Ed. 81 – Haverá Futuro para Quem Vive nas Ruas das Cidades Brasileiras?

05/01/2022

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Por Fernanda Almeida

O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira, 1947

1. Escutar as Ruas
Quem, como eu, vive nas grandes e médias cidades brasileiras já deve ter notado e indagado sobre o aumento significativo da população em situação de rua na última década. A percepção é real e traz preocupações de ordem política, econômica e social. Embora existam pesquisas e estimativas regionalizadas não há, no Brasil, um levantamento censitário nacional atualizado. A insuficiência de dados confiáveis é um dos grandes entraves para a construção e consolidação de políticas públicas, assim como para o desenvolvimento de estratégias de enfretamento deste que é, indubitavelmente, um dos maiores e mais complexos desafios para a gestão pública nos municípios.

Para se ter uma ideia da magnitude do desafio, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou, por meio de uma nota técnica (73), o estudo que aponta o aumento de 140% da população em situação de rua no período de setembro de 2012 a março de 2020, chegando a quase 222 mil pessoas. Só na cidade de São Paulo, como maior exemplo, de acordo com o último levantamento realizado pela prefeitura em 2019, existiam 24.344 pessoas nesta condição. Destes, 2.211 têm mais de 60 anos, isto é, são considerados idosos. Já os adultos na faixa etária entre 50 e 59 anos somam 2.878 pessoas, com isso, o percentual de pessoas com mais de 50 anos vivendo em situação de rua
corresponde a 20,9%. Isso significa que as pessoas em situação de rua estão envelhecendo e, com o aumento desta população em decorrência da pandemia, os mais idosos e frágeis ficam ainda mais vulneráveis.

O dado convoca algumas reflexões primordiais: se a vida urbana é centralmente organizada a partir do mundo do trabalho, é possível considerar que, no cenário da crise atual de emprego, o mercado de trabalho absorverá esta mão de obra que está envelhecendo em situação precária? Em outras palavras, quais são as condições concretas de vida desses homens e mulheres, em especial dos idosos, e quais são as perspectivas reais de envelhecimento com dignidade para essa população? Se há o consenso de que a longevidade tem relação direta com as condições materiais e imateriais que garantem a qualidade de vida, a população em situação de rua é a representação imediata da negação deste direito humano? Se o futuro é o intervalo de tempo que se inicia após o presente, como é possível pensar em um futuro digno para a população em situação de rua? E mais, que futuro terão as grandes e médias cidades com taxas de urbanização e desemprego cada vez mais expressivas e, consequentemente, com o envelhecimento da população em situação de rua?

Como se pode notar, as questões não são simples e exigem políticas públicas estruturais. Diferentemente daquilo que supõe o campo mais tradicional, as respostas meramente assistenciais são insuficientes, pois não se trata de simplesmente acolher e garantir a subsistência para as pessoas, como afirmei em outro artigo sobre o tema:

O aumento da população em situação de rua nas cidades brasileiras é a evidência real de que a política econômica pautada exclusivamente pelas demandas do capital financeiro resulta no aumento da miséria e no aprofundamento da desigualdade social. Os milhares de homens, mulheres e crianças vivendo de maneira sub-humana nas ruas, em sua maioria trabalhadores desempregados e suas famílias, expõe as vísceras da profunda crise política, social e ética. (ALMEIDA, 2019)

Somente em 2009, por meio do decreto nº 7.053/2009, é que foi instituída a primeira Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento no âmbito federal. Mesmo que seja consensual a dificuldade de caracterização do fenômeno, o decreto buscou uma definição unívoca, e assim o define:

(…) considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (BRASIL, 2009)

Embora seja possível contabilizar avanços institucionais a partir deste ato, de lá para cá as políticas públicas para esta população continuam focalizadas, pontuais e, mais recentemente, após 2016, sofrem com as agruras da agenda ultraneoliberal, pautada na austeridade como modelo de gestão pública, que intensifica as desigualdades sociais e fragiliza ainda mais as pessoas mais vulneráveis.

