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O mais paulista de nossos escritores

por Cecilia Prada

A Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, foi durante mais de 20 anos – da década de 1980 até meados dos anos 2000 – local de encontro sistemático de intelectuais nas manhãs de sábado. Principalmente escritores e jornalistas não deixavam de marcar ponto na galeria, agrupados em disponíveis mesinhas do lado de fora da loja então única de Pedro Herz. Sem contar, é claro, numerosos eventos e festas também proporcionados naquele espaço pelo livreiro – no mais das vezes regados generosamente com uísque importado. Figura obrigatória e em torno da qual se amarravam conversas animadas tornou-se aquele que poderíamos chamar “o mais paulista dos escritores” – o homem que durante os 74 anos que viveu amou a capital paulista e sua gente de modo tal que, com a enorme bibliografia que deixou, dedicou a elas um verdadeiro monumento fervilhante de vida: Marcos Rey (1925-1999).

Seus livros de ficção somam 40, entre contos, novelas e romances para adultos e uma coleção – capital para o gênero – de infanto-juvenis. Escreveu também obras paradidáticas, uma autobiografia e muitos textos para televisão – com destaque para séries famosas, como O Sítio do Picapau Amarelo, adaptação de livros de Monteiro Lobato, e diversas novelas –, roteiros e argumentos cinematográficos, sem contar os seis filmes adaptados de romances seus e cinco peças teatrais.

Todos os que se tornaram amigos daquele extraordinário conversador e animador e que partilhavam sua atividade de escritor estranhavam como podia Marcos escrever tanto com suas mãos deformadas, com aqueles dedos retorcidos. Só vivia para escrever. E para frequentar, desde mocinho, a vida boêmia da capital – sem dispensar um só dia seu grande combustível, o uísque. Reclamou sempre, até o fim da vida, de não poder dedicar-se somente àquilo de que mais gostava, isto é, ao tipo de ficção para adultos que nos legou, por exemplo, com Memórias de um Gigolô, O Enterro da Cafetina, Malditos Paulistas, Ópera de Sabão, O Último Mamífero do Martinelli (foram 16 seus livros desse gênero).

Marcos foi sempre obrigado a trabalhar exaustivamente, e mesmo em gêneros nada nobres, como roteiros de pornochanchadas, para poder viver. Só conseguiu liberar-se desse sistema, por ter alcançado estabilidade financeira, poucos anos antes de morrer. Assim mesmo confidenciava aos amigos sua mágoa pelo fato de suas obras para jovens – nas quais também exercia seu grande talento – terem encoberto sua “verdadeira literatura”, feita para adultos. Em 1995, quando completou 70 anos, sua editora mais importante, a Ática, ofereceu-lhe um grande banquete, magnífica festa à qual aderiram amigos e personalidades da cidade. Nessa noite, ao cumprimentar-me, ele cochichou: “Eu preferia que em vez deste gasto todo, eles se dispusessem a reeditar meus livros para adultos”.

As mãos de Marcos escondiam realmente um mistério. Como conseguia trabalhar tanto, em uma inseparável Remington portátil, e mais tarde no computador, apenas com dois dedos retorcidos? Tinha dificuldades também no andar, vacilante – apoiava mal os pés e às vezes necessitava amparar-se em alguém. Atribuíamos esses problemas a uma vaga doença que o teria atingido na infância – conforme dizia –, talvez poliomielite, talvez reumatismo deformante.

Nunca duvidamos – e tampouco os médicos seus amigos, como João Sergio Telles ou Humberto Mariotti – do grande segredo, rigorosamente guardado no seio da família mais próxima, seus pais e irmãos, e sua mulher, Palma – a qual somente após sua morte, como ele queria, o revelaria, demonstrando quanto na verdade sua vida tinha sido difícil e heroica: Edmundo Donato (seu verdadeiro nome) tivera lepra na juventude e dela guardava as sequelas. Internado à força em um leprosário aos 16 anos, fugira de lá aos 20 e fora obrigado a esconder sua identidade e escapar do cerco policial durante mais de dez anos, apesar de não transmitir mais a doença, porque as leis rigorosas do tempo impunham o confinamento absoluto em asilos que não deixavam nada a dever aos campos de concentração nazistas.

Da maldição à glória

Após a morte do homem a quem amara e ajudara durante quase 40 anos de casamento, Palma Bevilacqua Donato cumpriu os dois outros desejos que Marcos expressara: ser cremado e que suas cinzas fossem espalhadas por um lugar onde houvesse “pedra, concreto”. De um helicóptero, ela escolheu o único lugar que lhe parecia adequado para espalhar as cinzas daquele que tanto escrevera sobre sua cidade: o centro velho, principalmente a zona boêmia, das elegantes boates de Vila Buarque à Boca do Lixo dos marginais e do cinema brega, dos quais ele extraíra sua imensa galeria de personagens, em 46 anos de atividade literária constante – seu primeiro livro, a novela Um Gato no Triângulo, é de 1953.

