Ed. 80 – Nossa máxima medida

03/01/2022

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Artigo: Paulo Markun

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

– Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles (1939)

Há quanto tempo você não se mira no espelho? Olha, para valer, prestando atenção na imagem que seus olhos veem? Se tem mais de 60, a resposta deve ser parecida com a minha: faz muito tempo, justamente para não enxergar o que o poema descreve.

Mas qual é o espelho do Brasil? Onde poderemos ver claramente as mudanças que levaram ao rosto de hoje, de um país que envelheceu antes de enriquecer e ostenta agora as marcas da desigualdade e das muitas velhices, nesse reflexo coletivo que muitos teimam em ignorar?

Poderíamos começar pelos números – embora a pandemia tenha impedido o censo em 2021 e a ignorância feito o mesmo em 2021. Mas é indiscutível que a população brasileira está desacelerando seu crescimento enquanto envelhece. Com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na revisão de 2018, estima-se que os 195 milhões de brasileiros de 2010 alcancem 233 milhões em 2047, decrescendo para 228 milhões em 2060. A faixa entre zero e 14 anos, que somava 48,1 milhões em 2010, deve ter caído para 44 milhões em 2020 e pode diminuir ainda mais nos anos seguintes, baixando para 33,6 milhões em 2060, ao passo que o grupo com 60 anos ou mais, que somava 21 milhões em 2010, iria para 30,2 milhões em 2020, chegando a 43 milhões em 2031 e saltando para 73,5 milhões de idosos em 2060, como resultado dos ganhos crescentes na esperança de vida.

Ainda não há dados claros sobre o impacto da pandemia do coronavírus nesse cenário. O que se presume, para 2020 e 2021, é um retrocesso na evolução da expectativa de vida, voltando aos indicadores de até cinco anos atrás pelo impacto das mortes entre os mais velhos. Num país que adia o censo demográfico e busca esconder os números da pandemia, publicizados por um consórcio de imprensa, é muito difícil ir além disso.

De todo modo, para além das estatísticas, os textos que ocuparam esse mesmo espaço nas edições anteriores de Mais 60 também revelam a face de um novo Brasil. Um novo Brasil velho, que carrega antigos problemas, agrega outros, reclama políticas públicas específicas e demanda ações e iniciativas múltiplas e urgentes.

Poderíamos começar pela nomenclatura, em que Beltrina Côrte, jornalista, docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e editora do portal do Envelhecimento assinalou (edição 70) a série de eufemismos com que tentamos tapar o sol com a peneira, em vez de nos assumirmos simplesmente e como velhos, deixando de lado essa conversa mole de terceira idade, melhor idade e companhia bela.

Terceira idade, aponta Beltrina, não passa de uma espécie de manto dourado que torna nominável o que não pode ser dito. Reis e rainhas, estamos nus – e nossos corpos só de longe podem ostentar o viço da juventude, que nenhum avanço científico é capaz de repor. É a mídia que nos oferece a roupa nova, que nada esconde, mas pode revelar preconceitos e discriminações sobre um processo que deveria ser encarado como natural, inevitável, embora nem sempre trágico. Beltrina recorre a Ashton Applewhite, ativista do movimento antipreconceito contra o envelhecimento e resume: “É vergonhoso ser chamado de velho até pararmos de ter vergonha disso”.

Sem medo de sair desse armário (com o perdão da metáfora desajeitada) vamos em frente. Na edição 65, Ciro Marcondes Filho, professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), falecido em novembro de 2020, aos 72 anos, identificou o tempo ou os tempos – cronos, eon, cairos – como o grande enigma do ser humano e assinalou:

Nosso rosto é nosso primeiro carrasco. É a denúncia indisfarçável de que os anos se apossaram de nós e cavaram em essa pele, límpida e macia, as rugas, as manchas, a decrepitude da pele. Apesar dos anos, sentimo-nos como sempre fomos: como se não tivéssemos dado; e nos iludimos em pensar que o outro nos sinta da mesma maneira. Nossa mente não aceita a degeneração física, pois está em desacordo com nossa imagem idealizada. A velhice é uma categoria social, não biológica. A sociedade narcisista vai empurrando os velhos cada vez mais para a margem, para o fim, para a sua própria cova, mesmo que a saúde ainda o mantenha, mesmo que o élan vital ainda flameje.

