Sesc SP

postado em 20/02/2015

A aventura humana num piscar de olhos

Capa

Por Valmir Santos

Na Marcha Republicana que levou cerca de quatro milhões às ruas de Paris em 11 de janeiro, um domingo, a companhia Théâtre du Soleil participou com sua conhecida intervenção artística ancorada na figura de uma marionete enorme. A boneca costuma representar a Justiça em evoluções manipuladas por atuadores através de hastes que a mantêm nas alturas, como se viu em 2011 na Praça Syntagma, em Atenas, em frente ao Parlamento grego, quando o povo reagiu ao pacote de austeridades do governo.

Dessa vez, ganhou contornos ainda mais dramáticos a presença da mulher icônica vestida de longo branco e véu esvoaçante, com o rosto sangrando e em brava luta contra um bando de corvos que a atacam, sustentados por varetas.

A Justiça transfigurou-se em República naquela que foi considerada a maior mobilização da história do país. Faixa de luto no ombro esquerdo, espada na mão direita, boina vermelha na cabeça e “escoltada” por bandeiras francesas, eis a marionete sintetizando a nação ferida, perseverando a democracia incondicional horas após a série de atentados terroristas que deixou 17 mortos, inclusive parte da equipe do seminário Charlie Hebdo.

Intervir na esfera pública é um traço coerente no pensamento e na prática da companhia da diretora Ariane Mnouchkine, única remanescente do núcleo então estudantil que iniciou suas atividades em 1964. A saber, um projeto artístico de afirmações humanista, política e comunitária; de sublimação cultural do pertencimento; e da consciência universal do outro, percepções cultivadas há meio século.
 

(Ensaio da peça no Sesc Belenzinho. Foto: Alexandre Nunis)

Não se assiste a uma criação do Théâtre du Soleil sem ser mobilizado pela experiência da imersão. No teatro, isso significa distinção nos modos de acolher o público e de construir o espaço cênico para comungar algumas horas de arte, com direito a intervalo e refeição preparada e servida pelos próprios atores que há pouco estavam em cena. O aspecto convivencial é determinante e espelha o cotidiano de sua sede na Cartoucherie, uma antiga fábrica de munições do Exército cujos galpões servem a coletivos cênicos no Bosque de Vincennes, nos arredores da capital francesa.

A ambiência intimista e fraterna, sem que haja interação direta dos intérpretes com o espectador, foi explicitada nos dois espetáculos com os quais o Brasil teve oportunidade de travar contato com a companhia, Os Efêmeros (Les Ephémères), em 2007, e Os Náufragos da Louca Esperança (Naufragés du Fol Espoir), em 2011, ambos transformados em filmes com autonomia de voo em relação às dramaturgias de origem.

No campo do cinema, tem-se revelado bastante profícua a ponte de transcriação do tablado para a tela grande, compreendendo pelo menos dez filmes rodados com média de quatro anos entre um e outro, quase todos sob direção de Mnouchkine.

Inicialmente, a diretora resistia ao registro audiovisual, conformava-se com o caráter efêmero do teatro. Até o dia em que assistiu a um trecho de dois minutos restaurados da filmagem de O Inspetor Geral, drama de Nikolai Gógol (1809-1852), clássico da literatura russa encenado em 1926 por Vsevolod Meyerhold (1874-1940), um dos renovadores dos palcos na Moscou da virada do século XIX para o XX.
 

(A diretora Ariane Mnouchkine em entrevista presente nos extras do DVD. Foto: Alexandre Nunis)

Trata-se da cena em que o farsante Khlestakov flerta com a mulher do governador. Por duas vezes um ator pega o dedo de uma atriz com uma colher e o leva aos lábios para beijá-lo. “Quando vi esse trecho, pensei comigo que, afinal, era preciso deixar registros para que se possa ver a linhagem do teatro”, afirma no livro Ariane Mnouchkine (Riocorrente, 2011), em relato à pesquisadora Béatrice Picon-Vallin. “Esses dois minutos de Meyerhold tinham, nem sei, como que me mandado um beijo, ou melhor, ele voltava à vida por alguns segundos...”

Não por acaso, o nome da companhia incide sobre a arte do cinema. “É um nome que veio por tratar de luz, do calor, da fertilidade da vida. Naquele momento, não pensávamos exatamente no cinema. Mas você tem razão, a luz é seminal para o cinema”, concorda em entrevista a este autor realizada em 2013.

Os Náufragos da Louca Esperança condensa as habilidades que a diretora e sua companhia cooperativada por cerca de 70 pessoas construíram no set de filmagem. Invariavelmente, o próprio galpão-sede da Cartoucherie é convertido em estúdio, numa possível alusão ao imaginário da Cinecittà de Federico Fellini (1920-1993).

