A arte e os inventivos modos de ver
Pontos de vista: artistas e seus referenciais, organizado pelo historiador inglês Simon Grant, estabelece um fascinante diálogo entre artistas próximos ou distantes no tempo
Por Welington Andrade*
O mercado editorial voltado às artes plásticas está repleto de obras de referência que organizam e catalogam uma extensa lista de objetos estéticos que o homem vem produzindo desde que há muito aprendeu a direcionar seu espírito às atividades de fruição e contemplação. No entanto, faltam nesse mercado alguns títulos que, sem perder o rigor informativo e a seriedade conceitual, enveredem mais pela ousadia de linguagem, pela invenção na abordagem temática, pela inovação estrutural. Por isso, uma iniciativa editorial arrojada e arejada como Pontos de vista: artistas e seus referenciais, que as Edições Sesc São Paulo ora estão fazendo chegar ao mercado deve ser saudada prontamente.
As páginas de Pontos de vista: artistas e seus referenciais registram escolhas que estabelecem um rico diálogo entre o passado e o presente, a tradição e a modernidade, a deferência e a transgressão. Trata-se de um livro de arte que seleciona os trabalhos favoritos – concebidos em tempos distantes ou em dias próximos de nós – de 78 artistas contemporâneos, convidados a escrever sobre obras que inspiraram suas trajetórias ou aderiram a suas memórias, obras que eles reputam como belas, que ecoam em suas próprias práticas artísticas ou que são simplesmente difíceis de serem esquecidas. O resultado não poderia ser mais fascinante: por meio dessa eclética mistura de criações vindas de momentos e de lugares tão diferentes, o leitor tem à disposição uma espécie de história da arte alternativa, que começa no século XV e chega até a década de 1960.
Organizado pelo escritor e historiador britânico Simon Grant, editor da prestigiada revista de arte Tate Etc., Pontos de vista não somente presta o merecido tributo a obras sobre as quais já há muito tempo paira a aura de clássicas, como também aposta na surpresa, no risco e na ousadia que envolvem certas escolhas, já que muitos dos trabalhos selecionados não fazem parte propriamente do cânone artístico. Assim, o leitor terá a chance de conhecer a insuspeita conexão que há tanto entre o artista brasileiro Vik Muniz (1961) e o pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640) como entre o performer alemão John Bock (1965) e o obscuro escultor suíço Armand Schulthess (1901-1972).
Além do apurado projeto gráfico que reproduz com notória qualidade o extenso e valioso conjunto de imagens que servem de objeto às reflexões aqui propostas, o que chama a atenção nos textos – à exceção de quatro deles, anteriormente publicados, os demais foram especialmente concebidos para essa edição – é o modo apaixonado e envolvente como os artistas falam de suas escolhas, expressando, além de entusiasmo e admiração, um denso conhecimento sobre a história da arte. Em seu texto de apresentação, Simon Grant, o organizador do livro, indaga: “O que Pontos de vista nos diz sobre os artistas contemporâneos e as obras que escolheram?”, para responder prontamente em seguida: “Acima de tudo, diz que suas paixões pessoais são muito fortes e duradouras, e alimentam a maneira como veem o mundo de hoje”.
Na obra de Victor Hugo (1802-1885), por exemplo, Raymond Pettibon (1957) identifica alguém que “tinha a doença da tinta”, reconhecendo: “Eu sei como isso é, pode se tornar uma extensão de si mesmo. Está no sangue”. Ed Ruscha (1937) escreve sobre “o pequeno fio de prata” que corre entre suas pinturas e a Ofélia de John Everett Millais (1829-1896), que influenciou profundamente sua arte desde que ele a viu pela primeira vez na Tate Gallery, em 1961. Para Ruscha, aquela pintura tão realista se tornou “um gatilho da minha arte; uma inspiração para o que faço”. Ao admirar as paisagens de Paul Nash (1889-1946), Tacita Dean (1965) afirma se sentir unida a ele nos cenários retratados, “como se eu mesma os tivesse conhecido e os reconhecesse”. Já Beatriz Milhazes (1960) revela sua ligação íntima com Hans Memling (1430-1494), de cujo Retrato de homem com cravo não consegue se separar: “Tenho dois cartões-postais dela. Um está pendurado na parede de meu ateliê e a outra fica atrás da tela do meu computador, em casa”.
Para além da “angústia da influência”, estudada na literatura por Harold Bloom, estão presentes também na evolução da arte e da cultura o exercício da sedução mais cativante e da intertextualidade mais profícua que podem emanar de um predecessor em direção a discípulos, admiradores, antípodas ou criadores que, por força do tempo natural, são simplesmente colocados na posição de pósteros. Há muito a história da arte vem nos ensinado sobre essas relações tão articuladas quanto complexas. Michelangelo (1475-1564) admirava Masaccio (1401-1428), que admirava Donatello (1386-1466). Joan Miró (1893-1983) fez seu Autorretrato dialogar com O homem que ensinou Blake a pintar em seus sonhos, de William Blake (1757-1827). Esculpida no século IV da era cristã, a cabeça de mármore do imperador Constantino, exposta no Museu Capitolino, de Roma, serviu de modelo para a Grande tête, de Alberto Giacometti (1901-1966).
Quase metade dos artistas convidados a integrar a coletânea escolheram obras do século XX, sobretudo ligadas à musa modernista. E muitos elegeram predecessores de apenas uma geração anterior. As ligações mais viscerais advêm de experiências de infância, quando o contato com o mundo se dá através dos olhos da primeira vez. É digna ainda de registro a grande quantidade de criadores que relatam epifanias e alumbramentos diante de quadros e esculturas expostos em galerias e museus. A persistência dessa memória é algo potente e provocador.
Ao final da leitura – que poderá ser feita na ordem que melhor aprouver ao leitor, já que se trata de vasto um conjunto de imagens e textos autônomos e independentes – sobressai a fé inabalável no poder que a arte pode exercer sobre nós. Em relação a novos pontos de vista e a novas formas de ver. Esclarecendo conteúdos, libertando o homem das sombras, iluminando seu mundo, enfim.
*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, professor e vice-diretor da Faculdade Cásper Líbero e colunista da Revista Cult.