Na edição 62, duas pesquisadoras do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Ana Amélia Camarano e Daniele Fernandes, se debruçaram sobre um grupo específico: os nem-nem – homens idosos que não trabalham, não procuram trabalho e não são aposentados. Em 1993, eram 123 mil. Vinte anos depois, 476 mil. Em duas décadas, diminuiu o número de mulheres e aumentou o de homens. As pesquisadoras concluíram que pode ser reflexo das dificuldades de inserção no mercado de trabalho e da baixa qualificação dos candidatos. A diminuição na proporção dos homens chefes de família poderia sinalizar ainda uma mudança nas relações de gênero.

Parte da redução da participação masculina dos homens acima dos 60 anos no mercado de trabalho resulta do preconceito contra o trabalho de pessoas mais velhas. Os homens ainda comandam, mas vão deixando a função de chefe e provedor de suas famílias: o percentual caiu de 79,4% para 69,8% entre 1993 e 2013. A redução na proporção de chefes só foi compensada pelo aumento da proporção de homens cônjuges – sinalizando uma mudança nas relações de gênero.

Como outros tantos copos, o da velhice também pode ser apresentado como meio cheio… ou meio vazio. Na edição 73, Jorge Felix, professor de gerontologia na USP, mira no potencial de geração de riqueza que o novo perfil da população traz consigo – e que em outros países, já foi percebido como tal. Felix ressalta que há uma espécie de corrida populacional em curso e que os países que ocuparem a primeira fila na busca por produtos e serviços tecnológicos especialmente desenhados para atender às demandas dos velhos serão os prováveis vencedores.

Aqueles países capazes de inovar e produzir com mais rapidez as mercadorias que atenderão às necessidades dos consumidores mais longevos e de suas famílias, garantirão parcela maior, é indubitável, no mercado global. Com um adendo: como a tecnologia é a mediadora de tudo na vida contemporânea, estamos tratando de produtos de alto valor agregado, principalmente na área da gerontecnologia. O envelhecimento da população oferece um outro motivo para o desenvolvimento da robótica inteligente. Os robôs (ou as variadas formas de automação) saem das fábricas, das seções de pinturas, soldagem e montagem para hospitais, asilos, casas e empresas de serviços. Passam a ser assistentes pessoais, cuidadores, acompanhantes, professores, mensageiros, distribuidores de remédios em hospitais, auxiliares de enfermeiros, personal trainers, apoio de astronautas, motoristas, ajudantes de cozinha. Esta é uma realidade do capitalismo contemporâneo, independentemente da necessidade de nossa visão crítica ou questões éticas.

O Brasil ainda não entrou nessa corrida, nem mesmo por intermédio das multinacionais aqui instaladas e Felix atribui o fato à omissão do setor público, que ignora o debate, o que limita as iniciativas ao isolamento, sem visão sistêmica.

Carla da Silva Santana Castro, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP) e presidente da Sociedade Brasileira de Gerontecnologia (SBGTec) mostra, na edição 74, que há soluções e produtos já desenvolvidos, compondo uma janela de oportunidades na área. Mas recorda que é preciso levar em conta as especificidades dos velhos brasileiros. Robôs de serviço ou de companhia são mais facilmente aceitos no Japão ou na Finlândia, enquanto entre os latinos são as tecnologias assistivas, destinadas a cuidadores formais ou informais, que podem ser mais facilmente aceitas.

A solução só será encontrada a partir da interdisciplinaridade e cooperação entre as áreas de conhecimento. Carla propõe ainda que a gerontecnologia seja incluída nos currículos de formação técnica e superior, bem como na agenda política e empresarial.