Escrito em primeira pessoa, o presente texto apresenta reflexões, indagações e relatos a partir da minha experiência profissional tanto na formulação como na gestão e execução de políticas públicas para esta população na cidade de São Paulo. Embora eu não possa falar em nome destes sujeitos, o propósito aqui é transmitir através das minhas lembranças e memórias – relações tecidas a partir da vivência cotidiana com homens e mulheres em situação de extrema vulnerabilidade – a complexidade e ambivalências dos múltiplos significados do viver nas ruas e praças da cidade. Ainda sobre a forma de exposição, por sua natureza “ensaística”, anuncio de antemão as lacunas deste escrito, os possíveis excessos subjetivos e as prováveis afirmações eloquentes.

Escrever talvez seja uma das formas mais intensas de elaboração, mas não é exclusiva, há outras, sem sombra de dúvidas. Aos intérpretes, por exemplo, cabe desmesurada missão de reconhecer e expor virtudes e vícios humanos através do teatro, do cinema, das novelas etc. A mim coube, neste caso, a tarefa de transmitir através das palavras o relato de experiências que reconhecem a dramaticidade daqueles que sobrevivem à margem. Em razão disso, penso ser imprescindível o resgate das biografias, é fundamental recuperar as histórias de vida, é preciso abrir a escuta para os desejos. Escutar as ruas e acolher corpos e modos de vida que desconcertam e subvertem a lógica higienista e anticéptica do ideário da sociedade contemporânea.

Foi no momento de escrita deste texto que eu me recordei da Nina, uma mulher velha, negra, magricela, desdentada e com transtornos mentais visíveis. Na minha infância eu passava os dias com a minha avó paterna, uma prática comum entre as famílias trabalhadoras. Foi entre banhos de mangueira e brincadeiras com os cachorros no quintal da minha avó que me foi apresentada a Nina. Minha avó não me dizia exatamente quem ela era, eu entendia ser uma de suas amigas. Mas ao mesmo tempo, achava estranho, pois a Nina aparecia sempre de surpresa, e causando alvoroço. Era diferente das outras amigas da minha avó, antes de engatarem na conversa, Nina sempre pedia para tomar um banho. Minha avó lhe dava roupas limpas e um bom prato de comida, indiferente ao horário.

Enquanto Nina narrava as histórias das suas andanças, eu fingia que brincava com o cachorro, mas em verdade eu ouvia tudo com muita atenção, concentrada em cada detalhe. Me lembro que ela contava dos fuzuês de quando dormia nas praças e também das encrencas quando exagerava nas doses de cachaça. Ela se mostrava mais contente ao narrar do que minha avó ao ouvir. Minha avó lhe dava conselhos e parecia mais preocupada com o futuro da Nina do que a própria Nina.

A vida tem desses fascínios, percebo agora que o interesse e envolvimento com que escuto cotidianamente as histórias das muitas pessoas em situação de rua, que passam e passaram em meus plantões, têm um tanto dessas memórias e afetos. Tem técnica, evidentemente. Tem consolidação e formação profissional, obviamente. Tem, sobretudo, a estruturação da política pública que viabiliza, indiscutivelmente, o acesso deste público aos serviços de assistência e saúde. Mas hoje reconheço que é preciso ter, por parte dos profissionais, uma espécie de despojamento afetivo. Uma disponibilidade que sustenta a base daquilo que chamamos de ética do cuidado, ou seja: o respeito às diferenças e à humanidade no acolhimento.

Dedico este texto à minha avó e, em especial à Nina, a primeira mulher em situação de rua que conheci. Naquelas tardes dos anos 1980, regadas a xícaras de café e contação de história, elas não tinham a menor ideia do significado e do impacto daqueles encontros na minha constituição como sujeito, assim como da possível influência nos desdobramentos das minhas escolhas na vida profissional. Eu também não sabia disso, até contar essa história.

