Novos Mares - Fortuna
A música que atravessa continentes e eras ganha corpo na voz de Fortuna em Novos Mares, lançamento do Selo Sesc! O disco marca retorno da cantora e compositora à sua pesquisa do repertório antigo, buscando na sua essência a universalidade da linguagem.
As mais remotas lembranças são histórias. Narrativas que atravessaram gerações e que devem seguir seu rumo, dando a volta no planeta. Uma das mais antigas é o pentateuco. Os cinco textos do velho testamento dão conta da criação da humanidade e, por mais que ali não haja justificativas plausíveis para a forma como levamos nossa vida passadas tantas eras, suas histórias dão conta de algo que é intrínseco, que acabou sendo escrito na nossa carne, no nosso corpo, o documento mais antigo do mundo.
A história de Caim e Abel oferece uma parábola interessante sobre a constituição dos povos, das cidades e das artes. Caim, primeiro filho de Adão e Eva, é um pecuarista. Tira sua subsistência da terra, portanto necessita estar fincado a ela. É o primeiro sedentário, o fundador da primeira cidade. Abel, seu irmão mais novo, é um pastor. Nômade por definição, busca novos pastos com seu gado, solto no mundo, não enxerga o tempo passar diante dos seus olhos uma vez que sua referência de espaço muda constantemente.
René Guénon, em seu Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos ilustra melhor as relações de um com o espaço e de outro com o tempo. E suas consequências:
"A atividade dos nômades exerce-se especialmente no reino animal, móvel como eles; a dos sedentários, pelo contrário, tem como objeto direto os dois reinos fixos, o vegetal e o mineral. Por outro lado, pela força das coisas, os sedentários chegam a constituir símbolos visuais, imagens feitas de diversas substâncias, mas que, do ponto de vista do significado essencial, se reduzem sempre mais ou menos diretamente ao esquematismo geométrico, origem e base de todas as formações espaciais. Os nômades, pelo contrário, para quem as imagens estão proibidas como tudo o que tenda a fixá-los num determinado lugar, têm símbolos sonoros, os únicos compatíveis com o seu estado de contínua migração"
Depreende-se daí que, dos sedentários advém a arte a partir do suporte: a pintura, a escultura, a arquitetura, as coisas que dependem do espaço, da nossa visão para se realizarem. Dos nômades, a arte que prescinde deste suporte, aquela que se desenvolve no tempo e se dissipa no ar, a arte do instante: a música.
Antes da escrita, das teorizações de Pitágoras, das escolas antigas, da subjetividade dos compositores, a música, enquanto símbolo sonoro, serviu para passar tradições, conhecimento e dar forma aos ritos e à cultura dos povos. Pense nos cantos de trabalho e na sua interpretação coletiva como uma pista do poder da linguagem que atravessa continentes e mares agregando significados à medida que o tempo segue sua marcha apagando aquilo que é próprio do espaço, deixando às lembranças orais a materialidade de histórias passadas.
Branca Dias talvez tivesse sua história encoberta pelos resíduos do tempo: a saga da sefardita que, perseguida pela Inquisição, fugiu de Lisboa com sete filhos e veio aportar em Olinda, tornando-se a primeira educadora laica de meninas e uma das primeiras senhoras de engenho no Brasil colonial, data dos primeiros anos do século XVI. Para contá-la apropriadamente, a música pode trazer elementos que escapam a outras linguagens.
A percussão inicia desvelando um lugar melancólico, saudoso, onde o piano e o violão imprimem texturas que apaziguam, mas a progressão dos acordes iniciais esconde uma angústia que não pode ser resolvida, um sentimento impotente. O baixo que começa na segunda estrofe marca a decisão, o ímpeto diante da situação. Complementa-se o acordeom, fazendo uma cama para o solo de violão que encerra, na sua melodia, a localização andaluz, a influência da cultura árabe e judia, distante léguas da península ibérica, remontando aí a primeira viagem. "Não te apaga Blanca Blanca", anuncia a transmutação do piano, a entrada da caixa, do coro em português, ascentando Branca Dias mais próxima dos nossos ouvidos, noutra fauna, noutro país. Aos poucos e ao fim, os instrumentos vão deixando espaço para a volta do canto primeiro, como se a essência permanecesse pelas eras, pelos deslocamentos todos, através da música.
Fortuna acerta em cheio ao nomear seu mais recente trabalho de Novos Mares. Retomando contato com uma vertente da sua carreira responsável pela pesquisa e difusão do repertório ladino, a intérprete dá voz à compositora, buscando dentro de sua essência os elementos que projetam a música ancestral neste nosso novo mundo. É interessante ouvir as construções melódicas de cada faixa e constatar quanto da música que nos acostumamos a ouvir - seja um solo de rock, ou uma síncopa de percussão - se conecta com uma lembrança de eras passadas para nos apresentar novas leituras de "histórias sonoras". No encarte do disco é possível ver de onde partiu cada canção.
Todos os timbres escolhidos (são utilizados instrumentos que nos são distantes como clarinete turco, oud, baglama, derbak, riq, tar, kanoun, entre outros) para dar corpo aos arranjos anunciam, de um vez, um outro tempo, um outro espaço no qual não era possível aprisionar o som e era preciso que as histórias cantadas tratassem de temas universais o bastante para se propagar além do instante presente.
Em Novos Mares os temas permeiam o amor, a saudade, o sagrado, e remontam situações tão antigas quanto a capacidade de construir narrativas. Utilizando as palavras do rabino Nilton Bonder, "Fortuna usa suas raízes como um convite ao outro, num sincretismo entre passado e presente e entre a cultura brasileira e judaica. E toda a magia deste trabalho está no fato de que o particular, em seu lugar mais genuíno e seminal, é profundamente universal".
São histórias, 12 canções representativas do nomadismo de um povo e de como o som é instrumento de resistência através das eras, acertando as contas com um mundo que soterra a tradição como algo estanque, pertencente apenas ao passado. A música de Fortuna leva a mensagem adiante, movimentando a roda da história: há muito mais dessas melodias e temas na nossa escuta do que poderíamos supor. Sigamos então, o recado da música, sem amarras, sem fincar o pé no terreno perecível do tempo - ouçamos aquilo que se levanta do tempo.