Naira de Fátima Dutra Lemos, assistente social e professora de geriatria e gerontologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou, na edição 72, que a tarefa de cuidar dos idosos no Brasil costuma recair sobre a família e, mais especificamente, sobre as mulheres. Uma dupla jornada de trabalho que tem pouco (ou nenhum) suporte social, quando deveria ser reconhecida pela sociedade e amparada pelo poder público.

Entre as iniciativas pioneiras e isoladas menciona o ambulatório dedicado aos idosos em que são eles próprios cuidadores, criado em 2007 pela Unifesp e que em 12 anos de funcionamento atendeu 342 pacientes. No alerta de Naira:

A invisibilidade do cuidador idoso, suas dificuldades no exercício cotidiano do cuidar, o alto custo que lhe é cobrado por essa função, quer seja físico, quer seja emocional, ainda carece de estudos que possam direcionar políticas públicas para atenção a essa população.

Nessa prevalência dos cuidados em casa há influência da falta de iniciativas públicas, mas também pesa o que Deusivania Vieira da Silva Falcão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP) definiu como familismo, na edição 77: um construto multidimensional que reflete valores como apego, lealdade, reciprocidade, sentimentos de obrigação familiar, apoio instrumental e emocional, interconexão e solidariedade entre os membros da família nuclear e extensa. Entre adolescentes e jovens adultos, os familistas são mais propensos a evitar comportamentos de risco e, também mais dispostos a ajudar no cuidado de pais e avós.

Deusivania replica dados de pesquisa ainda não publicada, feita por Falcão, Nunes e Bucher-Maluschke com casais idosos confinados em decorrência da pandemia de covid-19. Eles constataram que aqueles que tinham crenças e atitudes familistas utilizaram a comunicação não violenta, a empatia, a flexibilidade e o perdão para lidar com os conflitos vivenciados durante a quarentena.

Mas nem todos os velhos podem ou querem seguir vivendo com as famílias. Em outros países, um mercado que está crescendo muito é o das moradias para velhos. Aqui, são raros os empreendimentos privados. A maior parte dos idosos vive com suas famílias – menos de 1% está nas chamadas Instituições de Longa Permanência (ILPI), outrora denominadas asilos. Na edição 78, Ana Amélia Camarano relembra que a primeira referência de asilo encontrada no Brasil foi de uma instituição destinada a soldados, a Casa dos Inválidos, inaugurada no Rio de Janeiro, em 1797, especialmente construída para este fim.

Ana alerta que, quando as famílias se tornam menos disponíveis para cuidar dos seus membros dependentes, o Estado e o mercado privado precisam se preparar para atendê-las e que a pandemia da covid-19 deve ter consequências díspares: o isolamento social recomendado reduz a procura por esses serviços, mas o aumento da pobreza, inclusive entre idosos, amplia a demanda.

O turismo é outro campo em que os velhos representam um potencial de consumo evidente. Na edição 75, Susana de Araújo Gastal, professora do programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade na Universidade de Caxias do Sul (UCS) adverte: estes novos consumidores são exigentes em termos de qualidade e originalidade e a receita fácil do turismo de massa, empacotado e reproduzido sem critério, já não funcionava com eles antes da pandemia. Susana lembra que há velhos e velhos: os que classifica como senis não têm lugar nesse mercado, enquanto os que ela define como infantis são tão relevantes quanto crianças e adolescentes, mesmo que muitos lugares tenham de ser adaptados para esses frequentadores e suas peculiaridades.

Não é preciso ir tão longe para encontrar territórios onde os velhos não têm o espaço que deveriam. César Simoni Santos, professor do Departamento de Geografia da USP, autor de A fronteira urbana: urbanização, industrialização e mercado imobiliário no Brasil apontou para as metrópoles, em que o tempo é apenas produtivo, na edição 64.

