Postado em 01/11/2001
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Mito e realidade na história de quem fez do Brasil sua pátria
CECÍLIA PRADA
Segundo os dados levantados pela Conferência contra o Racismo da ONU, realizada em Durban, na África do Sul, em setembro último, há hoje no mundo cerca de 150 milhões de pessoas que, por motivos econômicos ou fugindo a perseguições, foram obrigadas a deixar seu país – isto é, 3% da população mundial.
O Brasil é um imenso melting pot que desde o século 19 partilha com os grandes centros de acolhida a imigrantes, como Estados Unidos, Austrália e África do Sul, uma experiência contínua, variada e complexa de mixagem populacional. É um laboratório vivo em cuja história podem ser buscados testemunhos diferenciados da difícil tarefa de adaptação enfrentada pelos imigrantes. Ao trabalho de historiadores e pesquisadores, às numerosas teses sobre essa questão, somam-se alguns depoimentos pessoais, de extrema sinceridade, transmitidos em família ou pouco divulgados, mas que se transformam em valiosos aportes para o entendimento desse tema.
"Fazer a América"
Desde a sua descoberta a América representou no imaginário europeu uma terra de sonho, onde corriam riachos de mel e leite. Uma exuberante réplica do Paraíso Perdido, com mil espécies exóticas da fauna e da flora e uma população "inocente", não corrompida pela civilização – segundo o mito do bom selvagem alimentado por escritores como Jean-Jacques Rousseau e François René Chateaubriand.
Sobre esse mito seria construída no século 19, quer por especuladores isolados quer por políticas dos próprios Estados envolvidos, uma verdadeira "indústria da migração", que empregava muitas vezes o embuste, disfarçando as circunstâncias reais do país de acolhida, de salário, de contrato, ou prometendo aos colonos terras que nunca lhes seriam dadas. De maneira tal que os sonhados "riachos de mel e leite" se transformavam, no mais das vezes, em "riachos de ouro" que corriam em proveito dos dividendos dos países exportadores de mercadoria humana. Ou, do ponto de vista dos emigrantes, em "riachos de sangue".
Estudando a emigração italiana, ninguém descreveu com mais precisão e veemência essa situação do que Constantino Ianni, em seu livro Homens sem Paz (Difel, 1963 e 1972) – do qual Problemas Brasileiros se ocupou extensamente na edição 317 (setembro/outubro de 1996). Nessa grande e bem-documentada reportagem, Ianni – advogado, economista e jornalista – conseguiu penetrar nos bastidores históricos e desvendar aspectos até então censurados do fenômeno migratório, estabelecendo uma verdade meridiana: "A necessidade de procurar trabalho no exterior em regra significa impossibilidade de exercer na própria terra um dos direitos assegurados pela Constituição". Porque, se o direito de ir e vir é fundamental para o indivíduo, mais imperioso é o de permanecer no país de origem, no seu núcleo familiar, em condições que lhe assegurem trabalho e desenvolvimento.
Se o estranhamento das condições do país era grande para os imigrantes latinos, desconforto muito maior se estabelecia entre os de origem germânica, eslava, asiática. Embora se diga que no Brasil não há, nunca houve, preconceito racial ou cultural, alguns episódios antigos já mostravam o contrário. Em livro publicado em Filadélfia em 1845, Thomas Kidder contava, por exemplo, o acontecido com uma leva de alemães contratados em 1839 para a construção de pontes e calçadas no Recife – tornaram-se de tal maneira alvo de zombaria que não conseguiram terminar a tarefa.
O melhor documento que temos é, porém, uma obra pouco conhecida mas primordial, escrita e publicada em alemão em 1858 em Chur (Suíça) por Thomas Davatz, que contava a triste experiência que tivera no Brasil e advertia seus conterrâneos para que não se deixassem tomar pela "febre da emigração". Memórias de um Colono só chegou ao público brasileiro em 1941, traduzido e prefaciado por Sérgio Buarque de Holanda (Livraria Martins Editora).
