Kazuo e Yoshito Ohno, livro do fotógrafo Emidio Luisi, registra a atuação dos mestres de uma das mais belas expressões da cultura japonesa: o butô
Por Ana Francisca Ponzio*
Quando Kazuo Ohno se apresentou no Brasil pela primeira vez – em abril de 1986, em uma temporada promovida pelo Sesc São Paulo – um misto de estranhamento e fascínio tomou conta de quem teve o privilégio de conhecer este artista que, na época, aos 80 anos, estava no auge de sua carreira e trazia para o público algo absolutamente novo e perturbador.
“Butô é como um peixe em água turva. Para enxergá-lo é preciso muito esforço”, disse Kazuo naquela temporada de estreia, em um encontro com a classe artística realizado no Teatro Anchieta. Junto dele permanecia o seu filho, Yoshito Ohno, uma presença constante e discreta até então.
Desencorajando quem pretendia captar ou entender o butô pelas vias imediatistas e convencionais, Kazuo convidou o público a enxergar sua arte com desprendimento e sem ideias preconcebidas. Como uma experiência de vida, sem tempo fixo para se esgotar. Com singeleza, transmitiu a síntese de vida e morte, masculino e feminino contida no butô e que, em cena, ele conseguia elevar a uma dimensão sublime e universal.
Naquele ano, Kazuo criou um vínculo com a plateia brasileira, tornando-se referência e inspiração para artistas, intelectuais, espectadores.
Emidio Luisi, que já fotografava dança e teatro desde os anos 1970, não deixou escapar aquele momento. Percebendo a grandeza de Kazuo e a importância daquele primeiro contato do artista japonês com o público brasileiro, Emidio deu início a mais uma coleção de imagens históricas de seu acervo, que prosseguiu nas temporadas seguintes de Kazuo e Yoshito Ohno em São Paulo.
Kazuo teve em Emidio um observador em sintonia com sua arte e seu jeito de ser. Conduzindo sua abordagem com singeleza, desprendimento e despretensão – como lhe é de costume – Emidio alcançou a essência artística e humana de Kazuo Ohno, em imagens que transcendem o registro formal.
Diante do espetáculo ou nos bastidores, Emidio parece se posicionar como se fizesse parte da natureza do ambiente. Movido por intuição e paixão, chega ao âmago que conjuga arte e humanismo, em imagens que compõem novas histórias e significados. O rosto de Kazuo retratado por Emidio é plena expressão da condição humana. Transmite uma trajetória de vida pessoal como também espelha um microcosmo comum a todos nós.
Neste livro agora lançado pelas Edições Sesc, Emidio acrescenta, com parcimônia, seus comentários sobre as circunstâncias que cercaram as fotos realizadas. São reminiscências pessoais, em que a apreensão subjetiva cria uma poética complementar à das imagens.
A singularidade deste livro também se dá por Emidio estar reconhecendo a real dimensão artística de Yoshito Ohno que, nos últimos anos, expõe cada vez mais a sua própria identidade, independente do papel que acabava assumindo junto ao pai.
Em 2013, em sua primeira apresentação em São Paulo após a morte de Kazuo, também no Sesc Consolação, Yoshito mostrou um trabalho tão intenso e instigante quanto o do próprio pai. Porém, com uma personalidade que denota o que ele também apreendeu de Tatsumi Hijikata, precursor do butô, como Kazuo. Em 1959, a performance que inaugurou o butô foi protagonizada por Hijikata e Yoshito Ohno.
Atualmente, as apresentações de Yoshito são aguardadas com expectativa e este novo e importante momento do artista já foi devidamente percebido por Emidio Luisi.
Kazuo e Yoshito Ohno são tão importantes no trabalho de Emidio quanto o Ballet Stagium, que ele também fotografou intensamente, desde que esta companhia de dança surgiu na cena paulistana, em 1971.
Embora sob a opressão da ditadura militar, o Ballet Stagium rompeu barreiras e lançou novos parâmetros ao levar para o palco uma linguagem contundente, sintonizada com as questões políticas, sociais e culturais do Brasil. Fazendo da dança uma expressão acessível a todas as plateias, o elenco dirigido por Márika Gidali e Décio Otero percorreu o país para dançar tanto em teatros quanto em aldeias indígenas e praças públicas.
Ao fotografar o Stagium sem se limitar à plasticidade do corpo em movimento – uma característica que poucos fotógrafos conseguem extrapolar, Emidio revelou sua sensibilidade pelas artes cênicas, particularmente a dança. Sob o olhar de Emidio, a dança não é mero registro estático, mas expressão viva e em transformação.
O livro sobre Kazuo e Yoshito Ohno conta ainda com textos de Christine Greiner que, pode-se afirmar, é hoje a maior teórica sobre butô no Brasil. Também estudiosa da cultura japonesa, ela proporciona ao leitor um amplo painel sobre a evolução da fotografia no Japão.
Além do valor documental, artístico e poético, trata-se de um livro que vale como experiência de vida – como bem absorveu Emidio Luisi junto de Kazuo Ohno.
*Ana Francisca Ponzio é jornalista cultural, crítica e curadora na área de dança. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.
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