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A sabedoria da sabedoria

Edgar Morin já passou dos 90 anos de idade. Fez de tudo com intensidade, paixão e lucidez. Esteve na luta armada contra a  ocupação nazista da sua querida Paris. Experimentou a militância no Partido Comunista Francês. Tem no currículo a honra de ter sido um dos primeiros a romper com o stalinismo.

No seu primeiro livro, O ano zero da Alemanha, fez um balanço severo dos estragos da Segunda Guerra Mundial. Meu primeiro  encontro com Morin aconteceu em 1993, num 1º de maio. Ficamos amigos. Em 1995, ele integrou a minha banca de doutorado,
na Sorbonne. Organizei, depois disso, várias viagens suas ao Brasil. Traduzi quatro dos seis volumes da sua obra principal, O  Método, para a editora Sulina. Trabalhei na publicação dos outros dois. Empenheime no relançamento do já citado O ano zero da Alemanha, que estava esgotado, até mesmo na França, havia décadas.

A vida de Morin é um romance. Judeu, órfão de mãe muito cedo, criado num bairro popular parisiense, em Ménilmontant, ele se tornaria um dos intelectuais mais influentes do mundo. Depois de romper com o marxismo, nunca mais cedeu à tentação de “ismo”
algum, o que é muito difícil num mundo dominado pelas modas culturais e pelas lógicas de rebanho. Nem o existencialismo nem o estruturalismo conseguiram capturá-lo. Muito menos o pós-modernismo, apesar da crítica pós-moderna ao mito do progresso, ao culto das certezas e à teleologia na história. Tampouco o liberalismo. Ser de esquerda para ele é, antes de tudo, não ser de direita.

A ideia de que esquerda e direita não existem mais é uma invenção da direita. Ser de esquerda para Morin é renovar as esperanças em um mundo melhor, assentado na ideia de solidariedade, cooperação, humanismo, amor e justiça.

Idealismo? Romantismo? Nostalgia? Ingenuidade? Utopia? Morin, com seu ar de sábio ancião, não se abala. Costuma dizer que é fundamental renovar o ímpeto de revolta da esquerda, essa necessária aspiração, na impossibilidade de se chegar ao melhor dos mundos, a um mundo melhor.

O velho mestre vive como um jovem rebelde e anarquista. Mostra a trilha. Um dos seus últimos livros chama-se justamente O caminho. Não se deixa enganar pelas novas formas de exploração. Ele tem atacado o entusiasmo dos empresários ocidentais por sistemas autoritários asiáticos geradores de produtos baratos graças ao trabalho mal pago. O Ocidente tem a obrigação de melhorar o capitalismo asiático e empurrar o povo chinês para a liberdade. A sabedoria da sabedoria consiste numa aspiração incontornável: o homem complexo deste milênio ainda balbuciante não pode ser nem comunista nem neoliberal. Precisamos de livre iniciativa e de Estado regulador, de proteção e de correr riscos.

Uma das marcas de Morin é o ecletismo generoso, a abertura ao outro, a aceitação encantada das variações culturais, o prazer na descoberta da diversidade. Ele gosta da alta cultura e da chamada cultura de massa, do popular e do refinado, do espontâneo e do elaborado. Vai da ópera às novelas de televisão. Continua viajando muito. O Brasil é uma das suas grandes paixões. Quase aos 92 anos, Morin pensa no futuro e nos seus desafios. Sabe que o futuro ainda enfrenta os problemas do passado. O seu livro A minha esquerda (editora Sulina) revela como ele nunca se deixou enganar pela narrativa reacionária do fim da história ou pelo suposto fim das ideologias.

Os conceitos, obviamente, vivem e mudam como os homens. Ser de esquerda hoje não é o mesmo que em 1945. O essencial  permanece: a ênfase na cooperação e na igualdade. Sempre me lembro de uma vinda de Morin a Porto Alegre. Os organizadores, orgulhosos da gastronomia internacional da capital gaúcha, queriam levá-lo todo tempo a um restaurante chique no sofisticado
bairro Moinhos de Vento, um desses lugares fashion que servem comida esculpida em miniatura dentro de pratos em formato de losango, triângulo ou quadrado. Um dia, Morin me chamou a um canto e sussurrou com ar juvenil: “E se a gente desse uma escapada para comer no Mercado Público?”. Saímos à francesa (os franceses dizem à inglesa). Velho sábio! Passamos uma tarde de moleques perambulando pelo centro da cidade, olhando as moças, falando de futebol, amor, poesia e romances policiais. Foi ele também que, fã da novela brasileira Dona Beja, me convidou para sequestrá-la. Não foi preciso. Maitê Proença não recusou convite  para almoçar. O intelectual é conhecido. Falar do homem abre algumas frestas naquilo que ele se tornou: um monumento intelectual, um autor com uma obra gigantesca.

Juremir Machado da Silva é escritor, jornalista, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.