Sesc SP

postado em 29/06/2014

Ademir, o condutor de entrevistas

 ademir

      


Por Luiz Nadal*

Traje recomendado: Camisa de flanela e botas de couro
Utensílios de viagem: Saco de carvão

 

Ademir vê o fim da linha pela primeira vez

Quando Ademir alcançou os 8 anos, ele viu o final da linha chegar. Lambido e com camisa de flanela, a mãe embarcou o caçula na Estação Araraquara. “A gente tinha passe livre” – conta. O Tifão dos trilhos subia por São José do Rio Preto e deixava os últimos passageiros em Santa Fé. Quando o pai apitou anunciando a última parada, Ademir perguntou – Se a terra continua, por que não tem mais trilho? Dias depois, quando viu o Apollo 11 estacionar na lua, saiu para fora e chamou o pai do portão. – E se não tem trilho até lá em cima, como é que se acha o caminho? O pai não tinha um oráculo para essas horas, mas desligava a TV Tupi e ligava Sérgio Reis na vitrola de plástico. As estradas e os bois sossegavam o garoto. Isso até a rádio anunciar a nova divindade do Festival de Música da TV Record. Caetano, o baiano ultramoderno, abria as porteiras do país com espaçonaves, guerrilhas e Coca-Cola. “Eu não entendia exatamente o que ele tava falando, mas parecia tudo muito presente”. As guitarras elétricas não tranquilizaram Ademir como o berrante costumava fazer. Eu vou, Por que não? Por que nããão?  

 

Ademir começa a sentir o terreno

Na adolescência Ademir conheceu os estudantes de ciências sociais da Unesp. Muitos deles eram do movimento estudantil e alguns usavam camisetas vermelhas e bigodes. “Eu nem sabia o que era Trotsky” – ri. De qualquer maneira, Ademir começava a desbravar a cidade natal. Candidatou-se a uma vaga no escritório de paisagismo do Doutor Leão. – Sabe datilografar? A essas alturas, Ademir sabia que as melhores respostas são provisórias. Porém passado alguns dias, o funcionário novato se viu encurralado. Enquanto os outros três garotos datilografavam cinco páginas na IBM elétrica, ele não saía da primeira. Suspirou fundo e puxou uma folha em branco. “Aí comecei a escrever toda aquela angústia…”. O rapaz ao lado, Anael, bateu nas suas costas – Porra, você escreve bem, hein? Se não existia oráculo para confirmações como aquela, melhor não desperdiçar conselhos do jovem Tirésias. – Escrevo!?

 

De quando Ademir viu que a terra também acaba

Anael escrevia poesia e lhe trouxe alguns livros. O primeiro deles foi Robert Frost, o poeta de versos andarilhos. “A partir daí não parei mais. Lia dia e noite”. Os dois então selaram um acordo. Cada um teria direito a trinta minutos de leitura dinâmica no banheiro do escritório. Os ladrilhos do chão não se moviam como a locomotiva do pai, mas o final da linha demorava mais para chegar. “Se o Leão estiver sentindo a minha falta, você bate na porta” – imita. Logo que Anael começou a escrever no jornal da cidade, O Imparcial, convenceu Ademir a enviar alguns textos. “Eu vou escrever o que, cara?”. A princípio, sobre o que alcançava a vista. “Comecei a escrever umas crônicas, narrando coisas da cidade”. Em seguida, se o terreno acabasse, era questão de emendar mais terra. “Sabia que tinha uma boa faculdade de jornalismo na UEL e Londrina tinha um puta jornal”.

 

Ademir encontra combustível suficiente para a sua locomotiva

No inverno de 1979, o forasteiro se sentiu em casa com o fog da Pequena Londres. “Nasci em Araraquara e renasci em Londrina”. A vida cultural soltava faíscas com cineclubes, grupos de teatro e os titãs mais velhos da poesia como Domingos Pellegrini e Nilson Monteiro. “A gente tá falando de 79!”. Ademir pisava com as suas botas em terras novas. Os beatniks incendiavam as estantes e os cupidos nacionais vestiam preto, como Leminski e Caio Fernando Abreu. Os agudos de Caetano apitavam e Torquato Neto trazia um saco de carvão reserva para o vagão que tomava frente. “Bicho, isso aqui é poesia! Velocidade, uma rapidez, pá, e um jeito de escrever que pra mim era um jeito rock’n’roll” (estala os dedos).