O espaço urbano, socialmente produzido, mas privadamente apropriado resulta na perda do sentido de pertencimento de seus habitantes, notadamente os mais velhos. O flaneur de Baudelaire perdeu a batalha. A máxima do time is money transformou todo o tempo em tempo produtivo:

Os velhos guardam na memória a cidade acolhedora, as ruas que permitiam as brincadeiras, a vizinhança como lugar de sociabilidade afável. As grandes avenidas são cicatrizes que separam o tecido urbano e contêm os velhos nos espaços segmentados pelas pistas feitas para os automóveis.

Ao trocar mercadinhos locais, comércio de rua, botequins e pequenos restaurantes por supermercados, shoppings e redes de fast food, os bairros que são redutos do tempo lento e morada dos velhos desaparecem. A espoliação das lembranças desemboca no banimento da velhice.

Se isso acontece com os velhos que mantêm sua capacidade de lembrar intacta, o que dizer dos portadores da doença de Alzheimer, tema de Marimelia Porcionatto, professora da Escola Paulista de Medicina (EPM), na edição 67? Os números são assustadores: estima-se que em 2050 haverá cerca de 130 milhões de pessoas com demência no mundo, sendo dois milhões na América do Sul, e até agora a ciência tem obtido poucos avanços no controle da doença, sobre a qual há inúmeras pesquisas.

O Alzheimer atinge 15% das pessoas acima dos 65 anos e 50% dos com mais de 85 anos e só é diagnosticado quando já está instalado. Embora haja 2.143 ensaios em desenvolvimento no mundo todo, nenhum dos ensaios concluídos relatou resultados positivos. Marimelia afirma que as estratégias terapêuticas utilizadas focam partes do processo e supõe que será preciso adotar uma abordagem mais ampla, combinando diferentes terapias, se quisermos frear o desenvolvimento dessa doença tão terrível para os pacientes e seus familiares e amigos.

A escritora Heloisa Seixas relatou, na edição 69, sua própria experiência com essa dura realidade, ao descobrir que a mãe tinha Alzheimer. Mulher ativa, divertida e solar, explicou que costuma escrever sobre aquilo que mais a espanta: envelhecimento, doença, loucura e morte, na esperança de que assim tais assuntos deixem de assombrá-la. Entre as histórias, a da própria mãe, em quem Heloisa observou modificações da personalidade:

A doença de Alzheimer traz consigo vários males, que se infiltram na vida do doente e de todos que convivem com ele. E a raiva é um desses males. Os parentes não conseguem compreender o que está acontecendo, negam a doença – ou simplesmente a desconhecem – e com isso acabam sendo tomados por um sentimento de revolta. E não é só raiva. É culpa, também. Ou mesmo loucura. Houve momentos, durante o processo de esfacelamento da mente da minha mãe, em que senti que me degradava também, que eu própria estava a ponto de enlouquecer.

Para outros casos dramáticos e sem solução, houve avanços recentes. Entre eles, a classificação da medicina paliativa como uma especialidade reconhecida em muitos países. No Brasil, a partir de 2010, a medicina paliativa foi oficialmente reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) brasileiro como um ramo de especialidade médica.

André Filipe Junqueira dos Santos, vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, na edição 68, resgatou um pouco dessa história que começa na década de 1960, com uma inglesa com formação humanista. Médica, enfermeira, assistente social, e escritora inglesa, Dame Cicely Saunders recuperou o conceito de hospice, empregado na Idade Média. Ao longo do percurso das cruzadas surgiam locais que atendiam tanto aqueles que necessitavam de alimentação e abrigo quanto os doentes que eram cuidados até a morte. Como não havia quase nenhum tratamento médico a ser oferecido, os cuidadores apostavam no bem-estar espiritual dos ali abrigados.

Com esse mesmo intuito surgiu o St. Christopher’s Hospice, em 1967. O primeiro hospice na visão da medicina moderna, apoiado no conceito de “dor total”, que incluiu as dimensões física, emocional, social e espiritual no manejo dos sintomas. Uma frase de Cicely resume sua pretensão: “Quero que você sinta que me importo pelo fato de você ser você, que me importo até o último momento de sua vida e que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para você viver até o dia de sua morte”.

