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Gerar degenerar regenerar redegenerar para continuar gerando

Exposição
Exposição "Meu Nome Não É Linda", por Tathy Yazigi

por Suelen Pessoa*


De vez em quando trombamos por aí com alguns depoimentos de mulheres que dizem que ninguém precisa do feminismo. Bom, se você é mulher e pensa assim, saiba que, apesar da sua ingratidão, o feminismo é responsável por hoje você participar da vida pública podendo votar e ser votada, por exemplo. O feminismo também é responsável por você poder estudar do ensino básico até o pós-doutorado; por você poder trabalhar e receber um salário; por você poder comprar e ser proprietária de uma casa ou qualquer outro bem. De poder evitar a gravidez, tomando anticoncepcional ou pílula do dia seguinte. Hoje você pode querer fazer sexo antes de se casar e também pode se divorciar, se quiser. Você pode dirigir um carro, um caminhão ou mesmo um foguete. Você acha que qualquer uma dessas demandas saiu da cabeça de um homem?

Se você acha que o feminismo não serve pra você, então talvez você prefira, neste século XXI, continuar ganhando, em média, 30% menos que um homem exercendo a mesma função no trabalho. Talvez você não se importe em sofrer violências físicas, sexuais e psicológicas apenas por ser mulher , ou de ser assediada na rua, na escola, no trabalho. Talvez você ache normal trabalhar fora e ainda ser responsável por cuidar, sozinha, da casa e dos filhos, contando com a “ajuda” eventual do seu parceiro, caso ele não tenha te abandonado muito antes. Talvez você não fique minimamente apreensiva com o futuro quando nasce mais uma menina na família. Ou talvez esteja tudo bem pra você não ter direito total sobre o seu próprio corpo, sobre o que entra nele ou sobre o que sai dele. Ou sobre como ele deve ser. Ou sobre como ele deve se comportar em casa, na rua, no trabalho, na igreja. Talvez você se sinta plenamente confortável com o sexo que te designaram quando você nasceu, ou com a sua heteronormatividade, mas saiba que existem muitas mulheres que não.

Eu duvido que essas questões não te assombrem vez ou outra, se você é mulher.

Por acreditarmos que o feminismo é sim, muito importante para garantirmos a manutenção dos direitos já conquistados e a conquista de outros tantos que ainda parecem distantes no nosso horizonte, estamos trazendo ao Sesc Santana, pela segunda vez, um grupo de atividades que oferece um mosaico abrangente da produção cultural relacionada ao tema e convidamos o público – principalmente as mulheres - a contribuir com suas perspectivas, olhares e experiências, em busca de um pensamento crítico sobre um assunto tão urgente. Então, se você é mulher, está convidadíssima a participar conosco do De|Generadas². E se você é um homem disposto a entender seu privilégio e passar a ser parte da solução, não mais do problema, teremos prazer em recebê-lo (saiba que o feminismo é libertador e que, apesar de não ser o foco das ações e reflexões do movimento, ele acaba sendo benéfico a vocês homens também, pois liberta os corpos, inclusive os masculinos, da opressão sistemática causada pelo machismo). Falaremos a seguir sobre essa programação, que nos dá tanto trabalho quanto orgulho de realizar.

 

Degeneramentos

Não é simples ou fácil portar o gênero feminino, em qualquer sociedade, idade ou posição social que se esteja neste planeta. Porém, se você for uma mulher negra, se você for uma mulher que não foi designada como mulher ao nascer ou se você não se encaixa no padrão estético ou de comportamento esperado pela sociedade, você está duas ou três vezes mais exposta à violência e ao feminicídio do que as outras mulheres. Você estará sempre à margem da margem, ou, como estamos dizendo por aqui, você será uma mulher à beira.

À beira de um colapso, à beira de um ataque de nervos, à beira da morte. Ser negra, ser pobre, ser lésbica, ser transexual, ser sexualmente livre ou compulsoriamente ilegal: são todos agravantes da condição de ser mulher na nossa sociedade. E essas camadas de desvantagens às vezes se acumulam: mulheres podem ser negras + lésbicas. Ou podem ser transexuais + pobres. Ou podem ser lésbicas e precisarem recorrer a procedimentos ainda ilegais no nosso país, como o aborto. Ou terem sido presas por cumplicidade ao crime de um parceiro homem e dado a luz a um filho na cadeia (e serem obrigadas a se separar dele assim que o parto terminar). Ou serem transexuais, negras, pobres, lésbicas e prostitutas, tudo ao mesmo tempo. Enfim, a lista de combinações nessa equação da desvantagem é infinita.

