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postado em 25/07/2016

Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz - A Saga da Travessia

capa rumpilezz
Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz nos brindam com A Saga da Travessia, disco inspirado e feito para relembrar e homenagear o sangue e o suor da diáspora negra. Você pode ouvir o disco na íntegra enquanto lê a resenha do projeto - também dá pra curtir o making of, lá embaixo - viaje!

 

 

Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

- As vozes da África, Castro Alves

 

Quando uma equipe de dois viaja da Quarta Parada, zona leste de São Paulo, para Salvador, cobrir a gravação de um grande corpo musical - você pode chamar de big band se quiser - qualquer relato sobre a obra, seja sua gravação ou sua escuta, será impregnado das impressões que esse deslocamento causou: A Saga da Travessia, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz nos transportou.

Na capital baiana, o caminho do aeroporto até o Campo Grande, onde fica o Teatro Castro Alves, utilizado nas gravações do disco, apresenta um apanhado de clichês citadinos entre obras de mobilidade urbana, resquícios de Copa do Mundo e da vida agitada de qualquer grande cidade do país: não é difícil pensar em Caetano Veloso, "aqui tudo parece / que era ainda construção / e já é ruína". E não é difícil pensar em "Fora de Ordem" neste Brasil, neste 2016. Salvador, porém, é mais profunda.

Com 50,8% da sua população de 3 milhões de habitantes apresentando ancestralidade africana, Salvador é considerada a cidade mais negra fora do continente africano. Esta história não pode ser contada sem mencionar o sangue africano arrancado de sua terra e sem tocar no racismo que se seguiu ao fato do Brasil ser um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão.

 

 

Ainda que a maioria da população soteropolitana possua ascendência africana, é recente o olhar despido da estupidez contra o negro. A reafricanização da Bahia, como cunhou Armando Almeidaem artigo que amarra a contracultura no mundo e onde o Brasil começou, só vai acontecer na década de 70. A internacionalização do capital e a industrialização da Bahia, contribuem para a emancipação de parcela da juventude negromestiça de Salvador (vide Camaçari, Petrobrás). O ponto de mudança, porém, se dá noutro terreno: em 1974, é criado o bloco afro Ilê Aiyê. Eminentemente negro - o Ilê não aceita brancos em seus quadros - o bloco opera uma mudança da postura fundada em modelos eurocêntricos para uma estética que valoriza as origens africanas e diaspóricas. Alteram-se hábitos e valores, alteram-se as práticas culturais e, quando isso ocorre, está posta uma nova forma de estar no mundo, de existir enquanto ser político: negro é lindo.

 
Esta forma de fazer política não opera na via tradicional, opera pela via da cultura. Aliás, a via tradicional e sua exclusividade sobre os corpos, desejos e sonhos daqueles que foram sistematicamente aviltados da condição de protagonistas de suas vidas, se esgota e assiste a cultura hegemônica ser posta contra a parede: novas formas de se fazer e aprender estão em jogo, e é bem aí que colocamos Letieres Leite.
 

Partindo do universo percussivo baiano, termo que circunda a música de matriz africana na Bahia e dá nome ao método desenvolvido por Letieres para transmitir os desenhos rítmicos e claves da música africana para instrumentos como sax, flauta, baixo e bateria, relacionando a tradição oral e a tradição da escrita musical europeia - uma outra forma de aprender/ensinar música, portanto -, Leite se utiliza de um verdadeiro exército de músicos para por suas ideias, há muito elaboradas, em prática. "O conceito estético da Rumpilezz surgiu bem antes deste trabalho ser lançado, ainda na década de 1980 quando comecei a compor com estes elementos. Todo o repertório é autoral, composto por mim, exclusivamente para este formato tradicional do jazz".

 

 

Ao ouvir o trabalho da Orkestra Rumpilezz entendendo que a estética do projeto incorpora o conhecimento ancestral ao formato de big band jazzística - "Rumpilezz" é a soma dos tambores do candomblé RumRumpi e ao jazz -, sem cordas, com a percussão na "sala de estar" e os sopros ao fundo, percebemos não só um novo enunciado, mas uma nova maneira de enunciar, fruto de tudo colocado neste texto até agora: a reafirmação de uma maneira outra de ver, se portar e de falar sobre o mundo. Aproximar Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, educador e inventor da capoeira regional (essa que conhecemos, com música e ginga) de Ogum, orixá guerreiro, na música que encerra o disco, nos fornece pistas sobre o rico manancial de onde bebe a criatividade de Letieres e toda a Rumpilezz - e como transformam tudo isso em música!
 
Ouça o berimbau criando texturas, a tuba fazendo as vezes de baixo, gerando o mesmo pulso, mas dando outra cara às sessões mais próximas do jazz tradicional. A atabaqueria! Uma "bateria" cujos tambores foram substituídos pelos atabaques do candomblé. Separe as texturas dessa big band, num exercício, e perceba como tudo faz sentido: os metais dando as cores dramáticas da travessia, os pratos fazendo as vagas do mar, os solos descolando uma textura-personagem, uma visão solitária que conversa com todo o contexto e nos coloca em contato com o desespero, a tristeza e a possibilidade de uma resignação dos vencidos que não se confirma nunca: transforma-se em catarse no som da Orkestra - as amostras ao fim do post confirmam tudo isso.

Tendo todo este pano de fundo, observamos melhor a fala de Letieres quando diz que a música na Bahia é um tronco, representado pelo candomblé, e os galhos são os ajuntamentos urbanos como o Ilê Aiyê, a Timbalada, o Olodum, os afoxés e, adentrando os palcos, a própria Rumpilezz. Não é possível ouvir o que está n'A Saga da Travessia e ficar imune aos signos e símbolos do som, aos significados que a amálgama de Letieres nos dá: não é preciso ir à Bahia para sentir a potência deste estudo, desta prática. É um disco que transporta o ouvinte para outros planos de percepção acerca do seu próprio cotidiano, daquilo que ali escuta e desfruta: o disco conta uma outra história da música brasileira.

 


De volta a São Paulo, a caminhada até a Quarta Parada foi ansiosa por querer ouvir o disco pronto. Depois da bolacha em mãos, a felicidade de contar que Letieres Leite e a Orkestra Rumpilezz levaram o evento que é a Saga da Travessia ao vivo para cidades como Jundiaí, Piracicaba, Bauru, finalmente aportando em São Paulo para a apoteose no Sesc Pompeia. Segue travessia, desbrava!

 

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