2.Direito à Cidade e Cotidiano: a Heterogeneidade nas Ruas
São múltiplas as determinações que constituem o fenômeno população em situação de rua, assim como são heterogêneas suas características e os motivos que levam milhares de pessoas a utilizarem as calçadas e praças como espaço de moradia e sustento. As formas de abordagem e estudos também são diversas. Cada vez mais os grupos de pesquisa das diversas áreas das ciências humanas se desdobram em tentar compreender e construir propostas alternativas que qualifiquem as ações governamentais, da mesma maneira que as iniciativas populares e assistenciais. Sabe-se que o fenômeno não é recente, ao mesmo tempo, é na virada do século XX para o XXI que o acréscimo de pessoas em situação de rua em todo o mundo explode. É nos grandes centros urbanos que se aglomeram as massas de pessoas empobrecidas e fragilizadas pela condição de vida e por sua saúde precarizada.

Por outro lado, é costumeiro que a sociedade seja capturada pelo senso comum e tenha as mais ambivalentes opiniões sobre o tema, em geral são simplificações que reduzem ou escamoteiam os problemas estruturais, enaltecendo as histórias singulares de vida e subtraindo destas as determinações sociais. A questão é que essas duas dimensões – estrutural e singular – são reais e precisam estar articuladas, sendo ambas, inclusive, que constituem a heterogeneidade, mas a sobreposição das singularidades pode, por vezes, sombrear e naturalizar as múltiplas determinações do fenômeno, fazendo com que os problemas estruturais (econômicos e políticos) não sejam denunciados, tampouco enfrentados. A visão simplificadora dá suporte às narrativas ideológicas que buscam a massificação e homogeneização desses sujeitos e que têm por finalidade subsidiar projetos e propostas políticas higienistas e carcerárias.

Por esse ângulo, o primeiro passo no sentido de construir balizas que possibilitem uma interpretação mais abrangente parece ser compreender a multiplicidade de determinantes – históricos, econômicos e sociopolíticos –, que levam à desestruturação econômica e psicossocial. Para que, em seguida, de posse de um referencial analítico consistente, seja possível construir nexos e reflexões a partir das expressões heterogêneas e territoriais que marcam a vida dos sujeitos que habitam calçadas e praças da cidade e, aí sim, restituir suas biografias. Com isso, busco explicar que há um processo dialético articulado e necessário para que haja compreensão, pois do contrário corre-se o risco de análises e conclusões reducionistas que resultarão, com demasiada frequência, em práticas imediatistas, asilares e tuteladas.

Maria Lúcia Lopes Silva (2009, p. 105) confirma a complexidade e o esforço analítico necessário para identificar o fenômeno população em situação de rua. Ela constrói e analisa seis aspectos caraterísticos que contribuem para uma investigação mais apurada sobre o assunto, assim ela os apresenta: 1 – as múltiplas determinações; 2 – como uma expressão radical da questão social na contemporaneidade; 3 – a localização nos grandes centros urbanos; 4 – o preconceito como marca do grau de dignidade moral atribuído pela sociedade às pessoas atingidas pelo fenômeno; 5 – as particularidades vinculadas ao território em que se manifesta; e ainda, 6 – a tendência à naturalização do fenômeno. Tendo como âncora analítica a classificação de Silva, proponho um rearranjo dos aspectos por ela apresentados.