Davatz não era um emigrante comum. Era mestre-escola e não via na América apenas um lugar de enriquecimento fácil. Queria formar no exterior, de preferência nos Estados Unidos, "um lugar onde se reunissem numerosas pessoas sem recursos, onde elas pudessem sustentar-se decentemente, constituir uma comunidade bem organizada, com suas igrejas, suas escolas, suas instituições de caridade, um lar, enfim". Antes de 1854 já transferira esse sonho para o Brasil, onde, achava, seus "lindos desejos seriam uma realidade, segundo faziam crer numerosas descrições que vinham em palestras, cartas e impressos". Convenceu sua municipalidade a promover essa migração, e quando partiu de Basiléia, na primavera de 1855, tornara-se o líder de um grupo de 266 pessoas, às quais mais nove se juntaram em Hamburgo. Comprometera-se com as autoridades a enviar relatórios constantes sobre o assentamento dos colonos no Brasil – e foi no desempenho dessas funções que se viu envolvido no episódio conhecido como "rebelião de dezembro de 1856" na Fazenda Ibicaba, em Limeira (SP), propriedade do senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro.
Em sua obra, Davatz fornece dados minuciosos sobre geografia, clima, recursos naturais, modo de vida, métodos agrícolas, condições de higiene e saúde, no interior da província de São Paulo na década de 1850 – pela sua precariedade pode-se facilmente imaginar o que seriam então as regiões mais atrasadas do país. Depois, descreve as circunstâncias da viagem dos colonos, da sua dificílima adaptação à realidade da fazenda, e investe contra o que considera a desonestidade dos patrões brasileiros, o seu absoluto menosprezo pelos direitos dos colonos. Por fim, historia os fatos que levaram os imigrantes suíços-alemães da Ibicaba a um estado de rebelião armada (que evidentemente não se concretizou), mas apenas em defesa da vida dele próprio, seu líder – no momento em que o senador apelara para a força armada da província para resolver a querela.
A tensa situação prolongou-se até março de 1857, quando as partes conseguiram negociar um acordo. Mas Thomas Davatz, acusado de "comunista", foi obrigado a voltar imediatamente com toda a família para a Suíça.
"Escravos brancos"
O tratamento dos colonos, descrito por Davatz, não se diferenciava muito do que era dado aos escravos negros. Desde o momento em que pisavam o solo brasileiro os imigrantes eram submetidos a um regime autoritário e arbitrário, tratados com rudeza por feitores e administradores – como se fossem apenas uma propriedade do fazendeiro. Encerrados em Santos (SP) em uma "fortaleza" guardada por sentinelas armadas (na verdade um pátio de venda de escravos), só saíam dali para empreender uma penosíssima viagem de duas ou três semanas, subindo a serra do Mar a pé ou a cavalo, em direção às fazendas do interior. Somente os velhos e doentes seguiam em carros de bois, cujos eixos não lubrificados resultavam "em um barulho horrível, um chiado que se prolonga por horas a fio e que intensifica ainda mais o martírio da caravana".
Na falta de hospedarias, todos eram obrigados a dormir em precários ranchos, ou na terra nua, depois de procurar lenha e água para cozinhar nas panelas que deviam levar consigo. E enfrentando o calor, as chuvas torrenciais, a lama, cobras, insetos, doenças como malária, febre tifóide ou o menos grave mas atormentador bicho-do-pé. O pior era que deviam arcar com todas as despesas dessa viagem, apesar de cláusula em contrário do seu contrato.
Chegando à colônia, outra terrível desilusão: as pequenas casas em que teriam de viver eram entregues incompletas – até mesmo sem telhado, ou sem os paus horizontais e o preenchimento de taipa –, correndo o acabamento por sua conta. E deviam pagar aluguel por essa precária moradia. Famílias numerosas podiam ser obrigadas a viver todas juntas em uma única peça ampla, uma verdadeira senzala, durante anos. O desrespeito aos direitos fundamentais incluía a separação de membros de uma mesma família entre fazendas diferentes; a restrição total da liberdade de ir e vir; a impossibilidade de comunicação, até mesmo em caso de doença grave, com os parentes que trabalhavam em outras fazendas. Quem se ausentasse sem pedir licença por escrito e burlando a estreita vigilância, era multado e poderia até ser mantido preso na cadeia do município mais próximo. Obrigava-se ainda o colono a executar outros serviços – fora dos contratuais – na fazenda ou fora dela, em proveito do fazendeiro. Reclamava também Davatz que fossem obrigados a contribuir, apesar de protestantes, para a construção de uma igreja católica que evidentemente não os aceitaria nem como padrinhos de batismo.