Em resumo, quase o oposto do que acontece com velhos doentes crônicos em muitas UTIs, quando o prolongamento artificial da vida significa apenas mais dor – e gastos.

Em muitos casos, é possível encontrar uma relação entre esse prolongamento a ferro e fogo de vidas marcadas pelo sofrimento indizível e o aumento da taxa de suicídios entre idosos no Brasil, que Daiane Borges Machado, psicóloga pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutora em epidemiologia e saúde populacional pela London School of Hygiene & Tropical Medicine abordou na edição 76. A taxa de suicídio entre pessoas de 60 anos ou mais está aumentando mais entre os grupos mais vulneráveis (índios, negros e entre o sexo feminino). De 2007 para 2017, houve um crescimento de 18% entre idosos de 60 a 69 e de 15% entre idosos de 70 a 79 anos. Os idosos com menor escolaridade apresentaram maior aumento percentual no número de casos de suicídio.

Daiane alerta para a importância de investigar o que há por trás dessas mortes e reconhece que o suicídio está fortemente relacionado aos sentimentos de desesperança. Vidas difíceis por conta da situação econômica e social pioram em razão de problemas interpessoais, fatores psicológicos ou psiquiátricos e se, além do mais, esses indivíduos não têm apoio social, relacionamentos afetivos, nem enxergam alternativas, pôr fim a vida pode parecer o único caminho.

Nas margens da sociedade, a população carcerária também envelhece – longe dos holofotes e do crivo dos pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Marina Portella Ghiggi, professora de direito penal da Universidade Católica de Pelotas UCPel), na edição 71, adverte: pelos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen, 2010), o encarceramento desta parcela da população triplicou entre os anos de 2005 e 2010, embora os números globais ainda sejam baixos. No Rio Grande do Sul, a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe, 2018) constatou que 2% dos presos possuíam mais de 60 anos. Os presos com idade entre 46 e 60 anos já são 10% da população carcerária masculina e 16% da feminina. Para Marina, essas penas restringem mais que o direito à liberdade:

A crueldade manifesta-se quando se afere que esperanças e expectativas ficarão consumidas pela pena, considerada como uma resposta estatal evidentemente seletiva, controversa em termos de suas finalidades e violadora dos direitos mais fundamentais da pessoa humana. Embora o idoso preso não seja completamente esquecido pelos documentos jurídicos, existem pouquíssimas previsões de direitos específicos aos idosos presos. Ademais, em uma primeira análise, é possível afirmar que o idoso é praticamente invisível para as políticas públicas.

A violência contra os velhos só foi descrita na academia em 1975, quando dois pesquisadores ingleses se referiram ao espancamento de avós, informa Maria Cecília de Souza Minayo, doutora em saúde pública no artigo “Múltiplas faces da violência contra a pessoa idosa”, publicado na edição 60. Mas, em pouco tempo, o tema passou a ser objeto de convenções internacionais. No Brasil, teve reflexos na Política Nacional do Idoso de 1995 e no Estatuto do Idoso de 2003.

Essa violência também se apresenta de várias formas: abuso físico, psicológico, sexual, financeiro, abandono, negligência e autonegligência e muitas vezes demora a se revelar, protegida pelo silêncio das vítimas, que se calam e se isolam diante dos abusos. Entre 5% e 10% dos idosos são alvos da violência física em todo mundo – e as mulheres são as mais afetadas. As queixas mais frequentes são sobre violência psicológica (62,5%). Sobre violência física há muito menos – 32%, conforme estudos realizados em vários municípios brasileiros. Maria Cecília lembra ainda que muitas empresas cometem violência econômica e financeira, sob a forma de aumentos abusivos ou recusa a atendimento em serviços essenciais.

O porto seguro das pessoas idosas costuma ser a família: mais de 90% dos idosos moram com filhos, filhas, netos ou outros parentes. Em média, 28% dos lares brasileiros têm pelo menos uma pessoa idosa. Por outro lado, dois terços dos agressores são filhos, parentes e cônjuges.

