extinguir as culturas locais. O senhor concorda com esse diagnóstico?

Claro que não. A globalização é uma totalidade que nos envolve a todos, ela cria uma nova situação. Sua abrangência é global, mas isso não significa que o mundo seja homogêneo. A situação de globalização redefine o nacional e o local, mas não os elimina.

O Estado-nação não irá desaparecer; no entanto, ele já não mais afirma como antes a sua soberania, por exemplo, diante dos mercados financeiros, o mesmo é válido para as culturas locais. Muitas delas, vinculadas ao turismo, vão se aproveitar dos recursos disponíveis em âmbito global para se afirmarem como valores locais. Por isso a diversidade cultural se transformou no emblema da modernidade-mundo. A discussão da diversidade só faz sentido num mundo que se globalizou. Valoriza-se a diferença por que estamos todos na mesma situação.


O mundo digital dinamitou a indústria fonográfica. O senhor acredita que o mesmo será com as demais áreas da indústria cultural?

O advento da tecnologia digital transformou a organização dos antigos meios de comunicação. A indústria fonográfica é um exemplo, mas também outras esferas são afetadas, é o caso do domínio editorial. Tanto os jornais, revistas, livros, começam a privilegiar a leitura digital e prescindem do suporte papel.

Pode-se dizer o mesmo das imagens. Isso implica a reorganização do setor audiovisual. Porém não sejamos ingênuos. As grandes organizações transnacionais da indústria fonográfica, da televisão, do telefone, as editoras globais, não apenas permanecem como expandem seus negócios dentro desse novo marco tecnológico e mercadológico. Apesar de toda a flexibilização da produção musical, o mercado global é dividido entre um número exíguo de majors.


Através da internet se consegue facilmente ouvir a música feita hoje nos pontos mais distantes do planeta. Acredita que o mundo digital tenha democratizado o acesso à cultura?

O problema é que o conceito de democracia não coincide com a ideia de expansão nem se esgota nela. É difícil dizer que a Rede Globo constitui um instrumento de democratização cultural, embora o público da telenovela seja considerável.

Não quero dizer com isso que não exista uma relação entre a intenção democrática e a expansão de determinados bens culturais; ela existe e pode ser explorada pelas políticas culturais, por exemplo, pela inclusão digital. Mas isso não significa a existência de uma sociedade mais democrática em termos políticos; significa que muitas pessoas estarão usufruindo de algo que pode, e eu acrescentaria, deve, ser distribuído em escala ampliada.

A internet como metáfora da democracia é uma falácia. A emergência do mundo digital traz certamente novas formas de se “fazer política”, mas a democracia não é uma questão de tecnologia. Pensar dessa maneira seria reduzir os dilemas humanos às conquistas da técnica.


Acredita numa crise de mediação? A mídia sendo açodada pelos blogueiros, pelas redes sociais, os partidos sem conseguir comandar as massas?

Não vejo por que falar em crise. Trata-se de novos meios de mediação entre as pessoas e as instituições. Evidentemente, o advento da internet abriu diversas possibilidades para fazer política. Os grupos se mobilizam através de um espaço que é simultaneamente atravessado pelos interesses públicos e privados. Isso transforma a legitimidade e o alcance das instâncias de comunicação.

Já não vivemos na era da imprensa como o quarto poder. O que é dito em nome de uma pretensa opinião pública, expressa nos jornais, é negado por grupos que atuam na internet. O mesmo ocorre com os partidos, eles não possuem o monopólio das opiniões.

Isso já ocorria antes, diferentes partidos se digladiavam entre si, a internet acrescenta outra camada de conflitos. Mas as redes sociais tampouco têm o monopólio das opiniões. E os jornais e os partidos também se apropriam das vantagens da internet. Temos assim uma diversificação dos atores e das opiniões, o que de uma certa forma amplia a esfera da sociedade civil.


A cultura de massas é o que dominará daqui para frente? Ou o mundo globalizado é uma arma contra os seus instrumentos?

Já não vivemos num mundo de cultura de massas. O conceito tornou-se impróprio para se compreender nossa contemporaneidade. O processo de globalização não significa massificação. Pelo contrário, ele pressupõe a ideia de diversidade. As bolsas Gucci são produtos globais, mas nada têm de “massa”, elas são vendidas em todo o planeta nas boutiques de luxo.

A MTV não é uma televisão de massa, mas uma proposta internacional cujo interesse é vincular os “jovens” a um determinado mercado de consumo. Por isso o ícone de nosso tempo já não é mais a televisão, mas a internet.Computador, tablet e celulares são as portas de entrada num mundo global que se diversificou.