Frustrava-se assim o ideal utópico de uma sociedade mais livre e mais justa que traziam consigo. O regime "de parceria", introduzido no Brasil como uma inovação pelo senador Vergueiro, é denunciado por Davatz como uma fraude: na cotação cambial desfavorável do dinheiro que devia ser reembolsado à municipalidade de origem; na cobrança de taxas, comissão, aluguéis, viagens, etc. – não prevista no contrato; na medição, que dizia falsa, dos alimentos fornecidos, ou na parte do café que lhes cabia – era o fazendeiro que estabelecia os preços e comercializava o produto; na meação exercida pelo fazendeiro inclusive sobre os produtos da roça que, pelo contrato, os colonos poderiam cultivar e vender livremente; na ausência de serviços médicos; e, o pior de tudo – no endividamento crônico dos colonos no armazém da fazenda (único lugar em que podiam adquirir gêneros e outros itens necessários), o que alongava por anos e anos a duração do seu contrato, transformando-os em verdadeiros escravos brancos.
Vestígios desse sistema são ainda comuns na arcaica estrutura agrária do nosso país. No entanto, para a época, o regime de Vergueiro representava um avanço e, segundo Sérgio Buarque de Holanda, "tornou-se mais digno de censura pelos abusos a que se prestou do que pelos princípios em que descansa". Esses abusos não eram apanágio dos receptores de migrantes; quase todos os países usavam a emigração como uma verdadeira política de depuração nacional, enviando para o Novo Mundo poucos homens ativos e ordeiros, dispostos a trabalhar, e uma quantidade de "antigos soldados, egressos das penitenciárias, vagabundos de toda espécie, octogenários, aleijados, cegos e idiotas" – com os quais os elementos válidos tinham de arcar, ou que procuravam na primeira oportunidade fugir para os centros urbanos.
Inegavelmente havia, por parte do senador, um nítido propósito antiescravagista, ao tentar introduzir no Brasil um sistema já estabelecido em outros lugares – como o dos metayers do sul da França. Diz Buarque de Holanda: "Foi principalmente pelo seu intermédio que se tornou possível à lavoura paulista admitir o trabalho livre sem passar pelas crises que essa transição iria provocar em outras regiões do Brasil".
Métodos diferentes
A idéia transmitida aos camponeses europeus, de que a nossa agricultura era "de enxada", levava-os a pensar que se trataria apenas de uma horticultura em maior escala. Os que se destinavam às fazendas de café aqui chegavam totalmente despreparados para o trabalho, que exigia técnicas específicas de plantio e colheita. Viajantes do século 19, como Auguste de Saint-Hilaire, relatam que os colonos açorianos se assustavam nas fazendas paulistas diante do tamanho das árvores que tinham de derrubar. O mesmo espanto vemos registrado, um século mais tarde, nas memórias do okinawano Riukiti Yamashiro – a dificuldade no manejo do machado e do facão para esses plantadores de arroz e hortigranjeiros.
É ainda Sérgio Buarque de Holanda, no citado prefácio à obra de Davatz, que analisa esse desajuste, chamando a atenção para o fato de que os métodos europeus de conservação do solo "seriam até perniciosos nos casos em que precisamente a extrema fertilidade das terras surgia como barreira a vencer"; mais adequados às necessidades do país seriam mesmo os métodos de queimada e derrubada, peculiares à "agricultura de índio" praticada por nossos bisavós fazendeiros... cujos frutos amargos só viríamos a colher muito mais tarde.
Em meados do século 20, as mesmas dificuldades eram ainda sentidas nos assentamentos de colonos de outras nacionalidades, como entre os poloneses do Paraná. O mito da "terra prometida" – comum a todos os imigrantes – curiosamente reveste-se, no que se refere à imigração polonesa no Brasil, de uma aura mística: durante os anos que precederam a 1ª Guerra Mundial, corria na Polônia a lenda de que um grande estado – o Paraná – havia sido descoberto no Brasil, ao dissolver-se um grande nevoeiro que durante séculos o envolvera. Obra da Virgem Maria, a grande padroeira da Polônia, que apontara assim o caminho aos seus camponeses, mostrando-lhes a terra que deveriam povoar.
