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A publicidade me ensinou

Fernando Meirelles é considerado um dos principais cineastas brasileiros na atualidade. Formado em Arquitetura, assim que concluiu a graduação ele montou uma produtora, com a qual experimentou linguagens e técnicas, como a usada pela personagem Ernesto Varela, de Marcelo Tas, a qual repercutiu na TV da década de 1980. Meirelles conquistou projeção internacional com o longa-metragem Cidade de Deus. Em paralelo com uma consolidada carreira no mercado publicitário, também dirigiu os longas Jardineiro Fiel, Ensaio Sobre a Cegueira e 360.

O senhor fez graduação em arquitetura. como foi sua passagem para o cinema?

Nem percebi essa passagem. Estava concluindo a faculdade e resolvi fazer, como projeto de conclusão de curso, um médiametragem. Fui para o Japão, e voltei com uma câmera para realizar esse filme. Quando concluí o curso, tinha uma câmera na mão, mas não a ilha para a edição. Voltei ao Japão, comprei outros equipamentos e montei, assim, a produtora Olhar Eletrônico. Alguns colegas lá da USP logo se juntaram a nós. Marcelo Tas, que vinha do curso de Engenharia, foi um deles. Nós aprendemos tudo, literalmente, consultando manuais. Em cada gravação, fazíamos um revezamento na equipe: ora eu estava na câmera, ora na montagem.Assim, todo o mundo aprendeu a fazer um pouco de tudo. Foi um aprendizado na prática.

Já nos primeiros trabalhos, a  olhar  eletrônico chamava a atenção pela inovação da linguagem.

Essa suposta linguagem inovadora era, na verdade, falta de técnica. A gente errou muito e, assim, aprendeu a fazer de forma diferente. A TV do final da década de 1970 e começo da de 1980 era muito formal e a gente não tinha isso, porque não havia passado por essa experiência. As câmeras nas TVs eram grandes, eles não tinham equipamentos portáteis. Nossa realidade era outra. Consequentemente, a gente acabou fazendo coisas diferentes. Outro fator era nossa falta de dinheiro. Sem grana para contratar apresentadores, nós mesmos fomos nos arriscando, inventando fórmulas, experimentando. A Sandra Annenberg e o Serginho Groisman passaram por lá. O personagem Ernesto Varela, do Marcelo Tas, também surgiu nessa época. Com ele, fizemos várias entrevistas – todo o mundo daquela época passava por nós: Fernando Henrique Cardoso, Paulo Maluf... A gente começou inventando algo que ainda hoje repercute. Como ninguém nos conhecia, a gente circulava e surpreendia.

Como era a relação dos profissionais envolvidos com a  olhar  eletrônico?

É engraçado, porque a gente não pensava em enfrentar a ditadura, e só dava risada. Mas é claro que a gente levava aquilo a sério, fazia reuniões culturais, ciclos de filosofia. Mas a Olhar Eletrônico era uma empresa mesmo, com nota fiscal, tínhamos os sócios e uma turma que circulava. A gente morava numa casa no bairro de Pinheiros. A produtora ficava na sala e nós morávamos nos quartos. Era uma comunidade hippie eletrônica. E foi com essa configuração que fomos convidados pelo Goulart de Andrade para fazer nosso primeiro programa de televisão. Muito curioso: a primeira vez que a gente pisava numa TV era para dirigir um programa. Nem preciso dizer que a estreia foi um desastre, mas depois a gente melhorou. Com o tempo, o pessoal começou a casar, ter filho, e passou a procurar outras coisas. Porque ninguém ganhava dinheiro com a Olhar. Começamos a ser chamados para fazer campanhas publicitárias, e aos poucos o perfil da produtora foi mudando. Como algumas pessoas não tinham interesse em enveredar para esse ramo, a produtora foi desfeita e eu montei, com o Paulo Morelli, a O2 Filmes.

Nessa época você já pensava em fazer cinema?