Para a reflexão que proponho fazer, sugiro tomarmos como referência para pensar as determinações estruturais do fenômeno população em situação de rua a interseção:

2.1. Homem do Saco, Vadio, Mendigo, Vagabundo, Desocupado, Nóia: Mudam-se os Termos, Mantem-se o Estigma
Existe uma figura folclórica que povoa o imaginário infantil, refiro-me ao homem do saco. Um sujeito velho, sujo, maltrapilho e que carrega um saco nas costas. Ele é um andarilho. Não há voz, apenas murmúrios e resmungos. Ninguém sabe onde ele mora e o conteúdo do seu saco. As crianças da minha idade sabiam bem o significado da frase: “Cuidado, o homem do saco vai te pegar”. Essa era a ameaça mais terrificante à qual a garotada podia ser exposta quando fazia alguma traquinagem ou malcriação. A intimidação oriunda da sinistra figura do homem do saco também era utilizada em outras situações, tais como esquivar-se dos brócolis, do espinafre, da rúcula ou de qualquer outra criatura verde que assentasse no prato. Ser flagrado brigando com os irmãos, ou ainda, arrumando confusão nas ruas, tinha quase sempre a mesma intimidação: “Vou te entregar para o homem do saco!”. Enfim, o temor que tínhamos desse sujeito era justificado, dada sua imagem tenebrosa, misteriosa e sua precariedade. A figura mitológica do homem do saco é diversa na cultura internacional, possui algumas explicações e nomenclaturas variadas. No folclore brasileiro ele pode ser identificado como: homem do saco, velho do saco, ou ainda, papa-figo. O objetivo aqui não é discorrer sobre as raízes folclóricas dessa figura, mas me interessa recuperar a representação imagética desse sujeito na vida contemporânea e cotidiana das cidades. Afinal, quem nunca sentiu medo do homem do saco? Quem nunca associou o homem do saco a um “mendigo” ou a uma pessoa com transtornos mentais perceptíveis?

O homem do saco contribui para a formação histórica do estigma das pessoas em situação de rua no Brasil. Rodrigues et al. (2020, p. 30-34) traça um panorama histórico das raízes etiológicas da figura do homem do saco e da sua relação com a vadiagem e a mendicância do Brasil Colônia até os tempos atuais. Os autores demonstram como a disputa
de narrativas em torno do “nomear” tem múltiplos significados históricos e ideológicos. Ao discorrer sobre as tramas do como as várias “caracterizações” foram acompanhando os momentos de estruturação da política pública no país, e possível notar que a criminalização da pobreza parece estruturar a gênese da compreensão que a sociedade tem sobre o fenômeno população em situação de rua.

E ainda, ao recuperar documentos históricos, os autores (RODRIGUES et al., 2020) demonstram como as estruturas escravocratas possuem relação direta com a gênese do fenômeno população em situação de rua. Em razão disso, é possível afirmar que a “condição de rua” sempre foi preta! De acordo com os dados do último Censo Rua realizado pela Prefeitura de São Paulo em 2019, por exemplo, 70% das pessoas em situação de rua são negras, portanto, o escravismo e o racismo se reatualizam nas ruas da cidade. Silvio Almeida (2019), no livro Racismo estrutural, demonstra a necessidade de um conhecimento consistente da teoria social para a compreensão do racismo. Para ele o
fenômeno do racismo não é atípico ou patológico na sociedade contemporânea, mas parte da engrenagem política e econômica fundante do tecido social que ordena a sociedade capitalista. Para o referido autor:

A superexploração do trabalho ocorre especialmente na chamada periferia do capitalismo, onde em geral se instalou a lógica colonialista. O racismo, certamente, não é estranho à expansão colonial e à violência dos processos de acumulação primitiva de capital que liberam os elementos constitutivos da sociedade capitalista. (ALMEIDA, 2019, p. 172)

Assim, as consequências do racismo como condição estrutural na constituição do fenômeno da população em situação de rua são flagrantes, sendo inadmissível qualquer conciliação reducionista. Na mesma direção, há 30 anos, de maneira inaugural Florestan Fernandes estabeleceu em sua obra o Significado do protesto negro:

A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. (FERNANDES, 2017)

Descolonizar é olhar para este fato ou, nos termos de Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (2020), esses corpos são corpos negros. A naturalização e homogeneização da condição de rua reproduz os piores e mais hostis estigmas e preconceitos impregnados na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, a condição de rua, como se pode
notar, é também resultado da organização política e social do mundo do trabalho, como buscamos afirmar até aqui.

