Sesc SP

postado em 12/09/2014

Tempo de calar-se

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Organizado por Adauto Novaes, Mutações: o silêncio e a prosa do mundo descortina a importância do silêncio como elemento essencial para a reflexão e para a fala.

Por Paula Felix Palma* 

O mundo moderno assiste a uma mudança profunda de conceitos. Entramos em uma era sem modelos, na qual as relações interpessoais e muitos códigos sociais já não funcionam. A condição pós-humana coloca a ciência no centro de todas as coisas, substituindo o protagonismo antes encenado pelo homem e pela religião. As consequências podem ser ressaltadas em todas as áreas da vida e do conhecimento humano, instigando intelectuais modernos a modificar seus objetos de estudos. Assim o jornalista Adauto Novaes define a série Mutações, realizada desde 2007 no Sesc São Paulo, com o objetivo de decifrar e elucubrar sobre as vicissitudes do mundo. E o resultado dos ciclos de conferências são os títulos brilhantemente organizados por Novaes, e que contaram com temas necessários para a construção de um mundo novo: Ensaios sobre as novas configurações do mundo, A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações, A experiência do pensamento, A invenção das crenças, Elogio à preguiça e O futuro não é mais o que era.

Sétimo livro da série, Mutações: o silêncio e a prosa do mundo investiga as razões para a inaptidão à quietude, a complexidade da fala e algumas de suas artimanhas. Um inesgotável paradoxo entre a importância do silêncio e a necessidade da palavra, em uma relação de eterna dependência.

A fala emancipou o homem, por meio da qual ele se torna, de fato, humano, capaz de produzir política e arte. É por meio dela que se gera história, segundo Merleau-Ponty. Sem palavras, não se concebem coisas ou ideias.

Mas colocam-se opostas as relações entre tagarelice e reflexão. A rapidez e a agilidade do mundo não permitem mais a calma das palavras. É em uma linguagem técnica que se busca o vocabulário da vida, que corrobora com o pensamento cada vez mais vazio, menos humano. Ouvir o outro também se torna pouco importante. Quer se falar a todo o tempo. E assim, a capacidade criadora se dissipa. Aprendemos coisas irrelevantes e gastamos tempo com o que não importa. E é a falação que toma conta do mundo atual.

E então, uma inevitável indagação se coloca na obra: “O que tanto se fala?”

Baseado em estudos americanos, Adauto Novaes cita em suas notas o aumento de sete trilhões de palavras após a chegada das novas tecnologias. A civilização tecnocientífica, inebriada pelas possibilidades inesgotáveis de comunicações, pendeu para a exacerbação. É a era é da saturação da linguagem verbal.

Há também outra relação nos usos da linguagem e das palavras postas nesta obra. Paul Valéry (1871-1945) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) se debruçaram sobre os perigos da fala e denunciam uma verdade atribuída na imposição cerrada da linguagem. Além disso, a fala pode ser aprisionadora do espírito. O filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), grande pensador da linguagem, disse que “o poder das palavras acaba por deformar as ideias”. Mas como expressar a realidade se não pela linguagem? O silêncio, nesse contexto, se postula como essencial para a comunicação com o mundo, para um sentido do pensamento. O silêncio é uma forma de linguagem.

Quanto o ruído e as urgências frenéticas e desnecessárias interferem no entendimento que temos do mundo? O excesso de estímulos resulta na fragmentação da percepção e deteriora a concentração necessária para a realização de atividades mais densas. O resultado é o embrutecimento e a ansiedade. É esse paradoxo que o livro tenta explicar. "Sem a experiência do silêncio, não se entende o que se diz", escreve Adauto Novaes. Porque o falar demasiado faz a fala perder o sentido.

Seguindo a tradição dos anos anteriores, foram convocados para proferir sobre o tema renomados pensadores de nossa época, nacionais e internacionais. São 24 relatos e, dentre os diversos assuntos tratados – como a mentira, a poesia, o silêncio público, a mídia, o silêncio na história, o discurso político – pode-se notar um apelo ao silêncio para uma economia mental mais equilibrada.

Newton Bignotto elucida em seu texto “As formas do silêncio”, como se dá o diálogo constante entre o silêncio e a fala, e afirma que este espaço é o limítrofe entre a nossa finitude e onde as fragilidades se mostram.

Há várias formas de silêncio, ora passiva, ora ativa. "Certamente que a sorte da humanidade seria mais feliz se estivesse igualmente na potência do homem tanto falar como calar-se”. Oswaldo Giacoia Junior se utiliza dessa transcrição de Baruch Spinoza (1632-1677) para apelar “Por horas mais silenciosas”, expressão que dá título a seu ensaio.

A mentira também foi alvo de reflexão em O silêncio e a prosa do mundo. Na obra Confissões, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), há relatos sobre o remorso acerca da mentira. Ele afirma que é quase inevitável que inventemos coisas ditas como verdadeiras. “A mentira pode ser também ficção”. Eugène Enriquez, em “O discurso político”, abordou a necessidade da mentira na oratória dos governantes – algo sabido desde Maquiavel, nos diz o autor. Para ele, o discurso político deve ser decifrado em atos após a eleição, já que existe uma posterior cobrança e uma inevitável frustração com o governante, principalmente porque a crítica é facilitada pelo acesso aos meios de comunicação.

Jean-Pierre Dupuy, ao introduzir a questão do saber público por meio de histórias divertidas, postula que os sistemas sociais não podem sobreviver se certas verdades forem desvendadas publicamente, mesmo que já conhecidas de todos. Em “O silêncio público”, discorre sobre a criação da economia política e da má-fé coletiva, dentre muitos outros aspectos.

Marcelo Coelho escreveu um artigo nomeado “Silêncio do torturado, loquacidade do torturador”, em que destrinchou o dilema do falar e do não falar do torturador. Em “Os recursos éticos do silêncio e o ‘ensinamento sem palavras’ (wu yan zhi jiao) no taoismo antigo”, de Romain Graziani, outra abordagem é muito proveitosa: a aprendizagem do silêncio por Confúcio (551 a.C – 479 a.C). Ele foi quem primeiro percebeu a “parasitagem” produzida pela linguagem em contraposição ao preceito do silêncio.

“Nenhum espírito pode ficar indiferente à tagarelice do mundo”. É assim que Mutações: o silêncio e a prosa do mundo instiga a reflexão sobre a quietude. O silêncio conduz a um percurso ao que não existe, e por isso, fascina. A obra é essencial para descortinar essa nova face do silêncio e questionar sobre o medo de estar só e sobre a dificuldade do estímulo ao silêncio. É preciso transformar a fala falada em fala falante; e nessa passagem, o silêncio se personifica como ator primordial.  

 

Veja também:

:: Trechos do livro na Livraria Sesc

:: Blog Mutações

 


*Paula Felix Palma é jornalista, cursou filosofia na Universidade de São Paulo e é editora chefe da Revista Filosofia Ciência e Vida.

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