Todo mundo na Olhar queria fazer cinema, mas nos anos 1980 não existia cinema no Brasil. A gente via nossos colegas da ECA sofrendo para produzir um filme. Por isso, escolhemos fazer televisão, o que nos deu bagagem para na década seguinte investir no cinema. Mesmo do ponto de vista técnico, o cinema não tinha como se sustentar nos anos 1980 sem a publicidade. Não tenho dados, mas acredito que até hoje a publicidade deve movimentar mais dinheiro do que o cinema no mercado brasileiro. Devo ter feito mais de 600 comerciais, mas confesso que não sou bom publicitário. O que sei fazer é traduzir aquele roteiro em som e imagem, sem avaliar se é a melhor estratégia. A publicidade me deixou rigoroso, porque os clientes passavam horas tentando encontrar erros naqueles meus 30 segundos, criticando frame por frame. Foi uma grande escola. A publicidade também foi um total campo de experimentação, para copiar ideias, testar técnicas. A gente aprende quando copia.

Como surgiu a ideia do filme Domésticas?

Nos anos 1990, estávamos doidos para fazer um longa-metragem e corríamos atrás de projetos. Fui ao teatro ver a montagem de Domésticas, e achei que poderia ser um bom filme. Fizemos em três meses, foi muito rápido rodar e foi muito fácil codirigi-lo com o Nando Olival – a gente se entendia bem. Depois, o filme ficou um tempo parado na montagem; acho que não tínhamos trabalhado muito bem o roteiro. Além disso, nessa época eu já estava envolvido com o projeto de Cidade de Deus. Dez meses depois, voltamos para a ilha e o concluímos. Acho que o resultado do filme foi positivo, porque ele foi feito sem pretensão, não tinha muita expectativa. Era um filme para pôr os pés no cinema.

Qual foi seu primeiro contato com o projeto Cidade de Deus?

Como eu estava doido à procura de boas histórias, recebi de uma sócia o livro do Paulo Lins. Eu o levei para as férias de Natal e não conseguia parar deler. Lá pela página 60, comecei a fazer umas anotações no livro. Fui me envolvendo com a leitura, e quando voltei para São Paulo já queria fazer. Foi uma loucura, porque tecnicamente era um livro infilmável. Eram mais de 200 personagens, havia muitas histórias. Dei o livro para o Bráulio Mantovani. Foi seu primeiro roteiro para um longa-metragem. Eu tentava arrumar um financiamento, e como não consegui, resolvi bancar o filme. Porque não tínhamos muitos atores com o perfil dos personagens, resolvemos montar, com ajuda do grupo Nós do Morro, uma oficina de teatro. Fizemos uma seleção com 200 garotos e trabalhamos por seis meses, com aulas das 8h às 20h. Para testar algumas técnicas, realizamos o curta-metragem Palace 2. E em seguida, fizemos  Cidade de Deus, que eu considero um filme bem sucedido. O coração do filme são os atores. Mas também tem um roteiro eficiente, as falas são orgânicas, a fotografia foi pensada para atores não profissionais. A montagem de Daniel Rezende é excelente, e a trilha também. Por isso o filme funciona.

Depois, sua carreira enveredou para o circuito internacional, com a direção de  Jardineiro Fiel e  Ensaio Sobre a Cegueira.  como se deu essa escolha?

Como carreira, nunca pensei em ser cineasta internacional. Não me interessava propriamente por esse mundo. Jardineiro Fiel foi um roteiro que caiu pronto. Topei, porque tinha em mente fazer o filme Intolerância, que seria rodado em vários países. Entrei nesse projeto para ver como circula no mundo, para aprender. Só que acabei não fazendo o Intolerância. Já o Ensaio Sobre a Cegueira foi um roteiro que chegou em casa por amigos. Já tinha lido o livro e até cogitado comprar os direitos, mas José Saramago não autorizou. Relutei um pouco ao receber o convite, porque estava estafado, mas acabei aceitando. No meu filme mais recente, 360, também recebi o roteiro e gostei muito. Inicialmente, eu não faria, porque estava envolvido com a biografia de Janes Joplin. Mas como o projeto não deu certo, retomei a ideia; e foi a experiência mais agradável de filmagem que eu tive.