É bem verdade que, com o aumento significativo de pessoas habitando as calçadas e as praças, a figura do homem do saco se diluiu no imaginário popular, principalmente nas metrópoles, dando espaço cada vez mais para noção de mendicância. Hoje quem ocupa esse espaço no imaginário coletivo é o “nóia” ou o “zumbi”. Em geral usuários de substâncias psicoativas que vagueiam pelas ruas da cidade. Neste caso, tanto a criminalização quanto a higienização têm a tônica das repostas institucionais.

2.2. Direito à Cidade
Até aqui busquei mostrar que para compreender o fenômeno população em situação de rua é preciso estabelecer os nexos entre: cidade, com seu processo de urbanização na era capitalista; questão social, compreendida como categoria que condensa as contradições na relação entre o capital e o trabalho e; nossas raízes coloniais, escravocratas, com todas suas consequências no processo de formação sócio-histórica do Brasil até os dias de hoje.

Nessa perspectiva, de acordo com Maricato (2015), a cidade é o palco dos conflitos entre as classes sociais. Não é palco estático, frio e distante, é terreno de contradições. É como o teatro de arena, dinâmico e vivo – atores e público em proximidade. As cidades delimitam historicamente um ou mais modos de viver, e há anos temos vivido um tempo insustentável e insuportável nas grandes e médias cidades brasileiras. No livro Para entender a crise urbana, Maricato (2015) traça um quadro esquemático no qual delineia a extensão da crise. Ela mostra que, mais que os direitos individuais, é preciso que a sociedade assuma o pertencimento da cidade como direito fundamental.

Com base na tradição marxista, ela dialoga com o pensamento de Henri Lefebvre e David Harvey, e mostra que a cidade “(…) é o lugar por excelência da reprodução da força de trabalho” (MARICATO, 2015, p. 22). Para ela, o simples aumento de salário – isoladamente – não resolve os problemas sociais e estruturais da população, pois os recursos advindos dos salários são rapidamente absorvidos pelo custo do transporte, dos serviços (água, energia, comunicação) e da moradia, por exemplo. Com isso, a autora aponta que uma das alternativas à crise urbana reside na gênese da disputa pelo fundo público, ou seja, na luta entre as classes, por isso ela propõe alternativas de organização política em torno das pautas como a da reforma urbana, que tem um caráter mais estrutural.

David Harvey (2014), ao revisitar a tese de Lefebvre sobre O direito à cidade expõe a interpretação dos fundamentos éticos e políticos dessa concepção, pois para ele, “(…) o tipo de cidade que queremos não se separa da questão do tipo de pessoas que queremos ser” (HARVEY, 2014, p. 28). Assim, mais que o acesso aos bens e serviços produzidos nas cidades, o fenômeno do pauperismo contemporâneo, e consequentemente da população em situação de rua, convoca a todos para o debate sobre o direito à cidade, pois expõe a engrenagem da gigantesca desigualdade social e escancara a concentração de renda. Para Harvey:

O direito à cidade é, portanto, muito mais do que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades, como pretendo argumentar, é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que seja dos mais menosprezados. (HARVEY, 2014, p. 28)

2.3. Cotidiano e Heterogeneidade nas Ruas
Como afirmei no início, o decreto 7.053/2009 representa um avanço. Ao tratar da heterogeneidade o documento tipifica que a população em situação de rua possui em comum: a) pobreza extrema; b) vínculos familiares interrompidos ou fragilizados; e c) inexistência de moradia convencional regular.

Tenho trabalhado com a hipótese de que cidade e cotidiano – como categorias de análise – estabelecem o elo que articula concretamente um conjunto de determinações sociais do qual resulta a heterogeneidade da população em situação de rua. As cidades, como espaço de produção e reprodução da vida social de mulheres e homens, têm suas formas de uso marcadas pela cultura e pelo tempo histórico. Ao mesmo tempo, o cotidiano é a dimensão insuprimível da vida. É nele que produzimos e reproduzimos culturalmente nossos valores morais, éticos e estéticos. É na vida cotidiana que nos constituímos como sujeitos singulares.

