Sesc SP

postado em 08/03/2013

O teatro está morto, viva o teatro!

O Teatro da morte sobrecapa

      


Coletânea de textos de Tadeusz Kantor amplia a compreensão do fenômeno teatral

 

O teatro é uma arte efêmera que vive de uma contradição. As formas vibrantes e inquietas emanadas de uma encenação somente sobrevivem na memória daqueles que dela participam ou a ela assistem, uma vez que a realidade do teatro se esgota diariamente quando finda a representação de um espetáculo. Construir a história da arte teatral é, assim, um trabalho arqueológico cuja técnica é identificar um grupo de vestígios que ela vai deixando pelo caminho e investigar a natureza de seus significados: o texto, algumas peças do cenário e do figurino, os diários de encenação, os testemunhos dos criadores, as evocações do público...  Deste modo, é possível dialogar com a tradição: estudando e recriando as múltiplas formas de teatro do passado, que constituem algo como um acervo imaginário capaz de se precipitar em experiência imediata. Diariamente, em cada espaço teatral, os espectadores contemporâneos entram em contato com tragédias, dramas, comédias e toda sorte de experimentações estilísticas e formais que foram desenvolvidas ao longo dos séculos. Uma vez que o tempo consumiu o manual de uso que os acompanhava originalmente, é possível se reapropriar deles sem a preocupação de estar traindo-os ou insultando-os. Diretores, atores, autores, cenógrafos, figurinistas convertem as velhas formas em experiências novas, provando que nenhuma novidade, nenhuma revolução é tão autêntica e original que não estabeleça uma ponte com o passado.

Desde que entrou para o catálogo das artes de prestígio no Ocidente, há pelo menos 2.500 anos, a arte teatral vive em crise – o que levou a atriz Fernanda Montenegro a declarar, certa vez, que o teatro é como o casamento: de tempos em tempos anuncia-se que ele está moribundo para, pouco depois, ser comunicado seu pronto restabelecimento. Isso não significa que certas formas teatrais não percam sua prontidão – o que é absolutamente natural, dado o caráter histórico que preside todo e qualquer fenômeno artístico e cultural. Das encenações das Grandes dionisíacas gregas, a cargo dos arcontes (os altos oficiais de Estado que decidiam as questões artísticas e administrativas dos espetáculos) às mais provocadoras experiências pós-modernas ocorridas na semana passada, o teatro pulsa de energia criativa justamente porque é vulnerável aos males do tempo. Enquanto houver criadores dispostos a, nas mais variadas frentes que constituem seu campo de batalha, combater o teatro, expor suas contradições, mexer em suas feridas, a arte teatral preservará seu significado: o de ser uma forma perenemente inquieta procurando dar conta sempre das velhas questões. “A vida inteira as mesmas perguntas, as mesmas respostas”, diz o velho ator canastrão Hamm em Fim de partida, de Samuel Beckett. Um teatro que não esteja permanentemente em crise se cristaliza de maneira muito rápida. Então, enrijece, cai e morre.

Um dos mais importantes diretores de teatro no século XX é certamente o polonês Tadeusz Kantor (1915-1990), cujo ensaio O teatro da morte batiza a coletânea de textos publicada, em 2008, pela Editora Perspectiva e as Edições Sesc São Paulo. Fundador da companhia Cricot 2, que teve por proposta, durante os trinta e cinco anos de sua existência, a prática de um teatro autônomo e complexo, de revolução permanente, Kantor tornou-se uma referência para os principais encenadores do mundo.

A grande expressividade plástica de suas encenações – adquirida da pintura –, o modo sui generis de lidar com o trabalho corporal dos atores e a concepção experimental da relação ator/texto/público constituíram os elementos-chave de sua obra – visceralmente comprometida com a reflexão sobre a condição humana e os limites entre a vida e a morte. Tadeusz Kantor concebeu o teatro como uma arte instável, inconformada e em constante transformação. Em A morte da arte, ele escreve: “Sempre, em cada época, ou quase, houve a queixa e se disse que a cultura está em vias de acabar. A arte também. Mas tais previsões não se verificaram. Eram falsas? Ou eram sintomas de decadência? Ou talvez haja na arte algo que desde a origem a faça condenada, certa condição de tal modo frágil, tão distante da boa saúde que toca a moléstia incurável e a nostalgia desse estado ao qual se chega somente pela porta que conduz à morte”.

O teatro da morte reúne ensaios, manifestos, notas e comentários produzidos por Kantor a partir de seus processos de trabalho, happenings e espetáculos. Editado pelo pesquisador Denis Bablet, o livro se divide em dezesseis capítulos, que procuram dar conta da trajetória do trabalho do diretor. No conjunto de pequenos textos que compõem o primeiro capítulo do livro, O teatro independente (1942-1944), Kantor reflete sobre a natureza da forma teatral, observando, a partir do estudo das encenações de Balladyna e O retorno de Ulisses, que “em cada obra dramática palpitam formas teatrais, é preciso apenas senti-las e exprimi-las”. O sexto capítulo, O teatro zero, reúne o próprio "Manifesto do 'Teatro Zero'", publicado pelo diretor em 1963; um extrato da partitura de O louco e a freira (baseada na peça escrita em 1923 por S. I. Witkiewicz), espetáculo que a Cricot 2 estreou em junho de 1963 em Cracóvia; e algumas notas sobre os ensaios. A especulação em torno de certos conceitos-chave e o inventivo uso de imagens poéticas tornam esse capítulo, por exemplo, precioso para diretores, atores e pesquisadores, sobretudo porque nele se identifica uma expressiva parceria entre teoria e prática. O capítulo 14, que batiza a coletânea, apresenta o ensaio/manifesto "O teatro da morte", publicado em 1975, por meio do qual Kantor convida à tomada de consciência da noção de morte, recuperando o sentido que lhe deram o romantismo e o barroco. Completam este capítulo dois textos breves e uma entrevista – todos tendo por tema o espetáculo A classe morta, com o qual a companhia Cricot 2 ironizou a sociedade de consumo nos anos 1970.

A presente coletânea leva o leitor brasileiro a entrar em contato direto com o método de trabalho de um dos maiores artistas europeus do século XX, que fez do teatro um gesto permanente de combate, usando como armas o poder de deflagração de seus próprios espetáculos, a força corrosiva de suas declarações e de seus manifestos e a energia profanadora de suas posições e atitudes. Os adversários de Tadeusz Kantor e de todos os criadores que passaram pelo Cricot 2 foram sempre a arte acadêmica e a sociedade decadente. 

Peter Brook, outro grande defensor do poder de provocação do teatro, assim resume a relação entre a arte teatral e a sociedade: “Uma sociedade estável e harmoniosa precisaria apenas procurar caminhos para refletir e reafirmar essa harmonia em seus teatros. Esses teatros poderiam se estabelecer com elenco e plateia unidos num ‘sim’ mútuo. Mas um mundo caótico, e em transformação, precisa escolher entre um teatro que ofereça um 'sim' espúrio ou uma provocação tão forte que estilhace sua plateia em fragmentos de intensos ‘não’.”

Por isso mesmo, é preciso que, de tempos em tempos, a humanidade produza artistas do porte de Tadeusz Kantor, para quem todo engajamento – sem compromisso de nenhuma espécie – é sempre vital. (“O engajamento na arte significa a consciência dos fins e das funções da arte em seu devir”, afirma ele). Enquanto houver espectadores dispostos a ouvi-los, plena de vitalidade também será a relação palco-plateia. E o teatro, então, não perecerá.

 

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