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postado em 28/09/2016

Nepomuceno: compositor... nacionalista?

capa quarteto

Reproduzimos o texto de apresentação do disco Alberto Nepomuceno, do Quarteto Carlos Gomes, assinado por Flo Menezes. Você também pode curtir o making of que tem entrevista com Cláudio Cruz, mentor do projeto e intérprete do quarteto no vídeo abaixo. Os shows de lançamento aconteceram 14/10 no Sesc Bom Retiro, 15/10 no Sesc Rio Preto, 21/10 em Piracicaba e 22/10 no Sesc Jundiaí.

 

 

 

Nepomuceno foi um internacionalista! Ao contrário do que a parca musicologia brasileira, ainda de resultados inconsistentes e fortemente impregnada pelo fardo nacionalista, pretenda nos fazer crer, afirmando-o como o primeiro dos compositores nacionalistas no Brasil, sua verve internacional contraria a visão que procura situar sua produção no estreito âmago das fronteiras nacionais. Assim fazendo-o, a musicologia reduz as amplas fronteiras que cobrem nosso vasto território a um domínio pequenininho, provinciano e nada condizente com a envergadura da obra de Nepomuceno.

Mais que internacionalista, Nepomuceno foi precoce, e isto em uma época cujas dificuldades para um brasileiro em se situar no mundo eram infinitamente maiores que as de hoje, época atravessada, para o bem e para o mal, pela internet e pela rapidez (e por vezes falácia) da informação virtual. Aos apenas 24 anos, Nepomuceno, nascido em Fortaleza em 1864, deixava o Brasil rumo à Europa para aperfeiçoar-se. O primeiro destes três geniais quartetos data de 1889 e foi escrito em Roma; os dois últimos, de 1891, foram concebidos em Berlim. Difícil dizer qual deles é o mais bonito, qual o mais engenhoso, e mais difícil ainda acreditar que foram escritos, o primeiro, com 25, e os segundo e terceiro, com apenas 27 anos!
 

Os três estão up to date em relação ao que de mais moderno e de melhor se fazia em solo europeu. Por mais que certas passagens possam aproximá-los de uma escritura ainda clássica, há traços desse “classicismo” pseudo-retardatário também nos quartetos dos europeus, em Brahms, por exemplo, ao lado da mestria, originalidade e mesmo modernidade que caracterizam a obra desse gigante alemão que muitos teriam classificado, também erroneamente, de “conservador” (até que Schoenberg tenha vindo defendê-lo, enaltecendo o valor inestimável e a atualidade das obras de Brahms). No mais, porém, os quartetos de Nepomuceno não apenas são modernos, como também revelam um enorme talento, pari passu com o que de melhor havia em solo europeu. Em certas passagens, poderíamos dizer que se tratasse de algum quarteto de Debussy ou de Ravel. Bem tinha razão Mário de Andrade ao cunhá-lo de gênio.

Uma coisa é certa: se Nepomuceno “imitou” algum europeu (e imitar é tão lgítimo em arte quanto salutar, dos conselhos de Ezra Pound em poesia ao secular ensinamento dedutivo de Seneca de que a arte imita a própria natureza – “omnis ars naturae imitatio est” –, provérbio, aliás, parafraseado (sem dar o nome aos bois) logo ao início da Harmonielehre de Schoenberg – “Kunst ist Naturnachahmung”), ele não o fez com o atraso de cerca de um século, tal como o fizeram os nacionalistas tardios da música brasileira do século XX, que além de não terem feito uma música brasileira, mas antes uma europeia do tipo clássica, tiveram como modelo a música europeia justamente do século XIX! Se tivessem imitado seus contemporâneos europeus, certamente boa parte dos resultados de suas obras teria sido melhor...

Nesse sentido, Nepomuceno é um “vanguardista”, portanto tudo, menos um nacionalista! Pregar a composição de canções usando-se o idioma nacional, algo que lhe é atribuído, não é sinônimo de nacionalismo, mas antes de inteligência tout court, além de bom-senso: a língua portuguesa é uma das mais lindas e elaboradas do planeta e merecia mesmo um lugar de honra em meio à produção musical (brasileira), como de resto ainda merece, pois que se trata de um idioma ainda mal-conhecido, muito mais em consequência das condições de eterno país “emergente” de um Brasil em meio ao cenário decrépito da hegemonia do capitalismo de início de novo milênio do que de qualquer outra coisa. Mas, entre nós, temos Machado de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Augusto de Campos... Azar o deles! E mais azar ainda o de mal conhecerem esses três quartetos, cujo projeto de gravação e edição, à frente do Studio PANaroma da Unesp, abracei com idealismo e entusiasmo quando me fora proposto por meu amigo Cláudio Cruz, exímio violinista, e por seu estupendo Quarteto Carlos Gomes.
 

 

 

E se já o mencionei por duas vezes, não custa mais uma: é do patrono da vanguarda radical do início do século passado, Arnold Schoenberg, que Nepomuceno, na última década de vida (viria a falecer, ainda com muito a nos dar, em 1920), procurará traduzir para o português a obra teórica principal, o já mencionado Tratado de Harmonia, projeto este, contudo, que não será concretizado e que precisará aguardar para ser publicado em nosso país por décadas, até que eu o propusesse, com sucesso, junto à Editora de minha Universidade (Unesp). Acabou saindo em outra (competente) tradução e com minha Apresentação, mas os esforços pioneiros, lá de trás – da época mesma em que vivia Schoenberg –, vieram de Nepomuceno. Seria tal projeto oriundo de mãos... nacionalistas? Ora, bem sabemos o quão o Expressionismo vienense encabeçado por Schoenberg viria a ser vilipendiado pelo nacionalismo brasileiro.

 

Não há lugar aqui para que eu discorra sobre a mestria desses quartetos. Seria necessário destrincharmos algumas de suas passagens, pontuando como Nepomuceno sabia, em tal trecho, paralisar e alongar com mestria uma única nota de um instrumento enquanto os demais davam continuidade ao contraponto intrincado, ou como, em outro, contraria a previsibilidade da escuta e nos faz requebrar pelas estruturas fracionadas dos compassos, ou ainda como as modulações e mesmo as tonalidades dos movimentos não obedecem às leis de um tonalismo conservador... E a profundidade dos movimentos lentos? Ouçam o segundo movimento do primeiro quarteto – que escrevera com... 25 anos! –, de preferência de olhos fechados, e vejam se não os leva à comoção mais sublime, de tanta beleza. É fácil falar da beleza sem provarmos tecnicamente o porquê do belo. Mas para isso seria preciso muito mais espaço, além de um desejoso estudo musicológico aprofundado, analítico e técnico, como os de que sinto falta ao falar da inconsistência da musicologia brasileira. De minha parte, dou aqui apenas um breve depoimento, pessoal e até mesmo emocionado, após ter, creio, contribuído com uma edição que buscou o melhor possível dos sons de um quarteto e as incisões cirúrgicas e plásticas as mais perfeccionistas na master, em respeito à obra deste gigante e a estes extraordinários músicos que compõem este Quarteto Carlos Gomes.

Eis aqui, pois, um pouco deste Nepomuceno. Não do “nosso” Nepomuceno, brasileiro, mas antes do Nepomuceno do mundo, e que se o mundo (ainda) desconhece, ao menos com este CD será aqui por nós, brasileiros, um pouco mais curtido. Azar o deles!

Flo Menezes

 

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