Na edição 63, Carlos Eduardo Henning, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Guita Grin Debert, professora do Departamento de Antropologia da Unicamp, procuraram mostrar que gênero, etnicidade, classe social, nível educacional e sexualidade conformam as várias velhices. E que a velhice feminina pode ser, para alguns autores, mais suave que a masculina, dado o menor vínculo das mulheres com o mercado de trabalho, os laços mais intensos com filhos e as vantagens relativas da perda dos controles.

Nos últimos tempos, os velhos estão deixando de ser encarados como uma subcultura com um estilo próprio de vida que se sobrepõe às outras diferenças, como ocupação, sexo, religião ou identidade étnica. O século XXI tem velhos homens mais femininos, mulheres mais masculinas, numa normalidade unissex da idade avançada. A dissolução de barreiras tradicionais estaria sendo substituída, nos últimos tempos, por uma erotização do envelhecimento, apoiada na desgenitalização da sexualidade masculina e na liberação das mulheres de seus compromissos sexuais, anteriormente determinados pelo desejo dos parceiros. A erotização dos corpos se expressa, assinalam Guita e Carlos Eduardo, inclusive, na contratação de jovens parceiros nos chamados bailes da terceira idade – os cavalheiros de aluguel.

Mas as experiências de envelhecimento e velhice que questionam ou escapam das convenções heterossexuais são no mais das vezes, apagadas. O Brasil ainda não tem uma gerontologia LGBT, como a América do Norte apresenta.

Outro campo em que há mudanças importantes foi observado por Denise Pollini, pesquisadora de história da moda e cultura da moda, na edição 61. A onda jovem que veio com o pós-guerra e seus teenagers vive um refluxo quando os baby boomers tornam-se sessentões e setentões. Nos últimos cinco anos, o cenário da moda internacional tornou-se terreno fértil para iniciativas que buscam valorizar um estilo para quem tem mais de 60. Isso se reflete, por exemplo, na contratação da atriz Helen Mirren, de 69 anos, para embaixatriz da L’Oreal, nos blogs de estilo comandados por velhos e velhas e na invenção de Sue Ellen Cooper, que em 1997 comprou um chapéu vermelho e deu para uma amiga, como prova de que a idade nos permite ousadias e escolhas que seriam inconcebíveis na juventude. Hoje, há mais de 36 mil clubes chamados Red Hat Societies com 850 mil membros – prova máxima de que a padronização perdeu terreno.

A psicóloga Anita Liberalesso Neri, professora da Unicamp, valorizou o papel da resiliência psicológica no enfrentamento da velhice na edição 79 dessa Mais 60. A melhor maneira de encarar as perdas naturais dessa faixa etária seria, se bem resumo o encadeado argumento de Anita Neri, com a combinação de uso de nossas capacidades de reserva e uma atitude positiva. Mais necessária ainda diante de eventos como a pandemia da covid-19, que provoca sensações de desamparo, rebaixamento da autoestima, sentimentos negativos, perda de apetite, diminuição da capacidade imunológica, crises hipertensivas, dores, insônia, ansiedade, ideações suicidas, confusão mental e outros sinais de desadaptação psicológica e biológica. Não há uma só velhice, reitera Anita Neri. Suas manifestações variam, de acordo com vários fatores.

Ser idoso e, além disso, pobre, negro, mulher, gordo, com incapacidades e multimorbidades implica em ser tratado como invisível, inferior, doente, inútil, irrelevante, dependente e um fardo para a sociedade. O pior é que esses conceitos são internalizados pelos idosos, que passam a conviver com autocrenças negativas de eficácia pessoal, com expectativas negativas de desempenho cognitivo e com medo do ridículo e da desvalorização, como se tudo isso fosse natural e típico da velhice. Ser idoso é frequentemente fonte de tensão crônica e de perturbações, às quais os velhos podem responder com ansiedade e vergonha, com aceitação ou com depressão, apatia e fadiga. Na velhice, uma adequada adaptação está ligada à capacidade de regulação emocional; à seleção de alvos positivos para investimento afetivo e cognitivo; à diminuição da intensidade e da variabilidade de experiências emocionais positivas e negativas; à capacidade de vivenciar experiências emocionais mais complexas e de nomear e compreender as próprias emoções e as emoções alheias; e à capacidade de selecionar parceiros sociais que representem oportunidade de conforto emocional (mais do que de informação e status, que são temas típicos da juventude e da vida adulta).