Então, por tudo isso, não é à toa que as mulheres estão em fúria. Elas estão furiosas porque a elas é negado, até hoje, o conhecimento e domínio sobre o funcionamento de seus próprios corpos. Elas estão absolutamente insatisfeitas com a forma que são representadas na publicidade ou como são reportadas suas histórias na imprensa. Algumas delas estão tombadas, fora do espectro visível, e se reivindicam, ainda que encarnadas. Elas não querem mais ser invizibilizadas ou descreditadas enquanto seres humanos dignos, seja durante a infância ou à medida que envelhecem, e por isso gritam. 

As mulheres estão descobrindo a força incrível da sororidade, e por isso estão se articulando através da internet ou construindo ambientes de troca de experiências ao vivo. Elas estão questionando a forma que o mundo tem funcionado até então e como isso tem sido danoso às mulheres e, por isso, estão criando novas formas de ser mulher, novas formas de se expressar no mundo, em primeira pessoa.

Eu e meus parceiros Ana Dias de Andrade e Hugo Cabral Carneiro criamos essa programação pensando nas mulheres que nunca ouviram falar do feminismo, ou naquelas que ainda têm uma visão equivocada sobre ele. Nossa intenção é que essa conversa ultrapasse os círculos das já iniciadas no assunto, com o mínimo de teoria e academicismo possível, para que as discussões levantadas toquem o coração de cada mãe de menina, de cada vizinha, de cada senhora e de cada criança e que todas percebam que se uma de nós não está segura, nenhuma de nós está. 

Nós acreditamos na importância do empoderamento e autonomia infantil, pois ser mulher é diferente de ser fêmea; nos tornamos mulher enquanto crescemos. Não é simples e não é fácil, pois como nosso corpo é casa, e ao mesmo tempo campo de batalha, o alicerce precisa ser construído cuidadosamente para casa não ruir, tomando cuidado com as armadilhas do processo. E por isso acreditamos no feminismo, pois ele pode, inclusive, salvar vidas.

Queremos colocar as mulheres em contato com outras mulheres que colocam seus corpos sob risco na arte, com mulheres que contam suas próprias histórias ou que levam histórias de outras mulheres para o cinema ou que inventam histórias que inspiram mulheres e meninas a serem mais conscientes sobre nossa consição no mundo. Com empreendedoras empoderadas e empoderadoras, que desafiam o sistema estabelecido mesmo quando jogam com as regras do jogo. Nossa ideia é mostrar ao máximo de mulheres possível que nós não no resumimos ao nosso sexo e muito menos à nossa aparência. Somos múltiplas e selváticas, somos divas e somos doidas, ao mesmo tempo. E que se há algo que pode nos definir, é a identidade que nos orgulhamos em ter, seja ela herdada da ancestralidade ou adquirida. Ser mulher é ser uma casa coabitada por sonhos, desejos, frustrações, temores; um interior preenchido por um emaranhado de mistérios e maravilhas e de tudo o que há de belo e grotesco na vida.

Pra gente, ser degenerada é ser livre para ser como se quiser ser. Por mais simples que essa afirmação possa parecer, essa poucas palavras contém um potencial revolucionário incrível, e por isso convidamos a todas para sê-lo conosco. Degenerar-se é não atuar em papéis sociais impostos, é o não-ser se quiser, é se desacostumar-se com o que nunca devia ser naturalizado. É um ato simbólico que rasga o concreto; é ressignificar – gerar – degenerar - regenerar - a cultura vigente e abrir espaço para a equidade. É ser in-su-bor-di-na-da. Se apenas da insubordinação pode vir a liberdade, degeneradas é o que todas seremos. Já começou e não tem mais volta.

 

* Suelen Pessoa é artista visual e sua pesquisa está situada nas fronteiras entre a fotografia, o vídeo e a performance. É graduada em Comunicação Social pela PUC Minas e pós-graduada em Imagens e Culturas Midiáticas pela UFMG. Cuida da programação de Artes Visuais da unidade Santana e organizou a programação do De|Generadas² junto com seus colegas Ana Dias de Andrade e Hugo Cabral Carneiro.

o que: De|Generadas²
quando:

Até 31 de março

onde:

Sesc Santana | Avenida Luiz Dumont Villares, 579 | 11 2971-8700

 

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