Sesc SP

postado em 10/11/2014

A escuta de Francis Hime

capa francis hime

Você vai ler e ouvir bastante sobre o disco "Navega Ilumina" de Francis Hime. Provavelmente, melhor descrito e avaliado do que aqui, o que nos leva a escrever sobre a obra ouvindo-a de outro lugar. Neste processo de escuta, recorremos a quem se ocupou de desvendar os processos e caminhos entre a obra, o meio que a reproduz e o espectador. Rápido, as palavras de Theodor Adorno pulam da cabeça pro meio do texto, porém de forma menos prática e objetiva, próxima de onde o filósofo não ficaria feliz, nem consideraria esta, uma análise que se preze de um fonograma - de toda forma, nos valemos de algumas muletas emprestadas por ele para escrever a nossa experiência ao ouvir um álbum de inéditas de Francis Hime, antes de todo mundo.

Nesta fala, denota-se um fetiche: trata-se de um álbum (de inéditas) que celebra os 50 anos de atividades do compositor e intérprete. Existe, portanto, um valor e uma aura de expectativa que antecede à audição das canções, o que provocaria uma desatenção no ouvinte, uma ternura tão característica das coisas que nos são próximas. Talvez, para quem conhece e desfruta da música de Hime por esse meio século, seja difícil encarar sua obra enquanto objeto musical em sua essência, desprovido daquela desatenção das coisas próximas.

E este é o ponto principal do nosso processo de escuta deste disco: a música de Hime nos é próxima. São 24 álbuns - 25 agora - de canções produzidas com e para grandes nomes - Elis Regina, Jair Rodrigues e até Tony Bennett cantaram suas composições, enquanto Chico Buarque e Vinícius de Moraes foram parceiros. Encrustrado desse jeito na tradição da música brasileira, fica difícil dar o play na bolacha sem escutar ecos de outras épocas e sentir-se confortável em abandonar o que se faz para se dedicar somente à audição das músicas.

Partindo deste princípio, propomos uma quase-nova maneira de ouvir o disco de Hime, um tanto mais aconchegante e, talvez mais próxima do modo que você irá ouvir esta obra, do que a objetividade encontrada nas páginas de cultura das publicações diárias. Para isso, um relato sobre a escuta feita aqui no Selo Sesc: é uma segunda feira de sol e todas as janelas estão fechadas - a claridade é ruim para os companheiros que se sentam de costas para as janelas. No chão, carpete por todo o andar (uma desculpa acústica que vem a calhar: são muitas pessoas falando ao mesmo tempo, abafadas pelo material que reveste o piso). O ar condicionado mantém todo mundo fresco e os fones de ouvido fornecem a saída costumeira dessa realidade.

Usualmente, a música serve de invólucro pra executar as tarefas do dia sem as interrupções tão características dessa nossa época de atenção compartilhada. Porém, quando "Amorosa" começa, aquele sentimento de saudade arrebata e pouco importa se você é ou não do Rio de Janeiro, só fica à vontade e indefeso para "Ilusão", que sublima e "té parece que nem há mais solidão".

Nessa hora você se esforça para não recorrer às janelas e abas da vida, lá mesmo naquele mundo de "vão encantamento", como canta Hime na letra inédita de Vinícius de Moraes, "Maria da Luz", cuja harpa lembra um som de sonho, daqueles sons em que percepção foi construída e dada, e você a toma emprestada, sem escrúpulos - está "mais lúcido e mais certo", "gritando a peito aberto" no meio da tarde, dentro da sua cabeça, numa melodia triste, carregando uma "doce cruz". E está tudo bem.

Perdido nesse pensamento todo, nem repara o chimbal que marca a entrada de "Mistério", maquinando feito maria-fumaça, marcando o ritmo estrada afora, querendo ser eterno logo depois da descoberta da beleza disso tudo que te cerca - é surpreendente o final, assim como o violão da música título que convida o tamborim, o cavaco e as quintas aumentadas dos refrões, "como um tempo suspenso onde nunca haverá nunca mais".

Aí, entra o primeiro tema instrumental do disco, "Cecília - Fantasia para Harpa e Orquestra". Um andamento de xote interrompido pelos sopros teimosos que abrem caminho para a harpa te transportar para outro lugar que não o chão, o carpete e as janelas fechadas. Um violino no mesmo tema recorta a harpa. Quando se descolam, oferecem uma nova leitura do tema principal: a harpa, por vezes confundida com o triangulo que marca a percussão, aparece sozinha, acalmando a euforia sem perder a intensidade - se escuta a respiração da harpista! Os sopros voltam de forma doce, antecedendo o xote e o final arrebatador. Vale a pena conferir o making of com a participação e fala da harpista Cristina Braga, testemunhando seu prazer na execução da peça.

 


 

Em contraponto, "Canção Noturna" é mínima, mostrando um piano executado com a força narrativa de uma orquestra inteira. "Beatriz - Choro Seresta" continua com o piano, dessa vez com os graves em contraponto ao dedilhado da mão direita, montando uma complexidade fluída, daquelas de fim de dia, quando é possível enxergar o fundo do copo, o final da dose. "Sessão da Tarde" te resgata, no amor vespertino, cheio de luz, projetado de expectativas doces naquela pequena que se perdeu nas suas memórias. "Breu e Graal" e "Canção Apaixonada" entoam uma frustração que ecoa por todos os gestos de todas as coisas terrenas quando o amor acabou - "olho pro céu/chorei no chão" e uma guitarra gorda tenta suavizar esse amargo.

Ao final, "Isabel - Fantasia para Violino e Orquestra". Outro tema instrumental, coroando a composição de Hime. O tom alto do violino mostra um hiato de respiração, um fiapo de tempo suspenso no espaço, até desabar em notas compridas, pontilhadas pela harpa em descansos ensolarados para a solidão que emana das cordas - o sopro antecede esses descansos. As cordas, com força, empurram o ar pra fora do peito enquanto o violino sustenta a tensão até encontrar e abandonar um par noutro tom. 

Você pode conferir trechos do disco abaixo, bem como ter a certeza que não se trata de uma escuta reduzida ou do espectador desatento nesta hora. Trata-se de conviver com a música de alguém que viveu e vive por ela, há 50 anos, pelo menos. Um belo regalo, de qualquer forma.

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