Mas às vésperas da 2ª Guerra Mundial, a colônia polonesa no Paraná parecia duvidar da escolha miraculosa da Virgem, a julgar pela numerosa correspondência que seus membros remetiam a parentes e amigos, repleta de desilusão e de amargas queixas. Esses depoimentos contradiziam de tal maneira os relatórios oficiais, consulares, que as autoridades polonesas ficaram confusas. Em 1939, uma missão técnica foi organizada para avaliar a situação. Nela viria um fazendeiro e especialista em tecnologias agropecuárias, Fryderyk Czapski – que, por circunstâncias políticas, acabaria ele próprio por se tornar um imigrante (ver texto abaixo).
"Paraíso sem tufões"
Para o jovem Riukiti Yamashiro, o desejo de emigrar era tão forte que ao saber que fora aberta a emigração para o Brasil não hesitou – inscreveu-se e empreendeu em 1912, aos 23 anos, a arriscada aventura de cruzar oceanos e vir tentar a vida, com a jovem esposa e uma irmã de 14 anos, em um país do qual só conhecia realmente o nome.
Essa fascinante saga é contada por seu filho, o veterano jornalista José (Riussei) Yamashiro, de 88 anos, no livro Trajetória de Duas Vidas – Uma História de Imigração e Integração (Cultura Editores Associados, 2001), no qual entrelaça suas próprias memórias com as deixadas pelo pai em um valioso manuscrito de 400 páginas. A viagem, do porto de Naha (na ilha de Okinawa) a Santos durou 67 dias; é descrita com minúcia e humor por Riukiti – eram 1.434 imigrantes, apertadíssimos num cargueiro de apenas 3 mil toneladas, adaptado para seu transporte. Enfrentando mares bravios, com tempestades violentas, o Itsukushima Maru jogava tanto que mesmo deitados sobre as esteiras, nos beliches de madeira que cortavam o espaço do navio em vários níveis, os passageiros eram jogados juntos, de um lado para outro. Diz Riukiti: "No compartimento destinado aos okinawanos, de tão apertado, ninguém podia esticar as pernas ao dormir. Tanto assim que os passageiros jovens, mesmo as mocinhas, que se mexiam muito, foram obrigados a deitar com as pernas amarradas. Uma situação cômica, da qual não se podia rir".
O fechamento do Japão para o mundo, a condição de incrível desatualização mostrada por seus imigrantes – mesmo por Riukiti, um estudante de nível técnico – torna-se patente no seu espanto diante de "invenções modernas": só conheceria o trem de ferro no porto de Kobe (quase um século após a sua invenção). E apenas no Brasil, dois meses mais tarde, daria uma escapada da Hospedaria dos Imigrantes para ir conhecer, na esquina, outro prodígio: o automóvel! (que na Europa e nas Américas já circulava havia duas décadas; a primeira corrida automobilística européia realizou-se em 1894; no Brasil, em 1907).
Esse povo, porém, mantinha padrões culturais bem estruturados, seculares, presentes até hoje – donde o maior choque, não somente com os brasileiros mas com os imigrantes europeus. Estes, vistos como "sujos e desorganizados" pelos japoneses, por sua vez "consideravam os orientais incivilizados e os menosprezavam". Nas fazendas, os japoneses nem sempre se adaptavam – mesmo decidido a cumprir seu contrato de dois anos, Riukiti viu-se envolvido com o grupo de compatriotas que, instigado pelos "veteranos" da primeira leva migratória, só queria fugir para ganhar mais, nas docas de Santos ou em São Paulo.
Nos anos seguintes a família, que aumentava seguidamente – atingiria em 20 anos um total de dez filhos –, passou por duras experiências. Seu chefe trabalhou arduamente nas docas, na construção da Estrada de Ferro Santos–Juquiá, ou voltando ocasionalmente às fazendas cafeeiras. Mas as dificuldades enfrentadas, a penúria, o estranhamento do meio não solaparam sua esperança de estabelecer-se definitivamente no Brasil, em terra própria – afinal, o solo brasileiro era fértil e o país não era assolado sistematicamente por calamidades naturais, como os terríveis tufões de sua ilha natal.
Em 1915 pôde dar um grande e decisivo passo – arrendou um pedaço de terra na localidade de Cedro, onde já havia um núcleo de compatriotas, transformando-se em pequeno produtor independente. Seguiram-se múltiplas peripécias de uma vida rica de experiências, a difícil mas compensadora adaptação a um povo e a um país tão diferentes, as carreiras encetadas pelos filhos, a vinda do resto da família de Okinawa, os netos.