Como busquei apresentar acima, é na cidade, formada por relações sociais, com seus conflitos e contradições, que aparecem e são vividas as expressões da desigualdade social, sobretudo publicamente, e no cotidiano – que tanto forma a cidade como nela é formado – que os sujeitos realizam as atividades fundamentais que marcam a (re) produção de sua singularidade, o que inclui também, e talvez especialmente, sua própria construção subjetiva, suas vinculações afetivas, sua condição psíquica, uma vez que a singularidade implica em impressões digitais únicas e irrepetíveis, dotadas de marcas objetivas e subjetivas que se fazem em relação e que são necessariamente tecidas socialmente.

Para compreender a heterogeneidade é preciso um mergulho no desvendamento do cotidiano de quem vive nas ruas nos seus múltiplos componentes – o uso de “drogas”, as formas arranjadas para a garantia da sobrevivência, a saúde física e mental, as particularidades de gênero e de raça, a orientação sexual e idade, as dificuldades para conseguir um emprego, as rupturas dos vínculos afetivos, entre tantos outros – com os quais se deparam intensamente os/as trabalhadores/as dos serviços que atendem a esse público. Lancetti (2015) testemunha a importância da plasticidade psíquica como componente imprescindível para profissionais da saúde que acolhem a população vulnerabilizada pela condição de rua, sobretudo aquela que faz uso abusivo de substâncias psicoativas, em suas palavras:

Mas a constante mudança de situações, ora repetitivas, ora explosivas, as diversas crises que os profissionais acolhem, o encontro com histórias de vidas terrificantes ou situações de horror tornadas habituais ou banalizadas exigem plasticidade psíquica e um outro olhar. (LANCETTI, 2015, p. 62)

Há momentos no atendimento das pessoas em situação rua em que a gente se pergunta: Como suportam? Como aguentam viver dessa maneira? O padre Julio Lancelotti, em uma das muitas entrevistas que concedeu, ao falar sobre sua experiência de vivência diária com a população em situação de rua, afirmou “(…) nem demonizar, nem idealizar”, e eu acrescentaria: trate-os como pessoas que têm seus vícios e suas virtudes, trate-os como sujeitos de direitos. Quando abrimos a escuta para as pessoas em situação de rua, temos a convicção de que o padre tem toda a razão.

Já ouvi muitas histórias. Já senti raiva, medo e compaixão. O trabalho com pessoas em situação de rua mobiliza muitos afetos. Vibramos com as suas conquistas, lamentamos as suas recaídas, nos insurgimos contra as violações de direitos a que estão cotidianamente submetidos.

É na convivência cotidiana que notamos a importância das políticas públicas estruturais e o impacto da ausência delas, mas, também, é no trabalho do dia a dia que notamos a magnitude das pequenas ações profissionais, a importância da delicadeza no atendimento. Fazer um simples currículo, por exemplo, pode mobilizar tantas exigências, tantas camadas de ausência, que a angústia passa a determinar a subjetividade desses sujeitos. Não ter um telefone de contato, se sentir inseguro ao colocar o endereço do centro de acolhida, lembrar-se que perdeu todos os comprovantes, pensar nas lacunas de tempo entre trabalhos, além das demais perdas. Em geral, são nessas lacunas de tempo que a vida foi se esvaindo. Entrar em contato com tudo isso cobra um preço, movimenta afetos construtivos e destrutivos. Como se pode ver, para conseguir o trabalho não é necessário apenas desejo e vontade: são necessárias condições objetivas e subjetivas para se lançar competitivo no mercado de trabalho. Por outro lado, a própria reestruturação produtiva neoliberal ampliou e modificou radicalmente as condições de trabalho e de sua reprodução e, com isso, parcelas da população ficaram à mercê da violência do capital para extrair mais valor. O trabalho é uma das dimensões, e são tantas.