A cultura seria um reflexo da economia? Há alguma relação entre riqueza, faustos econômicos, e picos culturais? A Renascença, por exemplo. Ou os EUA das décadas de 1950 e 1960.

Sim, existe uma relação entre riqueza e cultura. Mas seria de um reducionismo incrível a considerarmos como reflexo da economia. As manifestações artísticas renascentistas encontram-se associadas ao esplendor das cidades italianas.

A dimensão econômica, particularmente as trocas comerciais, é fundamental para o desenvolvimento desta Itália de cidades-estado. No entanto, para que exista uma arte renascentista, são necessárias muitas outras coisas: o mecenato dos nobres e da Igreja, a existência de artesãos talentosos, uma redefinição dos tempos históricos que valorize a Antiguidade greco-romana. A esfera cultural não vive apenas do PIB dos países ou das revoluções tecnológicas.


A telenovela é apresentada como um dos maiores produtos da indústria cultural brasileira. No Brasil atual, fortemente urbano, mais rico e conectado, a telenovela permanecerá com essa primazia?

Provavelmente. A telenovela é uma narrativa televisiva que deu certo, ou seja, é apreciada e altamente lucrativa. Dificilmente esse formato exitoso seria abandonado pelas empresas televisivas num contexto de forte concorrência e de transformação dos meios audiovisuais.

O advento da televisão a cabo, da internet, da transmissão de imagens nos telefones celulares, quebra a hegemonia da televisão como ícone cultural. Não que a televisão aberta irá desaparecer ou não seja importante, mas ela sofre, e isso irá se intensificar com os avanços tecnológicos, uma concorrência incrível de outros meios de comunicação ou formas de entretenimento.


Chico Buarque, no documentário Vinícius (2005), de Miguel Faria Jr., sobre Vinicius de Moraes, dizia que o poeta, no mundo atual, seria considerado uma figura fora dos padrões, talvez sequer fosse tolerado. O que leva a sociedade atual a buscar, e forçar, a homogeneização de comportamento?

Talvez, entre todas as artes, a poesia seja das mais autônomas. Ela se alimenta de palavras e sons. O conteúdo é importante apenas quando trabalhado por eles. Ao poeta é permitido falar das coisas que nos cercam, desde que processadas pela linguagem. A poesia é inteiramente inútil.

Num mundo em que tudo se encontra submetido à utilidade, política ou mercadológica, a poesia tem dificuldade de encontrar seu lugar. O poeta é uma figura fora dos padrões, ele nada solitário contra a corrente.


O senhor prefere o termo mundialização à globalização. O que há de diferente na mundialização?

Trata-se de uma questão conceitual. Quando estava escrevendo Mundialização e Cultura, havia poucos textos sobre a problemática da globalização. Como minha intenção era trabalhar a esfera da cultura, eu me defrontava com um problema teórico.

Era preciso, por um lado, vinculá-la às transformações econômicas e tecnológicas em curso, e, por outro, evitar o reducionismo (a cultura seria o mero reflexo da economia e da técnica). A literatura falava de global economy e global technology, mas eu me perguntava: existiria uma global culture? Minha resposta foi: não. Na esfera cultural manifestam-se uma diversidade de culturas e de concepções de mundo.

Por isso prefiro dizer que existe um processo de mundialização da cultura associado à globalização econômica e tecnológica. No interior desse processo são engendrados padrões culturais mundiais que se tornam hegemônicos, mas isso não elimina a diversidade.

Fica evidente hoje que o processo de globalização constitui uma totalidade na qual as diferenças se manifestam. O mundo é um todo, mas nada tem de homogêneo. Tampouco ele é plural, como diziam os pós-modernos; as diferenças encontram-se hierarquizadas e constituem relações de poder bem determinadas.

“A emergência do  mundo digital traz certamente novas formas de se ‘fazer política’,  mas a democracia não é uma questão de tecnologia. Pensar dessa maneira seria reduzir os dilemas humanos às conquistas da técnica”

“Madonna já não é mais americana, assim como Gisele Bündchen não é brasileira, ou Pokemon é japonês. Eles são personagens-ícones desterritorializados de seus lugares de origem”

“O processo de globalização  não significa massificação. Pelo contrário, ele pressupõe  a ideia de diversidade. As bolsas Gucci são produtos globais, mas nada têm de ‘massa’, elas são vendidas em todo o planeta nas boutiques de luxo”


“Num mundo em que tudo se encontra submetido à utilidade, política ou mercadológica, a poesia tem dificuldade de encontrar seu lugar. O poeta é uma figura fora dos padrões, ele nada solitário contra a corrente”