Sesc SP

postado em 25/01/2016

Frente de batalha

O sertanista Jair Candor. Foto: Araquém Alcântara
O sertanista Jair Candor. Foto: Araquém Alcântara

      


A partir de relatos em primeira pessoa, Memórias sertanistas, organizado por Felipe Milanez, mostra que a luta pela preservação dos povos indígenas continua violenta, a despeito da democracia

*Por Eduardo Neves

 

O Estado do Acre tem hoje um movimento indígena organizado com terras homologadas por todo o seu território. Na década de 1970, no entanto, o que se contava é que não havia mais indígenas no Acre. O que aconteceu desde então? Como foi que os povos indígenas do Acre passaram da invisibilidade ao protagonismo? Essa é apenas uma das muitas histórias que se aprendem durante a leitura de Memórias sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil, organizado por Felipe Milanez e publicado pelas Edições Sesc.

Memórias sertanistas é um livro denso, mas de leitura rápida graças ao primoroso trabalho de edição e, sobretudo, pela riqueza das histórias que traz. Se não fossem tão trágicas, poder-se-ia dizer que é quase um livro de aventuras, tamanhas foram as peripécias contadas por seus narradores: flechadas, ameaças de morte por índios e não índios, emboscadas ... está tudo ali, nesse faroeste contemporâneo que é história recente do Brasil.

O livro é organizado a partir de depoimentos. Participam dois pensadores indígenas: Afukaka Kuikuro e Paulo Supretaprã Xavante e dez sertanistas que trabalham ou trabalharam na Funai em diferentes partes da Amazônia: Afonso Alves da Cruz, Profírio Carvalho, Fiorello Parise, Odenir Pinto, Sydney Possuelo, Wellington Figueiredo, José Meirelles, Marcelo dos Santos, Altair Algayer e Jair Candor. Tais depoimentos são precedidos por um belíssimo prefácio da antropóloga Betty Mindlin e de dois longos textos de Felipe Milanez, que contextualizam e explicam os cem anos das ações indigenistas no Brasil.

A ideia genial de reunir esses relatos veio do próprio Felipe, sendo ele uma figura única, difícil de classificar. Com um pé na academia e outro na militância, Felipe - atualmente professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano - é formado em direito, tem mestrado em ciência política e doutorado em ecologia política, mas construiu sua trajetória profissional no jornalismo, que exerceu em diferentes veículos, inclusive na própria Funai, onde editou a revista Brasil Indígena. Essa formação híbrida, a trajetória na Funai e seu percurso de pesquisa e intervenção por toda a Amazônia, mas principalmente na região que vai do sul do Pará ao Acre – no violento “arco do desmatamento” – qualificam Felipe, através deste livro, a reconstruir a ponte entre o sertanismo e a academia, tão importante para os que se preocupam com o futuro da Amazônia e seus povos tradicionais, indígenas ou não.

Do mesmo modo que Felipe, os sertanistas que deram depoimentos ao livro têm também cada um sua própria trajetória e formação: Afonso Alves da Cruz nasceu em data incerta em um seringal no rio Xingu, Jair Candor vem do Paraná, mas foi também seringueiro em Rondônia, para onde foi sua família quando ainda era uma criança. Altair Algayer é catarinense e se mudou com a família ainda jovem também para Rondônia, onde trabalhou inicialmente na roça e como madeireiro antes de se iniciar no indigenismo. Sydney Possuelo lia as histórias dos irmãos Villas Boas quando era menino e foi através dele que começou a trabalhar com os índios. Wellington Gomes Figueiredo foi o braço direito de Possuelo no Departamento de Índios Isolados. José Meirelles largou o curso de engenharia para ingressar por concurso na Funai. Fiorello Parise, italiano de nascimento, abandonou o doutorado em antropologia em Paris para fazer o curso de indigenismo na Funai e trabalhar no Maranhão. Odenir Pinto é filho e neto de sertanistas e cresceu em uma aldeia Xavante. Marcelo dos Santos formou-se em biologia antes de ingressar na Funai. José Porfírio Carvalho começou a trabalhar com os Waimiri Atroari ainda na década de 1960.

O livro relata, em primeira pessoa, seus fracassos e conquistas em testemunhos arrepiantes e sinceros. O mais impressionante é que algumas das histórias relatadas – de violências inomináveis – ocorreram há pouco tempo, não mais que vinte anos, quando o Brasil já vivia em um regime democrático. É comum, por sinal, a triste constatação nos depoimentos de que a transição para a democracia não representou necessariamente uma melhoria nas condições de vida para os povos indígenas, tampouco nas condições de trabalho na Funai.

Memórias sertanistas não tem índice onomástico, mas se o tivesse é provável que “massacre” fosse a palavra mais comum na obra. O livro mostra a ambiguidade do estado brasileiro em seu trato com a questão indígena. Percebe-se que muitos dos avanços obtidos nas últimas décadas resultaram mais da luta dos próprios índios e da perseverança destes e outros sertanistas, muitas vezes trabalhando quase que por conta própria, que propriamente de políticas públicas sustentadas. Isso vale, por exemplo, para a quase subversiva retomada do que se tornou a Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu pelos Pataxó do sul da Bahia ou então para as histórias de estabelecimento de contatos com grupos “arredios” como os Arara da Transamazônica, Awá-Guajá no Maranhão, os “índios do botão” no vale do Javari e os diferentes grupos do sul de Rondônia, como os isolados do Omerê e um indivíduo que vive há anos sozinho, recusando qualquer forma de contato: o “índio do buraco”.

São comuns nos relatos referências a pressões de lideranças políticas, fazendeiros e madeireiros levando à remoção de funcionários para longe das áreas onde trabalhavam, mas há também histórias de sucesso como a da intermediação realizada entre Porfírio Carvalho e a Eletronorte, garantindo uma fonte de renda aos Waimiri Atroari e Parakanã como compensação pelo alagamento de partes de suas terras pelas usinas de Balbina e Tucuruí. É também inspirador o exemplo da aliança entre sem-terra e povos indígenas no sul de Rondônia, em uma época de extrema violência nas décadas de 1980 e 1990, relatada por Marcelo dos Santos em seu depoimento.

A obra conta histórias que poucos conhecem, mas acontecimentos semelhantes aos relatados no livro continuam a acontecer agora mesmo, por exemplo, no Mato do Grosso do Sul, nos rios Tapajós e Xingu ou na periferia de São Paulo. É um livro de memórias, mas infelizmente atual, porque revela a condição dramática pela qual o Brasil vem se formando como nação, através do sacrifício dos seus mais antigos habitantes.

 


*Eduardo Neves é arqueólogo, professor titular de arqueologia brasileira do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e especialista em pesquisa na região Amazônica.

 

Veja também:

:: Vídeo

:: Trechos do livro

 

 

 

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