Anita descreve o processo adaptativo que se abriga sob a sigla SOC – Seleção, Otimização e Compensação – em que os idosos costumam escolher e investir em determinados alvos que sejam importantes para si, por razões afetivas e cognitivas. E relaciona seis domínios ou fatores: autonomia, domínio sobre o ambiente, crescimento pessoal, relações positivas com os outros, propósito na vida e autoaceitação. Quem tem propósitos mais elevados costuma ser mais resiliente e enfrenta melhor a velhice. Um círculo virtuoso, que deveríamos percorrer.

É possível encontrar algum contraponto (ou complemento) nos argumentos de Denise Bernuzzi de Sant’Anna, professora da PUC, oferecidos na edição 66. Ela alerta para o risco da tirania do envelhecer bem, que tanto pode ser ordem ou dever, como conquista merecida.

A ideia de que se é um velho ocorre quando o peso da espessura vivida, acumulada sobre a memória de tempos passados, torna o caminho do porvir menor do que aquele já trilhado. Os jovens olham os velhos com se eles já não fizessem parte deste mundo, como se suas existências fossem aberrantes, impossíveis de serem aceitas e acolhidas. Os velhos são coagidos a se mostrarem alegres. Uma maneira de escapar a este suposto adoecimento é transformar a velhice numa época promissora e menos pesada do que ela parece ser.

Parte do remédio, ou do possível tratamento precoce (neste momento tão mencionado e mal compreendido) acontece nas miríades de grupos de lazer e de cultura destinados aos que têm mais de 60 anos – entre eles, os que o Sesc desenvolve.

Aqui no meu canto, a caminho dos 70 anos, por enquanto na ativa e saudável, posso apenas contribuir com o rico aprendizado obtido em quase dois anos de desenvolvimento da série Envelhecer, para o Sesc TV, ao lado da também diretora Claudia Erthal e de um grupo de moças e moços entusiasmados e apaixonados pelo tema.

Na conversa com especialistas e velhos de todo os tipos e cantos do Brasil, me dei conta de que ainda é tempo para fazer coisas que já deixara para trás. Como esquiar na neve (fiz o curso básico) ou surfar (promessa adiada para este verão). Também vale entender que ninguém sabe quanto tempo mais nos resta de vida e que isso é tanto problema como oportunidade.

Na expectativa de viver o melhor possível a parte que ainda me cabe neste latifúndio, mantenho expectativas e sonhos como os que a doutora Anita Neri recomenda. Mas busco ainda avaliar, com alguma serenidade, se existe água na piscina antes de mergulhar de cabeça. E não resisto a me apropriar da frase de outrem, como fiz ao longo de todo esse artigo. Trata-se do escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980) que no livro O reino deste mundo, resume um certo modo de encarar nossa missão por aqui:

(…) o homem nunca sabe para quem padece e espera. Padece e espera e trabalha para gentes que nunca conhecerá e que por sua vez padecerão e esperarão e trabalharão para outras que tampouco serão felizes, pois o homem ansia sempre uma felicidade situada além da porção que lhe é outorgada. Mas a grandeza do homem está precisamente em querer melhorar o que é. É impor-se tarefas. No Reino dos Céus não há grandeza a conquistar, pois ali tudo é hierarquia estabelecida, incógnita derramada, existir sem fim, impossibilidade de sacrifício, repouso e deleite. Por isso, atormentado por penas e tarefas, formoso dentro de sua miséria, capaz de amar em meio às pragas, o homem só pode alcançar sua grandeza, sua máxima medida, no reino deste mundo.

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