Sesc SP

postado em 08/05/2013

A pedra e o homem: diálogos possíveis

gemas

      


Organizado por Denise Milan e Olgária Matos, Gemas da Terra: imaginação estética e hospitalidade reúne ensaios que debatem o que podemos aprender com o mundo mineral

 

O ovo de pedra azul – mineral que tem aproximadamente 750 milhões de anos e pode ser encontrado tanto no Brasil (no estado da Bahia) como na Zâmbia, no continente africano – é um dos mais antigos testemunhos da existência da Pangeia, era geológica em que os continentes formavam um único território. Tal coincidência exerce um fascínio sobre nosso imaginário cultural, estimulando-nos a pensar não somente no fato de que a humanidade inteira advém de um território único como também na ideia de que partilhamos identidades comuns. 

Em março de 2005, o Sesc São Paulo, em parceria com a Unesco, realizou em sua unidade da Vila Mariana o seminário Gemas da Terra: imaginação estética e hospitalidade, que, durante três dias, reuniu estudiosos de geologia, história, antropologia, psicanálise, filosofia, literatura e artes plásticas com o objetivo de discutir a interdisciplinaridade entre estes saberes e a possibilidade da convivência pacífica entre os povos. Com curadoria da artista plástica Denise Milan e da filósofa Olgária Matos, o evento produziu um rico painel de debates, agora transformado em livro.

Lançada pelas Edições Sesc São Paulo e organizada por ambas as curadoras do encontro, a coletânea Gemas da Terra: imaginação estética e hospitalidade apresenta dezenove textos que apontam a valorização cultural das pedras na história da humanidade e as figurações que pode assumir o mundo mineral para nós, da geofísica à antropologia. O livro está dividido em quatro partes – “As pedras: cosmos e arte”, “Gemações das origens”, “A pedra e suas metamorfoses” e “As gemas da terra e utopias” – que privilegiam a reflexão e o exercício da sensibilidade.

Responsáveis, respectivamente, pelos dois textos que servem de introdução à obra (“O ovo de pedra azul: em meio à diversidade, um embrião de unificação” e “Pedras e utopias: dos cosmopolitismo à hospitalidade”), Denise Milan e Olgária Matos conseguiram imprimir ao conjunto dos ensaios apresentados uma articulação viva e dinâmica, por meio da qual sobressaem a ousadia e a originalidade dos argumentos, alegorias, imagens e ideias partilhadas.

Denise Milan iniciou sua carreira nas artes plásticas em 1973, tendo a pedra como eixo na produção de suas esculturas. Além do Brasil, seus trabalhos já foram expostos em Londres, Nova Iorque, Washington, Chicago, Hannover, Osaka e Taiwan. O encontro de diferentes linguagens é a marca de sua obra, que descontextualiza as tradições e os mitos para reintegrá-los a seu sentido primordial. Olgária Matos é mestre (Sorbonne, 1974) e doutora em filosofia (USP, 1985), estando sua produção acadêmica voltada aos temas do tempo, razão, democracia e história. Autora, entre outros livros, de Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo e Adivinhas do tempo: êxtase e revolução, ela ministra aulas na USP, onde é professora titular, e na Unifesp.   

No ensaio “João Cabral: a escolha das pedras”, Alcides Villaça, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo, analisa a obra do poeta pernambucano, na qual a pedra não é só um símbolo central, é também um complexo paradigma pedagógico de seu modo de produzir poesia. Analisando detalhadamente o poema “A tartaruga de Marselha”, Villaça identifica na imagem das pedras, recorrentemente explorada por João Cabral de Melo Neto, uma transição do estado natural para o artefato verbal, que traduz a necessária dureza das opões humanas e a violência das falas acusatórias. “Em ‘A tartaruga de Marselha’, a pedra-morte e a pedra-vida não constituem uma antinomia, mas um confronto fecundo que ensina a passagem da resignação à rebeldia. Essa passagem prende-se, necessariamente, ao momento crucial de uma escolha: e não é este o maior desafio de quem esteja comprometido com o destino do ser?”, conclui o professor. 

Catarino Serbiróp Gavião, cacique de Rondônia (que organizou durante a realização do seminário no Sesc Vila Mariana uma cerimônia sagrada em homenagem ao começo do mundo) conta em “Mito de origem dos índios ikolen-gavião” que seus irmãos nasceram das rochas. Ao conceber os seres, o Criador manteve-os aprisionados dentro de uma grande pedra, até que fez um buraco para que cada uma de suas criaturas pudesse aos poucos ir saindo dali. Muitos conseguiram deixar a rocha, mas uma índia grávida que tentou sair entupiu o buraco da passagem. É por esse motivo que os índios gaviões criaram uma música que fala de reencontrar o resto do povo que permaneceu dentro do monólito: “Minha música fala sobre o redor daquela rocha. Estou procurando a porta da rocha, apontando de onde o povo saiu antigamente, por isso é que eu fico procurando, dançando ao redor daquela rocha, procurando a porta da rocha para achar aquele restante que ficou para trás”, conclui este belo mito cosmogônico dos índios-gaviões.       

Em “Gemação diaspórica e subjetividade sincrética”, o italiano Massimo Canevacci, professor de antropologia cultural na Universidade de Roma, trata do conceito de sincretismo aplicado ao mundo da cultura, da comunicação e da experiência. Para o ensaísta, as gemas são espelhos em forma de prismas que refletem uma multiplicidade de figuras, e essa polifonia prismática das pedras favorece uma gemação em diáspora (isto é, disseminada) do sujeito. “As gemas sincréticas e diaspóricas desatam o além dos dualismos e cruzam um sujeito que experimenta a multidão do eu”, defende o professor.

“A pedra e a liberdade”, de Marilena Chauí, professora titular de história da filosofia política na Universidade de São Paulo, trata da tradição da pedra na história da filosofia. “Desde Aristóteles e Agostinho, até Descartes, Hobbes e Spinoza, os filósofos se referem à pedra para marcar a diferença entre a inércia das coisas naturais e a liberdade humana”. Detendo-se em uma carta que Spinoza envia a um amigo, na qual questiona se uma pedra em queda livre poderia atribuir (se tivesse consciência) o esforço desta queda ao seu livre querer, a autora demonstra diligentemente a força do argumento spinoziano, concluindo: “A pedra acredita saber por que se move: ela se move porque quer; e os humanos acreditam saber por que querem: eles querem porque são capazes de decisões livres”.

Enquanto usufrui as páginas envolventes de Gemas da Terra: imaginação estética e hospitalidade – para as quais concorre o belo projeto gráfico que faz uso sistemático da reprodução de quadros, fotografias e ilustrações –, o leitor é convidado a pensar no posicionamento ético do homem, seja como hóspede de um planeta ancestralmente mineral, seja como companheiro de outros indivíduos da mesma espécie, sincronicamente humanos como ele.  
 

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