Quarenta e sete anos após a chegada ao Brasil, o velho Riukiti – que nunca aprendeu bem o português – realizava um último e surpreendente feito: iniciava a redação de Watakushi no Kiroku ("Minhas memórias"). Curiosamente só no Brasil é que ele havia podido desenvolver-se culturalmente – dentro de um quadro estritamente japonês. Conta como somente aos 25 anos se maravilhara ao conhecer um livro de ficção, que pedira emprestado a outro imigrante. Dali em diante leu apaixonadamente tudo o que lhe caía nas mãos. Quando apareceu, em 1916, o jornal Nippak Shimbun, tornou-se um dos primeiros e mais assíduos leitores, assinando-o até o seu fechamento, em 1941.
A saga de uma família polonesa que fugiu da guerra
A história da família polonesa Czapski, que se instalou no Brasil em 1941, fugindo da guerra na Europa, ilustra outra vertente da imigração – a resultante de circunstâncias políticas ou perseguições religiosas ou raciais. Foi contada no opúsculo Nosso Caminho de Obra para o Brasil, escrito em 1982 por Ilza Czapska, mulher do técnico agrícola Fryderyk Czapski, de quem falamos anteriormente. "Obra" era o nome da fazenda que possuíam na Polônia. A família, abastada e pacífica, vivia como tantas outras havia várias gerações no mesmo lugar, e nunca poderia imaginar o que o destino lhe reservava.
Ao término de sua missão na colônia polonesa, Fryderyk já se encontrava a bordo do navio em que regressaria à Europa quando a viagem foi cancelada – a Polônia fora invadida por Hitler e a guerra começara. Do outro lado do Atlântico estava sua família inteira, a esposa, Ilza, e os três filhos, Juljan, de 14 anos, Genia, de 13, e o pequeno Janek, de 3. Como veraneavam em outra localidade, tiveram grandes dificuldades para voltar à fazenda de Obra, atravessando um país que naqueles primeiros dias de setembro de 1939 já sofria com bombardeios e violência de toda espécie. Uma população aterrada, disputando escassos víveres, dispersão de famílias, boatos desencontrados, trens abarrotados com fugitivos – sobre os quais as tropas alemãs disparavam com metralhadoras. Em Obra, que já fora ocupada pelos alemães, souberam que Fryderyk havia sido procurado, para ser executado.
Tiveram de se incorporar a grupos de refugiados que eram jogados de um ponto para outro, sem rumo, enfrentando todo tipo de perigos – em uma ocasião, recolhidos a um campo com outras famílias, escaparam da morte quando os velhos soldados alemães que os guardavam se recusaram a obedecer a ordem de executá-los, vinda da administração civil alemã.
Transferências súbitas e inexplicadas, longuíssimas viagens de trem para destino ignorado, fome, frio, o confisco de todos os bens, inclusive das contas bancárias, a angústia diante da separação forçada de Fryderyk e de outros membros da família, a incerteza do destino final – tudo isso foi enfrentado por eles durante dois anos. Nesse ínterim Fryderyk voltara à Europa, mas, como não podia entrar na Polônia, conseguira incorporar-se ao exército francês, na qualidade de oficial. E tentava desesperadamente resgatar a família, pois conseguira um visto de entrada no Brasil para todos. Após uma tormentosa viagem via Alemanha e Hungria, os Czapski puderam se reunir em Paris – por muito pouco tempo: os alemães estavam para invadir a cidade. Ilza e as crianças tiveram de fugir apressadamente, enquanto Fryderyk permanecia em Vichy, com a sua guarnição. Ilza vagou durante meses na região fronteiriça com a Espanha, tentando toda sorte de estratagemas para conseguir reunir simultaneamente os três vistos necessários para a família – o francês, de saída, e os de trânsito da Espanha e de Portugal. Esperava reunir-se ao marido em Lisboa, onde todos tomariam um navio para o Rio de Janeiro.
Esse projeto nunca se realizou. Colhidos nas formalidades burocráticas, na situação política desses países, somente em janeiro de 1941 Ilza e os filhos conseguiriam embarcar no navio Alsina, não em Portugal como pretendiam, mas no porto de Marselha.