Nos anos seguintes, ela cumpriu a promessa de revelar o segredo da vida de Edmundo aos numerosos amigos e ao público em geral. Mais do que isso: passou logo a procurar um escritor que se encarregasse de escrever sua biografia acidentada. Tenho conhecimento de que não deixou inclusive de lançar seu pedido às mais altas esferas literárias, até mesmo ao Prêmio Nobel Gabriel García Márquez e ao futuro Nobel Mario Vargas Llosa.

Quem se apaixonou pelo tema e acolheu o pedido de Palma acabou sendo o jornalista Carlos Maranhão, da “Vejinha”. Tirando um período de licença no emprego, Maranhão dedicou seu tempo à pesquisa dos detalhes da vida do biografado, reunindo depoimentos de parentes, ex-colegas de internamento, personalidades da época, intelectuais e artistas que o conheceram. O livro Maldição e Glória, lançado em 2004 pela Companhia das Letras, é excelente e mereceria ter tido maior divulgação – é muito mais interessante e bem escrito que muitas das biografias que andam por aí no mercado do livro, lançadas ao sabor de modismos e banalidades.

Como diz seu título, acompanha a vida cheia de peripécias do escritor, de seu momento de maldição – isto é, de quando, adolescente, foi perseguido e laçado como um animal para ser conduzido primeiro ao Asilo-Colônia Santo Ângelo e depois ao Sanatório de Padre Bento, e ali tornado incomunicável com o mundo exterior –, até os patamares de libertação de sua condição, de progresso intelectual, de recuperação da dignidade pessoal e profissional que foi galgando para atingir a consagração, na velhice, a glória, enfim. No prefácio que escreveu para a obra, diz o escritor Fernando Morais que Maranhão foi capaz de “recriar situações como se estivesse o leitor a testemunhá-las, com seus próprios olhos e ouvidos”. E salienta “a escrita elegante e sedutora, dotes de alguém que, com décadas de experiência como editor de revistas, passou a vida fazendo isso – limando e melhorando o texto alheio”.

Quando tinha 14 anos, Edmundo teve sua internação decretada, mas durante dois anos conseguiu fugir dos laçadores de leprosos. Em 1941, com 16 anos, foi retirado à força da família e só conseguiria fugir do asilo-prisão de Padre Bento em 1945 – passaria assim em um de nossos verdadeiros “campos de concentração sanitários” quase todo o tempo em que na Europa durou a Segunda Guerra Mundial e a internação e o holocausto de judeus, dissidentes e outras minorias nos sinistros campos nazistas. Lá também vigorava a política da eliminação dos doentes, dos mais fracos, enfim, dos tidos como “inúteis” para a sociedade.

Carlos Maranhão soube sequenciar bem as aventuras meio rocambolescas empreendidas por Edmundo/Marcos em seu esforço de escapar não somente ao estigma devido à doença, mas à perseguição de caráter policial de que se servia, na época, o Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado de São Paulo (DPL). Este exercia sobre os doentes um rigor não visto no resto do país, por valorizar somente a corrente mais antiquada de tratamento – isto é, a do tratamento quase nenhum, substituído pela internação definitiva do doente e seu afastamento absoluto de qualquer convívio familiar ou social. É impressionante o retrato de corpo inteiro que Maranhão consegue dar do sinistro diretor-médico do citado departamento, Francisco de Salles Gomes Junior, tido em numerosos depoimentos de ex-doentes como um “carrasco” impiedoso, capaz de tratá-los como meras peças numeradas que deviam se encaixar, bem ou mal, em sua implacável meta de zerar os casos de lepra no estado.

A “era sulfônica” da doença, com a introdução do medicamento Promin, somente seria iniciada em 1943, após a publicação de um trabalho do médico americano Guy Henry Faget. No Brasil esse tratamento foi iniciado em 1944, justamente no Sanatório de Padre Bento, onde Edmundo Donato estava internado. Como esse remédio tem o poder de agir sobre o bacilo de Hansen desde suas primeiras aplicações, Edmundo já estaria curado, incapaz de transmitir a doença, ao fugir do internamento, em 30 de maio de 1945. No entanto, a política de caça ao leproso permanecia rigorosa no estado de São Paulo, e ele foi obrigado a se refugiar no Rio de Janeiro durante algum tempo. Ao voltar, teve de viver escondido e sem documentos por mais cinco anos, pois o DPL mantinha a prática do internamento compulsório de doentes.

Somente em 1950 o “fugitivo” Edmundo Donato conseguiria obter um certificado de isenção do serviço militar – donde as dificuldades imensas que teve de transpor para obter um emprego. Segundo o biógrafo do escritor, o implacável diretor do DPL, Salles Gomes, conservou em território paulista a política de reclusão mesmo após um decreto do primeiro-ministro Tancredo Neves, em 1962, tê-la declarado extinta em todo o país. Essa medida somente seria aplicada em São Paulo em 1967, quando o dermatologista carioca Abrão Rotberg foi chamado para dirigir o DPL.

