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Maria que Virou Jonas

Foto: Caca Bernardes
Foto: Caca Bernardes

Cia. Livre estreia espetáculo sobre transgêneros, inspirado em Montaigne, no qual o público escolhe o papel dos atores. A peça "Maria que Virou Jonas ou a Força da Imaginação" fica em cartaz até 15/3.

Germain Garnier nasceu Marie, numa vilazinha francesa. Viveu como mulher até o dia em que, correndo num campo de trigo, saltou sobre uma vala e, com o esforço do movimento e a abertura exagerada das pernas, viu despregar-se de seu interior o membro masculino, rompendo os ligamentos que o prendiam dentro de seu ventre. Marie foi conduzida a cirurgiões e médicos diversos, depois a um bispo que convocou uma assembleia e confirmou que a transformação ocorrera, de fato. Marie foi rebatizada Germain e passou a viver como homem, indo servir na corte do rei Carlos IX. Ali, travou conhecimento com o cirurgião Ambroise Paré, que se admirou com seu corpo benfeito, a barba vermelha cerrada e sua história pregressa, e a narrou para a posteridade.

Depois do ciclo Leituras Transvestidas, em que a Cia. Livre trouxe à tona textos da dramaturgia universal sobre mudanças de identidade, o grupo estreia sua mais nova criação, Maria que Virou Jonas ou a Força da Imaginação. Com texto de Cássio Pires, escrito especialmente para a Cia. Livre, o espetáculo enfoca o tema das identidades móveis, novas configurações para a questão do gênero e os intersexos. A pesquisa de um ano, que resultou na peça, culmina com a apresentação do espetáculo inédito, que foi contemplado pela 24ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. O mote nasceu da história de Marie que vira Germain, apresentada pelo filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) em seu provocador Da Força da Imaginação, (Ensaio XXI), e recontado pelo historiador e sexólogo Thomas Laqueur (1945) no livro Inventando o Sexo, no qual discute as construções culturais que entendemos como sexo ou como verdades biológicas. O relato teve acolhida e ganhou tradução cênica na adaptação da Cia. Livre, que recria o caso de Marie para discutir a especificidade histórica das crenças e leis, e questionar os limites entre representação, fantasia, teatralidade, aparência e verdade.

Para os integrantes da Cia. Livre, “o emprego de um texto filosófico como disparador da montagem oferece para o teatro outras textualidades, diversas do modelo tradicional dramático, tais como a narrativa épica e a voz lírica. Cássio Pires, em parceria com a Cia. Livre, torna esta versão da história de Marie-Germain polifônica, posicionando a disputa de pontos de vista como gênese da discussão e ressaltando ora suas tintas cômicas, ora as trágicas, sempre combinando o prosaico e o poético, o ridículo e o grandioso”.

No palco, as personagens são os atores transexuais Neo Maria (Lúcia Romano) e Jonas Couto (Edgar Castro), que estão montando a peça A Força da Imaginação. Trata-se, portanto, de um jogo de metateatro, uma peça dentro da peça. Questionando o que se entende por identidade, o público escolhe qual papel os atores da peça vão viver a cada sessão, Ele ou Ela? “A peça de Cássio Pires apresenta um jogo de transformação muito claro, mesmo abordando o problema complexo das identidades. Ao lado dela e dialogando com a narrativa, criamos cenas de camarim que levantam questões contemporâneas sobre a experiência de homens e mulheres em torno do gênero e sexo”, explica Edgar Castro. 

Lúcia Romano destaca ainda que “a Cia. Livre parte do entendimento de que não existe alinhamento entre gênero, identidade, opção sexual e comportamento sexual. Esse alinhamento não deveria ser tomado como natural.” Cibele Forjaz, responsável pela encenação do espetáculo, completa: “Eu posso ser uma mulher que escolhe ser ou viver como homem e que namora uma mulher. Ou um homem. E essa é uma mudança social e cultural que precisa ser tratada pelo teatro, onde a questão da representação é central”.

Sobre o processo


Créditos: Caca Fernandes e Murilo Thaveira

Como suporte para a criação do espetáculo, a Cia. Livre leu textos da história do teatro que tratam de travestismos e de personagens que trocam de sexo, conversou com dramaturgos contemporâneos que trouxeram propostas de enredos e roteiros, além de mergulhar em extensa pesquisa de campo e de fontes publicadas na internet, tais como os selfies de mudança de sexo e os relatos e registros cirúrgicos que passaram a povoar o imaginário do grupo. Também foram fundamentais as leituras de Beatriz Preciado, Judith Butler, Jorge Leite Jr., Luciana Villas Boas, Patricia Porchat, Antonio da Costa Ciampa, Ronaldo Pamplona da Costa, Thamy Claude Ayouch e Maria Filomena Gregori, entre outros pensadores que refletem sobre o movimento queer, hierarquias de gênero e políticas de identidade.
 

15 anos e 10 peças

A Cia. Livre formou-se em 2000, com os espetáculos Toda Nudez Será Castigada e Os 7 Gatinhos, de Nelson Rodrigues. Trabalha com temas ligados à brasilidade e à formação cultural brasileira desde 2004, quando ocupou o Teatro de Arena de São Paulo, com os projetos Arena Conta Arena 50 Anos e Arena Conta Danton (Prêmio Mambembe/2004 e Prêmio Shell Especial/2004).

Em 2006, com o projeto de pesquisa Mitos de Morte e Renascimento: Povos Ameríndios montou os espetáculos Vem Vai – O Caminho dos Mortos (2007/2009), com dramaturgia de Newton Moreno (Prêmio Shell de direção e atriz); e Raptada Pelo Raio (2009/2010), com dramaturgia de Pedro Cesarino. Estreou em 2012 A Travessia da Calunga Grande, com dramaturgia de Gabriela Amaral Almeida em parceria com a Cia. Livre e direção de Cibele Forjaz.

No inicio de 2014, a Cia. Livre revisitou os mitos dos povos ameríndios em versão atualizada do mito marubo, que conta sobre um homem inconformado com a perda da mulher, raptada por um raio – na peça Cia. Livre canta Kaná Kawã. A montagem teve dramaturgia de Pedro Cesarino e direção de Cibele Forjaz. O grupo é um dos 22 coletivos paulistanos que recebeu certificado de patrimônio imaterial da cidade de São Paulo, em dezembro de 2014.


 

o que: Maria que Virou Jonas ou A Força da Imaginação

quando:

  19/2 a 15/3. Quinta a sábado, às 19h30. Domingo, às 17h.


onde:

  Sesc Belenzinho | Rua Padre Adelino, 1000 | (11) 2076-9700


ingressos:

Consulte a programação.