Sesc SP

postado em 28/05/2015

Da periferia ao epicentro das empresas

Hudinilson Júnior. Pré-Narciso. Pintura e colagem sobre madeira. 90 x 116 cm. 1990. Acervo Sesc
Hudinilson Júnior. Pré-Narciso. Pintura e colagem sobre madeira. 90 x 116 cm. 1990. Acervo Sesc

      


Ana Maria Camargo e Silvana Goulart convidam o leitor a pensar sobre a formação dos centros de memória e suas relações com a produção documental dentro da empresa

Por Vânia Carvalho*

 

Não faz muito tempo, o Departamento de História da Faculadade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo ofereceu uma disciplina sobre história empresarial. Não foram poucos os alunos que se mostraram indignados com a iniciativa. Ainda que este possa ser considerado um caso peculiar a certas áreas das ciências humanas, não se deve esquecer que é dos quadros da História que provém uma parcela dos profissionais que se especializam no tratamento da documentação arquivística de origem privada. Na década de 1980, quando alguns historiadores se organizaram para oferecer serviços de história empresarial ou organização documental a empresas privadas, tal atitude foi vista com certo desprezo velado, como um desvio da missão maior daqueles formados nas ciências humanas. Tal visão, já envelhecida no meio universitário, foi sobrepujada pelo reconhecimento crescente da importância dos acervos públicos e privados. A mudança de perspectiva veio acompanhada do entendimento de que estes poderiam ser um novo mercado de trabalho, com potencial para se tornar mais amplo e recompensador que a carreira clássica de professor.

O meio empresarial, por sua vez, parece resistir até hoje às contribuições que a universidade tem a oferecer neste campo, talvez por receio em investir recursos financeiros em algo que ainda consideram uma espécie de luxo. Assim, ainda que se reconheçam potencialidades e já existam experiências relevantes, um consenso sobre a necessidade da implantação de sistemas de arquivos nas empresas privadas não foi estabelecido. Mesmo nas instituições públicas, em que se conquistou a obrigatoriedade legal da gestão documental, ainda há muito a ser feito. Nesse processo de formação de um campo profissional, a dificuldade provém do fato de que as mudanças não dependem apenas da aplicação de um conhecimento especializado, mas de transformações no âmbito da cultura empresarial, por isso sua gestação longa.

Ana Maria de Almeida Camargo e Silvana Goulart, em seu mais recente livro, convidam o leitor a pensar sobre a formação dos centros de memória e suas relações com a produção documental dentro da empresa. Ambas são profissionais que há décadas atuam na construção das mediações necessárias entre o universo empresarial e acadêmico. No livro Centros de memória: uma proposta de definição, publicado pelas Edições Sesc São Paulo, escrito em linguagem acessível sem perder a densidade reflexiva e a precisão técnica, as autoras analisam as possíveis funções estratégicas da gestão dos documentos na vida de uma empresa.

Seus argumentos movimentam-se em um quadro conceitual amplo, em que se discutem as intersecções problemáticas entre arquivos, museus e bibliotecas, com a finalidade de clarificar suas diferentes competências e funções, já que são estas instituições as matrizes dos centros de memória. O contexto são as mudanças tecnológicas na produção e gerenciamento de informações e as novas relações de trabalho estabelecidas no mercado global. Criam-se, pois, demandas de mercado que exigem mudanças no modo de trabalhar e, portanto, no modo de produzir documentos.

A matéria-prima das autoras são as experiências de centros de memória empresariais brasileiros que tiveram uma vida longa, ao menos dez anos de existência. No diagnóstico apresentado, é possível ao leitor perceber como várias empresas vislumbraram na reunião de documentos “antigos” – atas de fundação, fotografias de eventos e inaugurações, matérias jornalísticas, medalhas, equipamentos obsoletos, etc. – uma maneira de criar vínculos positivos entre a empresa e seus colaboradores, empregados ou clientes, e de forjar credenciais baseadas em uma imagem pública apresentada à sociedade. Os centros de memória tornaram-se uma ferramenta importante na constituição da identidade das empresas, pois foram capazes de oferecer pontos de convergência em meio à diversidade de posições e expectativas existentes. Tais funções de natureza psicossociais exerceriam um contrapeso aos processos de desterritorialização e mesmo desmaterialização que impactam as relações de trabalho nos dias de hoje.

Estas características se explicam porque muitos centros de memória nasceram de iniciativas das áreas de marketing, comunicação e relações públicas. Seus profissionais orientam-se por metas vindas desses setores, em que os documentos interessam como matéria-prima para a produção de livros institucionais, sites, exposições retrospectivas sobre a trajetória da empresa, estando distantes de uma preocupação documental abrangente.  Outros centros ganharam autonomia a ponto de executar projetos de cunho cultural e social amparados pela empresa. A natureza híbrida dos centros de memória faz parte do processo histórico de sua constituição, da maneira como foram percebidos pelos seus atores sociais – uma amálgama de valores simbólicos, afetivos e organizacionais.

Sem desprezar as funções ritualísticas e identitárias que motivaram a formação de muitos centros de memória, Camargo e Goulart entendem que a prática arquivística deveria orientar as atividades documentais dos centros. Defesa que vem acompanhada de uma crítica ao uso do próprio método arquivístico, que não deve se restringir ao tratamento exclusivo da massa documental já produzida, à qual se aplicariam esquemas de arranjo estanques. Uma abordagem que teria reforçado a ideia de que centros de memória flutuam como apêndices na estrutura da empresa, sendo os primeiros sujeitos à eliminação em momentos de crise ou economia financeira.

Ao longo do livro se vislumbra a verdadeira vocação de tais lugares. Eles seriam capazes de definir de maneira produtiva e racional uma política de gestão documental para toda a instituição, se lhes fosse dada a oportunidade de interferir na modulação primeira dos documentos, isto é, na gestão da produção documental no seu nascedouro, no arquivo corrente, aquele produzido no momento atual da empresa, nas salas de trabalho de cada funcionário. Este “arquivo ampliado” funcionaria articulado às necessidades presentes da empresa, oferecendo respostas qualificadas pela capacidade dos centros de tratar a experiência institucional acumulada. Uma função dessa envergadura deslocaria o centro de memória para o centro da vida da empresa, ajudando a capacitá-la para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo. As autoras se perguntam se isso garantiria, enfim, a longevidade dos centros de memória. Seria essa uma utopia possível? A leitura do livro é um convite à reflexão. 

 


* Vânia Carvalho é historiadora, vice-diretora do Museu de História da USP, onde é professora e atua, desde 1990, como curadora e pesquisadora de história com ênfase em cultura material, espaço doméstico e gênero. 

 

Veja também:

:: Vídeo | Ana Maria Camargo e Silvana Goulart falam sobre os meios e as finalidades da criação dos centros de memóira

 

:: Trechos do livro | Clique na imagem para ampliá-la. Após a leitura, pressione a tecla ESC para retornar ao site. 

 

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