 

Ademir conduz os primeiros passageiros

“Nesse período que comecei a ir pro jornalismo, nunca me perdi da poesia”. No último semestre da faculdade, Ademir escreveu uma carta em protesto ao artigo do Magnífico Senhor Reitor sobre os rumos de 1983. “Porra bicho, esse cara é muito atrasado!” – lembra. O editor de política da Folha de Londrina imediatamente ofereceu uma vaga – Sabe fazer polêmica?. Em oito meses Ademir estava no caderno de cultura, o Caderno 2. Desde o início, seu método de trabalho foi feito com um saco de carvão do lado. “Eu me preparava muito!”. Pergunta-Resposta. Pergunta-Resposta. Pergunta-Resposta. O gravador apitava, em seguida transcrevia as fitas k7 e editava o texto. Ademir, o condutor de entrevistas, levaria Caetano Veloso, Augusto Campos e Itamar Assunção para os leitores já na sua primeira viagem.

 

O vagão de Ademir encontra uma nova estação

Depois de três anos no jornal, Ademir anunciou a partida para São Paulo. Com toda estrada ainda por fazer, Humberto Werneck, então editor de cultura da Istoé, sinalizou o seu destino. “Eu acho que o teu lugar é o Caderno 2”. Não era adivinhação, já que desde aquele ano de 1986 o Estadão tinha um caderno de cara nova. O editor, que usava bermuda embaixo do terno, gostou da panca de Ademir, com textos na mão e camisa de flanela. – Você sabe quanto você quer ganhar?

 

Ademir vê o fim da linha pela última vez

De todas as paradas, foi no Caderno 2 que Ademir mais se aproximou da missão Apollo 11. Ao invés de andar sobre trilhos, o condutor quis abrir um caminho próprio. “Pra mim tudo vem da poesia, mesmo no jornalismo, ainda que menos nos textos, mas mais na discussão de ideias”. As estações foram ficando restritas a visões críticas, à irreverência e densidade dos seus passageiros. Com a partida d’O Estado de S. Paulo, depois de dois anos, passou a estacionar apenas onde lhe permitiam sujar as mãos de carvão. Desembarcou ainda em grandes veículos, como Jornal da Tarde e Folha de S. Paulo. Não sendo o caso, estações alternativas como a revista Coyote, em que é um dos editores, ajudam os entrevistados a circular. Ademir já não precisa de um oráculo quando vê o final da linha se aproximando. Ele apenas desvia: “Quando as possibilidades de fazer jornalismo do jeito que eu queria já tavam se repetindo. Eu pensei, bom, agora eu vou publicar livros”. Eu vou, Por que não? Por que nããão?



Grande feito heroico: Faróis do caos: entrevistas de Ademir Assunção. Esta antologia apitou em 2012 com entrevistas de 29 artistas brasileiros conduzidos pelo autor. Ademir reuniu as fitas k7 e escolheu as melhores publicações do gênero Pergunta-Resposta-Pergunta-Resposta ao longo de 28 anos de trabalho. O livro passa pelas estações mais conhecidas, como Folha de Londrina, O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, nas quais figuras como Caetano Veloso, os irmãos Campos e Paulo Leminski tiveram assento de primeira classe. Por outro lado, as estações de menor estatura são parte importante do trajeto. É o caso da revista Coyote, que incluiu na rota grandes entrevistas com Mário Bortolotto, Nelson de Oliveira e o quadrinista Marcatti. “Nunca me preocupei em entrevistar apenas os famosos ou já estabelecidos na cultura oficial. Ao contrário: sabia que muitos que estavam ‘na sombra’, circulando pelas margens, ou completamente esquecidos, tinham o que dizer.” – explica Ademir, com o rosto sujo de carvão.

Musas: Torquato Neto. “Decidi escrever poesia pra valer quando ouvi Jimi Hendrix tocando "Hey Joe", uma canção de Billy Roberts. Pensei no ato: quero escrever com a mesma eletricidade com que Hendrix toca essa guitarra. Pouco tempo depois me deparei com a edição de Os últimos dias de Paupéria e percebi que era possível. Torquato escrevia com aquela eletricidade. Essas duas descobertas incluenciaram minha percepção da linguagem”.

Dedicatória aos Deuses: “Não sei precisar há quanto tempo conheço Ademir, mas sei, há mais de dez anos, que ele é um desses guerreiros poéticos que vem sendo gestado, e se autogestando, em silêncio e para poucos. Como diz Helena Kolody, exemplo luminoso dessas preciosidades ocultas: 'do longo sono secreto na entranha escura da terra, o carbono acorda diamante'". (Alice Ruiz, acerca do primeiro livro de poesia do autor, Lsd Nô – publicado em 1994 pela editora Iluminuras) 

 


* Luiz Nadal é colunista na Revista Pessoa e mestrando na UERJ com projeto acerca do gênero perfil.

Produtos relacionados