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postado em 27/10/2015

Chaves do universo

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Primeiro livro a narrar a história arquitetônica das bibliotecas ao redor do mundo, A biblioteca: uma história mundial registra construções que vão desde o início da escrita até os dias atuais

Por Teixeira Coelho*

 

“O universo que outros chamam Biblioteca...” Assim começa A biblioteca de Babel, esse conto mítico de Jorge Luis Borges. A pertinência dessa identificação entre o Universo e a Biblioteca fica visível logo na capa deste deslumbrante A biblioteca: uma historia mundial. Ali se vê uma foto do interior do “salão filosófico” do Mosteiro de Strahov, em Praga, de 1797 - e o que ela mostra é exatamente uma representação do universo: três paredes formadas por estantes lotadas de livros assemelham-se à fachada de uma grande mansão de uma grande cidade, esse universo em escala humana, com sua porta central no térreo e, no andar superior, a sacada dessa majestosa morada do conhecimento e da especulação; e mais acima,  o teto abaulado é como um céu varado por figuras soltas no espaço, cenas da natureza, ruínas antigas, o tempo de ontem, tempos indefinidos – numa palavra, o universo. O universo, que cabe numa biblioteca: Borges tinha razão.

Uma  coincidência reforça o sentido sugerido pelo escritor argentino. Em 1956, Alain Resnais realizava um documentário que marcou sua carreira, Toda a memória do mundo, sobre a Biblioteca Nacional de Paris. A certa altura, o narrador diz que ali “prefigura-se um tempo onde todos os enigmas do mundo serão resolvidos”, um “tempo quando o universo entregará suas chaves”. A ficção de Borges é de 1941, dificilmente Resnais saberia dela em 1956. Prefiro acreditar que ele e Borges coincidem na imagem da biblioteca como  universo. Outra forma de dizê-lo é propor que o universo cabe numa biblioteca ou que tem as dimensões (e a forma) de cada biblioteca, posto que há tantos universos quantas forem as bibliotecas e suas arquiteturas.

E como a arquitetura do universo, também a das bibliotecas, tema deste livro escrito pelo historiador da arquitetura James W. P. Campbell, é fascinante. Registradas por Will Pryce, fotógrafo de interiores e de arquitetura, as imagens incluídas no volume são de tirar o fôlego: a biblioteca do Trinity College (1856), Irlanda, a de um templo japonês do século XV, a biblioteca do Escorial (1585), a da abadia de Altenburg na Áustria (1741), a biblioteca Palafoxiana do México (1772), a soberba biblioteca Marciana de Veneza (século XVI), a da abadia de Wiblingen (1744), Alemanha, são um festim visual. E sem dizê-lo em palavras, esse panorama aponta para três fatos nítidos: primeiro, no passado a beleza da ideia de livro devia refletir-se na beleza da construção que o abrigava; segundo, a biblioteca e seu conteúdo foram, durante longo tempo, artigo de luxo a ser tratado com pompa e circunstância; terceiro, durante muito tempo o livro e a biblioteca, chaves do universo, foram privilégio de poucos. O contraste entre essas bibliotecas do passado e aquelas dos tempos contemporâneos é marcante: a Biblioteca Nacional da China (2008), em Beijing, é imensa, feita para as massas – mas assemelha-se a um grande aeroporto ou a uma grande fábrica globalizada e, portanto, sem beleza (ou luz) própria.  O motivo para essa mudança reside menos em alguma ideologia antiaristocrática do que nos postulados da arquitetura moderna que, desde seus primeiros tempos, e também por ideologia, passou a desenhar edificações que tanto poderiam ser escolas ou aeroportos, hospitais ou quarteis, shopping centers ou estádios. Sendo um livro de arquitetura da biblioteca, este é também um livro-resumo das tendências estilísticas da arquitetura, e muito eloquente nisso (outra vez sem o dizer). Numa outra leitura, o que fica claro é como a biblioteca mudou de forma por ter o livro mudado  de função: o livro se banalizou também ele, essa é a mensagem. Dessacralizou-se e dessacralizou a biblioteca.

Este é um livro sobre a arquitetura de bibliotecas, mas é também, tangentemente, sobre o que existe dentro da biblioteca: o livro e o modo de usá-lo. Os autores mostram livros acorrentados a suas estantes, como na catedral de Wells (1680), Inglaterra: esses livros não exibem a lombada ao usuário porque precisam ser acorrentados pelo outro lado, o do corte das folhas,  o lado anônimo que fica inesperadamente à vista na estante: são livros prisioneiros e sem nome. É que todos os livros eram raros; as correntes só foram retiradas ao final do século XVII. A ideia da biblioteca como prisão aparece também no filme de Resnais quando o narrador recorda que é na Biblioteca Nacional de Paris que “as palavras são aprisionadas”. Paradoxo:  o lugar da liberdade do espirito é também o lugar da prisão da matéria, o lugar que pode levar à prisão como sabem os que viveram sob ditadura. Os livros ficavam confinados; hoje, não mais.

A arquitetura em cena neste livro é a dos interiores das bibliotecas, mais do que de suas fachadas e menos ainda de suas entranhas, nas quais Alain Resnais mergulha para mostrar o outro lado da vida dos livros, a vida no pó, nas caixas empilhadas pelos excessos megalomaníacos: toda a memória do mundo para um mundo que pode ter uma vida curta pela frente se não souber ler nos livros que acumulou. Em todo caso, esse viés dos autores permite uma comparação com outra arquitetura do espetáculo, a dos museus: enquanto dos museus se fotografa mais seu lado de fora, como se a construção se abrisse para o mundo, a biblioteca aqui aparece pelo lado de dentro, em metáfora da vida interior que os livros permitem. Os livros estão dentro, por dentro, vêm de dentro e vão para dentro.

O volume estende-se da antiguidade à era eletrônica, cujas consequências os autores não exploram a fundo já que seu tema é a arquitetura da biblioteca. O digital é, no limite, a anulação da biblioteca-arquitetura, o desaparecimento do salão filosófico aonde se poderia ir para ler e conversar. No digital nada mais há para ver, tudo se torna virtual, inclusive a arquitetura do sistema. Enquanto houver algo para ver, porém, este é um livro deslumbrante.

Mas, no final deixa um gosto amargo: do Brasil há apenas uma banal imagem externa da Biblioteca Nacional no Rio e a menção de uma linha, sem foto, ao Real Gabinete Português de Leitura, também no Rio, que os autores dizem ser espetacular sem talvez terem vindo vê-lo. Não precisavam: o brasileiro Caio Reisewitz fez magníficas fotos do lugar, poderia fornecê-las. Talvez essa ausência se deva menos aos autores do que ao país, que não dá à biblioteca e ao livro nem lugares suntuosos que mereçam ser vistos pelo mundo, nem o lugar dignamente funcional que o resto do mundo soube lhes conferir. Ou este livro não faz uma história mundial da biblioteca ou o Brasil está fora do mundo. Provavelmente, ambas coisas.

 


*Teixeira Coelho é escritor, professor emérito da Univesidade de São Paulo e curador. É autor de A construção de sentido na arquitetura (Editora Perspectiva) e Dicionário crítico de política cultural (Editora Iluminuras), entre outros. 

 

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