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postado em 10/04/2015

A ética renovada

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Em Ética urgente!, Fernando Savater se defronta com jovens cada vez mais decepcionados com a política

Por Renato Janine Ribeiro*

 

Quando seu filho tinha quinze anos, em 1991, Fernando Savater escreveu Ética para amador. Sua ideia era dirigir-se especialmente aos mais jovens. Há toda uma gama de bens culturais voltados para a juventude, como filmes, músicas, literatura; por que não haverá filosofia? Mais claramente, por que não haverá ética? Talvez ele tenha pensado o seguinte: existe todo um campo da filosofia que lida com as questões do conhecimento e do ser; nem todos se interessam por elas; estudá-las pode exigir uma expertise, um conhecimento específico, mais ou menos como se requer do matemático ou do médico; mas há dois campos da filosofia que lidam com questões que a todos interessam, mais que isso, que exigem um posicionamento de todos. Estes campos são a ética e a política. Por isso, escrever uma Ética para amador e uma Política para amador (1992) faziam, fazem especial sentido. Não precisamos ter uma “ontologia para amador”, ou uma “teoria do conhecimento para amador”; mas uma ética e uma política são absolutamente necessárias. Para amadores.

A chave está na questão da expertise. Ética e política pouco têm a ver com ela, com o domínio técnico de um segmento da experiência humana ou do conhecimento que podemos adquirir das coisas. Inúmeras atividades em nossa vida, em particular nossa vida profissional, dependem de uma especialização crescente. Quem não é sapateiro fará maus sapatos. Mas haverá alguma profissão chamada de “ético”, que faz a melhor ética, que vive a vida da forma mais ética possível? Ou tudo o que diz respeito à ação humana será mais amplamente democrático, estará ao alcance de todos, desde, claro, que nos esforcemos para tanto? Nossa ação pode ser coletiva, pode visar o bem coletivo, e seu plano será o da política. Pode ser mais individual, com o foco no sujeito que decide sua vida ao se relacionar com os outros, e então se chamará ética. Nos dois casos, a profissão é secundária. Ética e política não são para profissionais. São para amadores. São para quem as ama.

Professar se dizia de quem afirmava uma fé religiosa. O leigo que fazia sua profissão de fé saía do mundo – do mundo laico – para consagrar sua vida a uma missão específica. Em nosso mundo laicizado, “profissão” conserva seu sentido original. Profissionais, para nós, são os que trabalham num segmento da produção com zelo e diligência. Mas nem tudo na vida é profissão. Talvez ela devesse consumir apenas oito horas por dia, e somente nos dias úteis. A política não deve ser uma profissão, embora muitas vezes o seja. É um erro restringir a política aos políticos profissionais. Um político não tem uma formação acadêmica específica, ninguém se diploma na faculdade como “político”. Numa democracia, sua profissão deveria ser a mais instável de todas. A cada tantos anos, ele seria mandado de volta para casa. Ora, isso vale ainda mais para o ético. Se nossa sociedade, erradamente, tem políticos profissionais e até chega a falar em “classe política”, felizmente isso não acontece com a ética. Ser ético não depende de uma formação acadêmica ou de um credenciamento profissional. Na verdade, ser ético é a maior negação da profissão. Ser ético é abrir para o mundo, é abrir-se para o mundo. Uma pessoa ética talvez seja apenas aquela pessoa que vai longe no propósito de ser o mais humana possível, isto é, de aceitar suas limitações, de reconhecer que se choca com uma realidade que lhe resiste, de agir em relação aos outros tendo-os como fins e não como meios.

E é por isso que, vinte anos depois do primeiro Amador, Savater volta aos jovens na série de diálogos que compõem este livro. E é lógico que a Internet seja o primeiro tema destes diálogos. Nestas décadas, ela mudou por completo nossa vida. Savater mostra que a maior parte das invenções dá continuidade a uma potência humana, que ela amplia (os telescópios multiplicam o alcance do olhar), ou a um desejo, que ela realiza (o avião satisfaz o sonho de Ícaro). Não penso que isso continue valendo para a Internet e as redes sociais. As invenções do passado tinham uma relação analógica com a potência ou desejo humano que suscitavam. Olho, telescópio; asas das aves, asas dos aviões. Já as novas invenções parecem não ter mais analogia com uma necessidade ou anseio nossos. Parece que elas despertam, suscitam novos anseios, que depois se tornam necessidades. Elas não são respostas a algo preexistente. Elas causam novas necessidades, novos desejos. Talvez por isso, elas coloquem perguntas mais difíceis. Quando uma arma de fogo substitui o punhal, mudam vários costumes, mudam também as regulamentações que os Estados impõem à violência. É uma questão de adaptação. Mas é apenas isso. Agora, quando a violência se torna digital, a mudança não será mais radical? Não estamos diante da possibilidade de não reconhecer mais o mundo que nós mesmos geramos? Não estaremos perdendo, com nosso mundo artificial, a chance de reconhecimento mútuo, num mundo mais antropomórfico do que o atual? Daí, talvez, uma perplexidade maior que nossa época manifesta em questão ética. As grandes perguntas e doutrinas éticas continuam valendo. Mas o meio de campo entre elas e o vivido ficou opaco. Lançar a luz sobre essa opacidade é o que Fernando Savater procura nesta obra. 

Daí, também, a dificuldade com a política. O autor se defronta com jovens cada vez mais decepcionados com a política. Nestes vinte anos desde o Amador, a vida privada parece ter avançado em detrimento da vida pública. Mas não podemos abandonar a política. Se você não faz política, ela faz você. E inventar, reinventar a política é preciso. Não nascemos, como os animais, com o software todo pronto. Não somos tão bons como nenhum animal na sua especialidade: uma fera mata melhor que nós, um golfinho nada melhor. Somos inespecíficos. Mas por isso mesmo criamos, inventamos. Inventar novas formas de amor, novas formas de política, novas formas de lidar com o socius, com as associações quer micro quer macro, é urgente. Fazer que estas relações próximas e distantes sejam éticas, eis um projeto apaixonante. 

 


* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Entre suas obras, destaca-se A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (2000, Prêmio Jabuti de 2001). Foi nomeado ministro da educação em 06/04/2015.

 

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