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Uma linguagem que perturba a hierarquia entre corpo e objeto

"Ao se misturarem com o solo peludo os corpos dos dançarinos ganham outras configurações"

A performer e coreógrafa Marcela Levi falou em entrevista exclusiva para a EOnline sobre o espetáculo de dança Natureza Monstruosa, que terá apresentações nos dias 26 e 27/fev no Sesc Bom Retiro.

Em estreita parceria com os performers Clarissa Rêgo, João Lima e Laura Samy e com a escritora e artista visual Laura Erber, as coreógrafas Marcela Levi e Lucía Russo (fundadoras da Improvável Produções) criaram a peça de dança “Natureza Monstruosa”. Um espetáculo que oferece diferentes possibilidades de leitura do que se passa em cena, para Levi “interessa que o trabalho dramatúrgico exponha o seu próprio movimento de formação e não seja algo já dado de antemão ao espectador que só precisa digerir ou recusar”.

Nos últimos quinze anos, Marcela Levi vem desenvolvendo projetos que dissolvem as fronteiras entre a dança e as artes plásticas, construindo uma linguagem que perturba a hierarquia entre corpo e objeto: o corpo se torna objeto e objetos se tornam corpo. Através de seu trabalho, Levi cria uma zona de ambiguidades e deslocamentos.

Ficou curioso, né? Na entrevista a seguir você pode descobrir muito mais!

EOnline: A performance pretende provocar algo no público?
Marcela Levi: Uma questão que me interessa é desarmar as armadilhas do significado e abrir brechas onde o sentido pode deslizar. Isso pode ser incômodo para o espectador, mas não tem nenhum caráter de provocação. É importante porque abre outras possibilidades de encadeamento entre os elementos em cena. Por isso também me interessa que o trabalho dramatúrgico exponha o seu próprio movimento de formação e não seja algo já dado de antemão ao espectador que só precisa digerir ou recusar.

EOnline: Qual a diferença entre este e os outros trabalhos que desenvolveu desde o início da sua carreira?
M.L.: Diferentemente de meus trabalhos anteriores, que se construíam num contínuo desdobrado por associações, quero dizer, uma coisa que dá na outra e por associação em outra e assim por diante, Natureza Monstruosa propõe um espaço acidentado, atravessado por narrativas e ficções que pontuam a peça abrindo outras possibilidades de leitura do que se passa em cena. NM se apresenta como um percurso circular, onde cada performer avança por tropeços, rumores, estalos, quedas, deixando que os corpos sejam incessantemente alterados por sua própria força fabulatória. “Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso (…)”.

EOnline: Como é esta desconstrução em relação à linguagem entre o corpo que se torna objeto e objetos se tornam corpo?
M.L.: Em Natureza Monstruosa, Lucía Russo e eu investimos no cruzamento de diversas linguagens e elementos visuais. Trabalhamos a partir de filmes do cineasta francês Georges Méliês, considerado o pai dos efeitos especiais cinematográficos, e do artista plástico e cineasta tcheco Jan Svankmajer. Svankmajer trabalha com animação de objetos e corpos. Seus filmes na maioria das vezes sombrios, porém bem humorados, transitam entre o sonho e a realidade. Acho que é essa a influência de Svankmajer no espetáculo: pensar o corpo como um espaço de animação: um corpo que move e é movido, um corpo “a coisa” “o coisa”, que transita entre o sujeito e o objeto. Já Méliês, nos trouxe uma corporeidade franca e encantada, fascinada de partida. Um estar fascinado diante do mundo. Um estar em jogo, na hora do jogo.

EOnline: Qual foi a importância das parcerias que firmou para criação deste espetáculo?
M.L.: Natureza Monstruosa é fruto do “encontrão” de Lucía Russo, João Lima, Laura Samy, Clarissa Rêgo, Marcela Levi e Laura Erber. Foi essa constelação que engendrou a aposta política da peça Natureza Monstruosa: o desejo de uma coexistência disjuntiva. Uma coexistência que emerge da fricção de intensidades e não da paridade. Pessoas afetadas umas pelas outras, assim como pelo seu entorno.

EOnline: Pode falar um pouco sobre a criação do espetáculo?
M.L.: Trabalhamos a possibilidade de criar relações paradoxais entre o trio, relações que são não-relações, mas não a ausência de contato. Mas sim um outro tipo de enlace e de tensão. Não se buscou nem uma ilusão de troca dialógica, nem o isolamento cético de um solilóquio ou de um monólogo. Procuramos outras possibilidades de contato e de contágio entre essas três figuras que não param de formar e desfazer um trio. Tem um texto da Laura Erber (colaboração dramatúrgica de Natureza Monstruosa) que me parece caber aqui: "Não nos reconhecemos no silêncio, não nos reconhecemos no uivo." Que formas pode ter o monstruoso numa época movida à normopatia, auto- conhecimento, auto-controle, promessas de cura imediata e solidão em rede? Das muitas possíveis respostas nos interessam as que sejam também uma espécie de alegria, corpos que se esbarram (contato que não é relação). São três figuras do desamparo. Que vêm a galope. E não há o que lamentar. Nada aqui é trágico embora seja possível dar um beijo que arranca uma cabeça. Nem o non-sense, nem a obrigação de dar sentido. Uma matéria estalada ou algo que não é isso mas que a isso se assemelha. Além disso, durante o processo de criação procuramos forjar uma interação fundamental entre os corpos e o espaço onde circulam, o cenário não é um elemento passivo e é mais uma matéria plástica do que um ambiente ou um lugar específico. Ao se misturarem com o solo peludo - que ora lembra uma vegetação arcaica ora o dorso de um enorme animal - os corpos dos dançarinos ganham outras configurações, desenham outras figuras.  

Foto: Laura Erber

o que: Natureza Monstruosa
quando:

26 e 27 de fevereiro, às 20h.

onde:

Sesc Bom Retiro | Alameda Nothmann, 185 | 3332-3600

ingressos:

a partir de R$2, 40

 

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