Afetividades em Rede: Identidades Femininas

04/04/2023

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Durante o mês de março de 2023 uma série de atividades da programação do Sesc Itaquera colocou a ideia de “identidade feminina” em movimento, trazendo olhares e propostas diversas para as muitas identidades femininas possíveis no mundo contemporâneo. As inúmeras discussões que essa temática pode levantar foram colocadas em perspectiva por meio de oficinas, bate papos, espetáculos, intervenções, performances e uma feira de produtoras independentes, sempre tendo o afeto como princípio norteador dessas iniciativas.

O afeto se conecta com lutas por direitos de diferentes grupos sociais como forma de resistência e anuncia possibilidades de ruptura do ciclo de perpetuação de violências. É na conexão com o outro, via afetos, que identificamos tanto a dor que nos consome quanto possibilidade de ação perante a vida.

Com o nome de Afetividades em Rede, essa foi a primeira edição do projeto. Ele busca dar foco à iniciativas que estejam articuladas aos valores de justiça socioambiental, democracia, de equidade de raça e gênero, de uma sociedade inclusiva e anticapacitista, pelo direito à vida e à qualidade dos afetos.

Em busca de um olhar que situe o afeto e seu potencial transformador nas relações, o Sesc Itaquera convidou a poeta e cientista social paulistana Midria (@iamidria) para responder a questão: Qual o lugar dos afetos nas narrativas que temos construído sobre o mundo? Midria é também educadora, pesquisadora, slammer e performer. É autora do livro  “A menina que nasceu sem cor”. Publicou “Cartas de Amor para Mulheres Negras”, lançado durante a FLIP em 2022.

“Afetos como campos de revolução” por Midria

Vivemos em um universo social permeado de questões gritantes e problemáticas: para lê-las é necessário um olhar interseccional, como nos diriam Kimberlé Crenshaw e sua intérprete no Brasil Carla Akotirene. Dando um exemplo simples de algo que aconteceu neste começo de 2023, mais um ano após a destrutiva pandemia da Covid-19 que escancarou desigualdades: todes acompanhamos de forma mais direta ou indireta  a tragédia enfrentada por habitantes e turistas no litoral norte de São Paulo, neste mês de fevereiro. 

Os deslizamentos de terra sobre os quais ouvimos falar sempre, todos os anos, em todos os verões fizeram vítimas novamente e as perdas irreparáveis, como sabemos, poderiam ter sido evitadas. Ao assistir uma reportagem que noticiava a tragédia e seus efeitos, caí no choro inúmeras vezes. É dolorido pensar que a ganância puramente motivada por dinheiro foi um dos fatores que levou à tragédia. O trecho da rodovia Rio-Santos que dividia a faixa de areia da praia (área segura de deslizamentos) e as encostas (espaço onde se passaram os eventos traumáticos) é o desenho exato de uma linha de classe. 

Na beira da praia: as casas milionárias para quem pode pagar e que são fruto de desapropriação histórica de antigues moradories pobres, em favorecimento da especulação imobiliária. Escondidas atrás das encostas perigosas e inapropriadas para a moradia: as casas humildes de pessoas pobres, muitas negras, migrantes nordestinas, trabalhadoras nos serviços turísticos e grandes mansões da região. 

Ao que tudo indica, existiam planos de construção de conjuntos habitacionais acessíveis e seguros na região há alguns anos atrás, por iniciativa do poder público através do Minha Casa, Minha Vida. Projeto que foi protestado e barrado pelas elites locais para “evitar a desvalorização de imóveis de luxo”. Curioso que a desvalorização de imóveis valha mais do que vidas. O que nos diz muito sobre onde reside o valor em nossa sociedade, além de como ele dita as maneiras de estar e sentir no mundo. 