A reformulação completa da assistência aos hansenianos, porém, não teria sido possível sem a intensa campanha empreendida pela deputada Conceição da Costa Neves, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – que contava com a colaboração de um misterioso “João, o Tapeceiro”, um disfarce do “fugitivo” de número 19.532 do Sanatório de Padre Bento, Edmundo Donato, que lhe passava por telefone tudo o que ocorria nos leprosários e no DPL.

Na “Pauliceia desvairada”

Nas cinco décadas seguintes, o recém-denominado Marcos Rey seria obrigado, pelas próprias circunstâncias existenciais, a aceitar todo tipo de trabalho que lhe aparecesse, conseguindo manter, porém, sua escolha profissional no campo da escrita. Levado por seu irmão mais velho, Mário Donato, também escritor e jornalista de prestígio, à esfera radiofônica – em plena “Era do Rádio” –, escrevia diariamente uma quantidade imensa de material, de publicidade e roteiros completos de novelas a espetáculos especiais, criava programas, ao mesmo tempo em que mergulhava nos “desvarios” do submundo, destrinchando personagens pitorescos, de prostitutas e cafetões a ladrões, viciados, boêmios românticos – uma galeria que ascendeu a seus romances e neles permaneceu até o fim de sua vida. O exercício constante da escrita, a urgência de produzir textos para ganhar a vida (ainda mais depois de seu casamento, em 1959), firmou seu estilo caracterizado pelo humor, muitas vezes feroz, resultando em uma sátira total da sociedade paulistana de todas as classes sociais.

Muito poderia ser dito sobre seu grande valor literário, inclusive por ter tido um estrondoso sucesso no campo da literatura infanto-juvenil. Testemunho que, nas citadas reuniões de sábado na Livraria Cultura, não foram poucas as vezes em que adolescentes fascinados aproximavam-se dele com livros na mão, pedindo um autógrafo com olhos brilhantes. Creio, porém, que para satisfazer sua vontade de ter sua literatura para adultos mais difundida, nada seria melhor para ele, se pudesse ler este artigo, do que ver um trecho de sua ficção para adultos aqui reproduzido (ver mais abaixo).


Uma bela e irada mulher

Maria da Conceição da Costa Neves (1908-1989) foi uma das mais extraordinárias mulheres de seu tempo – aos 21 anos, sob o nome artístico de Regina Maura, estreou na Companhia Procópio Ferreira. Era especialista em peças cômicas. Passou a viver com Procópio, que a definiria, mais tarde, como “uma linda mulher, elegante, sabendo vestir-se primorosamente e com uma voz de todas as tonalidades. Agarrou o teatro pela gola e dominou-o desde o primeiro dia”.

Conceição abandonaria o palco em 1938 para casar-se com um médico paulista, do qual se separaria em 1955. Sua grande vocação, porém, foi a política. Foi a única mulher eleita à Constituinte Paulista, em 1947. Na época, pertencia ao PTB – partido que ajudara a fundar. Foi reeleita sucessivamente até 1969, quando sofreu cassação pelo AI-5.

Distinguiu-se sempre pelas campanhas assistenciais no setor de saúde e higiene, tendo sido diretora da Cruz Vermelha Brasileira de 1943 a 1945, e liderou com denodo o movimento de defesa dos direitos dos hansenianos. Considerada “o anjo dos leprosos”, ela própria se dizia “a mais corajosa, a mais irritantemente atrevida, a mais agressiva das mulheres”, não hesitando em associar-se aos hansenianos, conviver com eles em suas constantes visitas aos leprosários. Em 1945, chegou mesmo a participar de uma das duas revoltas ocorridas no Sanatório de Padre Bento, reprimidas pelas forças policiais, numa das quais chegou a haver uma morte.


Trecho do conto “O Enterro da Cafetina”

O livro que contém este e outros contos ganhou o Prêmio Jabuti em 1967. Em sua introdução, diz o autor: “Os personagens deste livro são de circulação noturna. Por favor, não os confundam com guardas-noturnos [...]. São boêmios por vocação ou por erro de educação, por dor de cotovelo ou qualquer dor, por falta de dinheiro ou por excesso, por vagabundagem ou paixão à sociologia”.

“Dona Beth, velha cafetina! Estou vestindo o meu melhor terno para ir ao seu enterro. Lamento que não seja um terno novo, mas está em bom estado e é escuro como convém a uma ocasião como esta.
Pensei, inclusive, em colocar uma faixa preta na lapela, em sinal de luto. Só não o faço porque o original muitas vezes se avizinha do grotesco. Depois, nosso parentesco não reside nos convencionais laços sanguíneos. É coisa mais profunda e sentimental, embora a senhora tenha nascido muito antes do que eu e num país longínquo, não sei em que
ghetto da Polônia. Jovem ainda veio ao Brasil e aqui viveu 60 anos sem poder perder o sotaque que a marcava como ‘aquela estrangeira que explora a mulherada’. A princípio, viveu algum tempo em Santos, mas se mudou para a capital porque observara nos homens das cidades praianas menos honestidade nas questões de dinheiro. Talvez a senhora cometesse a injustiça de culpar o mar e o sol pelas safadezas humanas.”