Sesc SP

postado em 29/06/2014

Tiago, o domador de vozes

 tiago

      


Por Luiz Nadal*

Traje recomendado: Regatas e tênis de atletismo
Utensílios de viagem: Tampões de ouvido

 

O primeiro encontro de Tiago com a sala de leitura

A primeira jornada de Tiago foi da porta da sua casa até a Biblioteca Chácara do Castelo. O percurso da rua Vitor Dubugras até a Pindorama tinha a distância de quatrocentos metros e foi percorrido em um tempo recorde de dois minutos. Três quarteirões, quatro padarias Vila Mariana, um posto de gasolina e duas travessias de ruas. Maior que o deslumbre ao entrar naquele casarão, foi a decepção final. Com os cabelos revoltos de Ulisses, Tiago passou pelo corredor de livros. Dos dois lados, prateleiras de metal que pareciam tocar os céus: Tintim, Asterix, Stella Carr, Manuel Bandeira, Marcos Rey, Assis Brasil e toda a coleção Para gostar de ler. Porém ao final do corredor, quando viu aquela sala de leitura vazia, Tiago não ouviu as sereias cantarem. “Aquele lugar vivia deserto, ninguém queria ficar lá”. A bibliotecária, que usava esmalte Vermelho Atena, apontou o regulamento. – Idade mínima de 10 anos para retirada dos livros.

 

O diálogo de Tiago com A voz de sotaque empolado

Com 12 anos completos, TIAGO NOVAES leitor oficialmente cadastrado nesta instituição municipal desde janeiro de 1991, nunca mais pisou na sala de leitura. O primeiro livro a levar para casa foi uma edição de bolso de Moacyr Scliar. – Doutor Miragem? A bibliotecária, que usava esmalte Rosa Aurora, indicou o local da assinatura. Sem mais idade para alcançar os gloriosos dois minutos, chegou em casa aos cinco e aos seis minutos já estava na cama sem tirar os tênis. Na primeira linha  do livro, ouviu uma voz que não era a sua. “Um narrador forte, com profunda consciência de sua tragicidade” – Tiago lembra perfeitamente do sotaque porto-alegrense de Moacyr. “Era a mim que ela se dirigia, aquela voz de sotaque empolado”.

 

A voz de sotaque empolado tenta controlar o destino de Tiago

“Eu queria escrever daquele jeito”. No colegial, quando começou as sessões de terapia, quis dizer ao Dr. Alcibíades sobre o incômodo que A voz de ideias autoritárias começava a lhe causar. “Eu nunca quis profissionalizar a minha paixão pela escrita fazendo letras”. Tiago deixava o pensamento correr: “Eu queria uma profissão que conseguisse me tirar de mim mesmo”. A voz que tinha mais de setenta livros acreditava no trabalho dos psicoterapeutas, mas isso só até Tiago tomar a decisão lá mesmo no divã: “Então resolvi fazer psicologia”.

 

De como Tiago conseguiu domar as vozes

Foi no curso de psicologia da USP, em 1997, que Tiago começou a ler os escritos de Freud. No início o novo sotaque tcheco foi o horror para A voz de sentimentos feridos de Moacyr. Mas com um pouco mais de análise, Tiago domaria as duas vozes: “A psicanálise surgiu para mim como uma espécie de elaboração de ficções”. Se as duas vozes concordavam em algo era que a memória é mesmo uma ficção. Tiago então tomou duas decisões sintomáticas. Começaria o mestrado sobre um caso clínico da psicanálise. “Tomei como um novo gênero literário criado por Freud”. E com a própria voz, aquela que pensa o pensamento da gente, pensou: “Já estava na hora de escrever o meu livro”.

 

A crítica ouve a voz de Tiago pela primeira vez

A voz de sotaque empolado não dava mais as caras desde que Tiago havia alugado um apartamento no CopanTambém não haveria mais buzinas, brigas de vizinhos, nem gatos no cio que interferissem no seu destino. Tiago conseguiu escrever seu primeiro livro nessa época. Subitamente: agora foi publicado em 2004. Um ano depois, numa manhã de sábado, quando já se acostumava com aquele silêncio artificial, tirou os tampões do ouvido antes de abrir o jornal. “Caramba, eu existo!”. Lá estava o seu livro de contos elogiado por Manuel da Costa Pinto na coluna Rodapé. Foi a primeira vez que ouviu A voz de autor orgulhoso de Moacyr gritar de emoção. Ou era a sua?

 

Tiago descobre que sua voz era mais silenciosa

Era a sua. Afinal quando publicou o romance Estado vegetativo, em 2007, leria uma nota empolada e em bom som do verdadeiro Moacyr Scliar a seu respeito. “Foi quase uma bênção literária que ele me deu”. Mais tarde também publicaria Documentário, em 2012. Um livro que narra um processo analítico e traz um documentário em vídeo, o Herança, cujo tema são os silêncios nas histórias familiares.

 

O último encontro de Tiago com uma sala vazia

Depois do primeiro livro Tiago continuou frequentando as sessões do Dr. Alcibíades. “Eu sonhava constantemente com uma sala fechada”. Tiago prosseguiu: “Na última vez a bibliotecária, que usava esmalte Azul Ítaca, abriu a porta”. Tiago deixou a conclusão chegar. “Eu sempre achei que as salas de leitura deveriam ser um lugar legal pra se falar de livros e dos escritores que o autor carrega com ele”. Em 2005 Tiago deu início a um ciclo de conversas com escritores, batizado de Tertúlia. “Era a definição perfeita para o evento”. Foram conversas íntimas com mais de quarenta convidados sobre as vozes literárias que os formavam como escritores. Nas primeiras edições, realizadas na Livraria da Vila, Tiago recebeu Moacyr Scliar para falar sobre a voz de Franz Kafka na sua obra. “Por um segundo achei que aquele sotaque tcheco era do Freud”. Entre 2008 e 2010 o evento abriu as suas portas nas unidades do Sesc e teria sempre as salas cheias.



Grande feito heroico: Tertúlia: o autor como leitor. A antologia foi organizada por Tiago Novaes a partir do ciclo de conversas realizados durante os cinco anos do evento, em que mais de quarenta autores e tradutores encheram as salas para conversar sobre suas influências literárias. “Imagina se alguém dissesse que aquilo era coisa da minha cabeça?”. Neste livro vinte participantes do ciclo Tertúlia dão o seu testemunho sobre a vida de leitor. Entre eles, Marcelino Freire fala sobre a voz tuberculosa de Manuel Bandeira que tanto queria imitar; Ana Miranda conta como convenceu Augusto dos Anjos a ser personagem do seu livro; Luiz Ruffato explica porque Guimarães Rosa não lhe quis como herdeiro. Ao final, Tiago fecha – apenas com chave fictícia – com uma homenagem a Moacyr Scliar.

Musas: Nara Leão e Fernando Sabino. “Minha formação literária foi pela bossa nova e pelos mineiros. Sempre tive a ideia de que literatura era uma coisa de grupo”.

Dedicatória aos Deuses: “O que temos aqui é um autor que associa uma extraordinária capacidade de contar uma desafiadora história a uma vasta cultura e a um soberbo domínio da palavra”. Moacyr Scliar, a respeito do romance Estado vegetativo de Tiago Novaes.

 


* Luiz Nadal é colunista na Revista Pessoa e mestrando na UERJ com projeto acerca do gênero perfil.

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