A crise climática é um dos maiores exemplos de desigualdade social em escala que enfrentamos hoje e as pessoas mais afetadas, são justamente as que menos contribuem para geração de seus efeitos. Essas são majoritariamente as pessoas que vivem no chamado Sul Global, incluídos os países mais pobres do mundo aqui, de África, América Latina e Caribe, Ásia e Oceania. Existem dados chocantes que escancaram o desequilíbrio na distribuição de recursos que viabilizam a vida digna, acesso a direitos humanos básicos e a possibilidade de incidência política como sujeitas propositivas de soluções necessárias para todes. 

O homem mais rico do mundo, preocupado em construir um foguete e fugir para Marte, poderia contribuir com a erradicação da fome no mundo se doasse 2% de seu patrimônio, de acordo com a ONU. Chega a ser inacreditável que 22 homens no mundo possuam mais riqueza do que todas as mulheres africanas juntas e que no Brasil o 1% mais rico entre homens brancos tenha renda superior a de todas as mulheres negras, parcela mais significativa da população no país. 

São dados crus, que em números não refletem de modo interpretativo o fato que vivenciamos agora: uma crise de sensibilidade. Uma crise que aprofunda desigualdades históricas, como as questões de classe, raça, gênero, orientação sexual, deficiência, território, religião, entre outros marcadores de diferença (que não necessariamente precisam significar desigualdade). 

Se num cenário de guerra e eventos climáticos extremos, violências sexuais acontecem contra meninas e mulheres que tentam migrar para viverem de forma segura, há de se perguntar: onde foi parar a sensibilidade desses homens? Soldados, banqueiros, trilionários, políticos, no masculino, porque sim majoritariamente homens brancos cisgênero héteros sem deficiência, europeus ou descendentes dos colonos que geraram o sistema-mundo que conhecemos e no qual vivemos hoje. 

Na retaguarda desse sistema temos e tivemos majoritariamente mulheres, pessoas negras e indígenas, trans, a comunidade LGBTQIAPN+ como um todo, PDCs, habitantes das margens do mundo, povos de terreiro entre outras populações tradicionais e formas de estar em sociedade. Sem essas “minorias” que em realidade são maiorias silenciadas, o modo fadado ao fracasso de estar no planeta não se sustenta.  

É nessa brecha que há séculos temos de forma insurgente irrompido com novos sonhos, outras possibilidades de estar em vida que perpassam o afeto como premissa. O mundo capitalista pautado nas opressões já citadas não abre espaço para respiro, ao contrário, sufoca nossas movimentações espontâneas e vitais partindo de uma lógica produtivista pretensamente infinita. 

O que a crise climática e nossos próprios corpos nos comunicam é justamente a impossibilidade de seguirmos nessa chave, é necessário disputar imaginários propondo uma existência em que a ternura tenha espaço. Em que pautades em uma política tão simples e revolucionária quanto a empatia, nossas formas de ser e estar sejam guiadas pela busca do coletivo saudável como fim, e não do individual bem sucedido que abaixo de si pisa em centenas de cabeças exploradas. 

Já temos mecanismos seculares para isso, sabedorias ancestrais que precedem nossa época em milênios. Pesquisas apontam que a Amazônia como conhecemos é em parte um grande jardim indígena, cultivado há milhares de anos. Nas favelas, quebradas, comunidades ribeirinhas, aldeias, terreiros e espaços marginalizados de todo o Brasil, ainda que com tantas faltas, há uma reinventividade constante que promove espaços onde com todas as dificuldades podemos encontrar um sentido plural e acolhedor sobre o viver. 

Não devemos em qualquer momento romantizar a precariedade de recursos, mas sim reconhecer que a despeito disso, a riqueza da potência humana, sublinhando-se aqui a força de matriz feminina no mês de março cria e recria mundos possíveis e mais bonitos todos os dias. Somos as mães de quebrada de quádrupla jornada que aos fins-de-semana costuram fantasias em escolas de samba, as mulheres trans contando novas narrativas sobre si no audiovisual, as mulheres com deficiência que reinventam suas histórias no palco, as mulheres indígenas que sustentam nossa casa viva. Somos a ternura e a dor habitando os mesmos corpos, com respostas já prontas e ancestrais para os desafios do presente. 

Referências: 

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019. 

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