Em três semanas, pensavam, estariam no Brasil. Outro engano. Na verdade, devido à falta absoluta de segurança para a travessia do Atlântico, o Alsina, lotado com milhares de refugiados de várias nacionalidades e classes sociais, foi obrigado a se transformar durante os seis meses seguintes em um verdadeiro navio fantasma que vagava pelas costas africanas e ilhas adjacentes, aportando de vez em quando somente para abastecimento.
Os passageiros suportavam mal o calor intenso, as doenças, o tédio, a angústia de se saberem sem rumo e sem terem país que os acolhesse. Apesar disso, procuravam manter o moral e chegavam até a promover festinhas e espetáculos. Um brilhante ator polonês contribuía para distraí-los – o emigrante Zbigniew Ziembinski.
Somente no início de junho uma nota foi afixada no jornal de bordo: o Alsina retornaria a Casablanca, com seus passageiros. A notícia, que parecia boa, logo se mostrou péssima – todos seriam internados temporariamente em um campo da Legião Estrangeira... A família Czapski, porém, conseguiu licença para ficar em Casablanca mais uma semana. Depois de várias peripécias, chegaram à Espanha e finalmente embarcaram em Cádiz, mesmo com seu visto para o Brasil expirado, com destino ao Rio de Janeiro – onde desembarcaram em 10 de julho de 1941. Um mês depois Fryderyk também se reunia a eles – iniciavam assim uma nova vida, num cenário exótico.
Sessenta anos mais tarde, o filho mais velho, o médico Juljan Czapski, em sua elegante clínica paulistana no Jardim Europa, relembra como se sentia atordoado nos primeiros tempos de Brasil. Rapaz de 16 anos, vestido com uma calça comum e uma camisa esporte, quis tomar um ônibus, no Rio de Janeiro, e não conseguia compreender por que tanto o motorista como os passageiros não queriam deixá-lo entrar. Até que apareceu alguém falando francês e explicou-lhe que era proibido tomar um ônibus sem gravata. Pequenas histórias lhe ocorrem, de um Brasil certamente muito diferente do atual: "Havia bondes de primeira e de segunda classe. Os que estavam descalços só podiam andar de segunda. Na primeira, só se tivessem ao menos um dos pés calçado. Nas famílias pobres era comum dois irmãos partilharem um único par de sapatos para viajarem de primeira".
Passada a euforia de se sentirem salvos, os Czapski enfrentaram uma dura realidade – sua situação social mudara completamente. De abastados "senhores" passaram a trabalhadores que tinham de disputar qualquer emprego no mercado de trabalho, com o agravante de não terem nenhum conhecimento da língua e dos costumes locais. O pai, certo de que como técnico agropecuário encontraria emprego num país tão necessitado de desenvolvimento, logo se desiludiu. Depois de andar de uma repartição para outra no Rio de Janeiro, com valiosas mas inúteis cartas de recomendação, teve de ir para São Paulo com a família, alojando-se todos num único quarto, no porão de uma pensão. Não conheciam ninguém. Com muito custo arranjaram um emprego temporário de agricultor para Juljan, no Paraná, mas logo foi possível para o rapaz voltar a São Paulo e preparar-se, estudando à noite, para o vestibular de medicina. A filha Genia também encontraria lugar em um sítio próximo ao Rio.
Esfalfando-se sob o sol do meio-dia para vender produtos químicos ou executar outras pequenas tarefas, Fryderyk, que nunca andara a pé, foi conseguindo aos poucos, com a ajuda de Ilza, mudar a situação. Quando puderam se instalar numa velha casa, foi um progresso enorme. No final da guerra, os Czapski sofreram novo golpe: nunca mais poderiam voltar à sua fazenda na Polônia, que caíra sob o jugo comunista. Mas em 1945 seria possível a eles recomeçar a vida com uma situação estável, administrando a Fazenda Lagoa Alta, perto de Araras (SP). Ilza descreve com detalhes esse período de cerca de cinco anos de "aprendizado das condições da agricultura no interior do Brasil". Exerceram as mesmas funções em outras fazendas e mudaram muitas vezes de residência, instalando-se no interior de São Paulo e do Paraná.
A história dos Czapski, como a de tantos outros imigrantes, teve um final feliz – todos prosperaram, se mantiveram unidos, casaram, tiveram filhos e netos e se transformaram em uma grande família brasileira, completamente arraigada no solo que a acolheu.