Com pouco mais de três horas de duração, o filme referente à obra anterior da companhia – atualmente em cartaz em Paris com Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616) – ganha edição em estojo de DVD com três discos que somam outras quatro horas e meia de relatos extras. Pleno em relatos generosos do processo criativo, esse material suplementar conclama o interlocutor às singularidades da trupe elencadas até aqui.

Durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibiu Os Náufragos da Louca Esperança, Ariane Mnouchkine observou as camadas de metalinguagem: “De fato, o espetáculo trata de pessoas que fazem cinema. O filme, agora, fala de gente que faz teatro e que está fazendo cinema em cena. Se essa experiência foi bem-sucedida na tela, você vai poder me dizer depois. Penso que é um filme de verdade. Assim espero”.

Engenhoso, o roteiro intercala tempos fluídos: o presente do leitor mirim, o passado ficcional dos utopistas encantados pelo cinema recém-inventado e um segundo passado ainda mais distante na projeção também fictícia do filme, tudo isso sem perder o caráter artesanal da teatralidade, a gênese dessa aventura cinematográfica de tons épicos.
 


 
À dramaturgia do espetáculo criada coletivamente, a escritora Hélène Cixous, colaboradora contumaz da companhia, acrescenta o plano narrativo de abertura com uma criança que está no século XXI e lê o romance de Júlio Verne (1828-1905), Os Náufragos do Jonathan (Les Naufragés du Jonathan), escrito em 1897 e descoberto postumamente.

A ação coronária do filme se passa no sótão da taberna Louca Esperança, em Paris. Estamos em meados de 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Seu dono, Felix Courage, oferece o piso superior para o cineasta Jean LaPalette improvisar um estúdio. Idealista que rompe com a empresa cinematográfica Phaté em nome da perspectiva artística de seus filmes, ele recruta voluntários entre os frequentadores assíduos da casa e adoradores da sétima arte que justamente florescia no início do século XX.
 

 

Acompanhamos, então, como os ideais movem montanhas e são capazes de afetar libertária, igualitária e fraternalmente. Jean e sua irmã Gabrielle, também cineasta, contagiam um grupo de pessoas a rodar um filme mudo, como convém à época, tomando como inspiração a obra de Verne. O enredo retrata a saga de emigrantes que deixam o País de Gales rumo à Austrália, mas encalham na Terra do Fogo, o arquipélago localizado na extremidade sul da América do Sul. Lá, tentam forjar uma comunidade socialista em meio às disputas territoriais de governos chileno, argentino e inglês. Mote para cotejar trechos de documentários relativos a outros conflitos bélicos da Era dos Extremos, o século XX, como interpretou o historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012).

Mas sinopse alguma do mundo dá conta do laboratório social que o Théâtre du Soleil elabora conjugando as artes coirmãs do teatro e do cinema. Em seu libelo pró-sociedade do futuro, o espetáculo abarca questões nevrálgicas para a humanidade, como os processos de colonização, a luta de classes e outros paradoxos do estado, do capital e da igreja.

Em paralelo à ponderada contundência desses contextos geopolíticos, a fatura poética de Os Náufragos da Louca Esperança é incomensurável. Uma rodinha no tripé da câmara e, eureca!, ela pode deslizar: o admirável mundo novo do travelling. A câmera à manivela, o advento da grua e a mutação cenográfica a cada piscar de olhos são outros frames dessa obra que convida a “olhar para o que se vê” num oceano de textos e imagens geradores de poderosas visões.

   

        

       Capa do DVD "Os Náufragos do Louca Esperança"

A rigorosidade técnica e o despojamento sofisticado nas sugestões de nevascas e mares revoltos – uma espécie de elogio ao artífice – correspondem às noções de escala, volume e perspectiva que o Théâtre du Soleil imprime em suas produções cênicas sem jamais perder de vista a riqueza dos detalhes. A atuação esmerada é outro trunfo nas mãos de atores bastante à vontade diante das câmeras, conferindo materialidades teatral e cinematográfica como raramente se consegue, vide Maurice Durozier (Jean LaPalette), Juliana Carneiro da Cunha (Gabrielle LaPalette) e Eve Doe-Bruce (Felix Courage). Longe de destacar protagonistas numa empreitada tão orgânica, mas é impossível deixar de citar a contracena de Jean-Jacques Lemêtre, responsável por musicar a obra e investido exatamente do papel de músico com sua quimera de instrumentos. A paisagem sonora é vital para captar tempos tenebrosos ou solares.

Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena (teatrojornal.com.br)

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