Na cidade de São Paulo o Censo Rua vem sendo realizado com alguma regularidade – 2000, 2003, 2006, 2007, 2009, 2011, 2015, 2019 – segundo informações da prefeitura, e o próximo será antecipado em virtude da crise pandêmica e do aumento do número de pessoas em situação rua. Além das principais variáveis censitárias, tais como idade, sexo/gênero, raça/cor, localização e tempo de rua, como anteriormente, se fará uma pesquisa amostral qualitativa e desenvolvida com um grupo menor. É por meio desses dados que se chega a informações mais precisas sobre o perfil heterogêneo dessa população.

O último senso revelou, por exemplo, que 386 pessoas que estão em situação de rua são transexuais. Quais políticas estão sendo pensadas para este público a partir das suas necessidades singulares? Sabe-se que a intolerância, a violência e o preconceito são constantes em suas existências. O site Universa UOL resgatou a história de vida de algumas dessas mulheres trans que estão em situação de rua. Em sua maioria, a intolerância da família foi o principal motivo que as levou para a condição de rua.

Ainda no tocante à heterogeneidade, gostaria de chamar atenção para os dados do Censo Rua (2019) que apontam “os motivos” pelos quais as pessoas encontram-se em situação de rua. Dos entrevistados na Pesquisa Amostral do Perfil Socioeconômico: 40,3% indicam conflitos familiares como principal motivo; seguido de 23,1% que declararam perda do trabalho; 19% disseram que foi em decorrência do uso de drogas ilícitas; 14,3% disseram que a dependência do álcool ocasionou a ida para as ruas; e somente 12,9% afirmaram que foi ausência de moradia. Como se pode notar, não há uma distinção entre os motivos materiais (emprego, moradia) e os motivos imateriais (relações interpessoais, condição subjetiva).

Por esta razão, é interessante olhar para esses dados criticamente. O maior índice, isoladamente, corresponde aos “conflitos familiares”, 40,3%. Se somarmos o “uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas” – que no gráfico do relatório aparecem separadas – o percentual é de 33,3%. Agora, se somarmos a “perda do trabalho” com a “ausência de moradia” o percentual é de 36%.

Ainda que o relatório produzido pela Qualitest desenvolva e problematize o item “vínculos familiares”, trazendo dados sobre as relações interpessoais anteriores à condição de rua, eu quero dar destaque para dois aspectos que tomo como fundamentais e que expressam o quanto o perfil heterogêneo da população em situação de rua é complexo, do mesmo modo que o principal motivo aludido – conflitos familiares – pode ser evasivo se for melhor analisado.

O primeiro aspecto corresponde à fragmentação dos dados, são 16 itens no campo “motivos”, ainda que eu reconheça a importância de dar visibilidade às razões dadas pelas pessoas em situação de rua, ressinto a ausência de uma leitura mais articulada por parte dos pesquisadores, pois os dados materiais e imateriais são tratados da mesma maneira. O segundo aspecto ao qual quero dar destaque é um desdobramento deste primeiro, 36% disseram que estão nas ruas por “perda de trabalho” ou “ausência de moradia”, isso significa que essas pessoas sabem, objetivamente, que sua condição social é determinante para a estabilidade ou a precariedade em suas vidas.

Com isso, defendo a hipótese de que se a ausência de trabalho formal, a falta de moradia e os conflitos familiares estão entre os principais motivos declarados por essa população como razões que a leva a permanecer nas ruas, o fenômeno população em situação de rua tem suas raízes no aprofundamento da pobreza, fruto da profunda desigualdade econômica e social, como mostrei anteriormente. Por isso, é necessária e urgente sua “desnaturalização”. E mais, houvesse condições estruturais, por meio de uma diversificação da oferta de moradia e um incremento de políticas públicas estruturantes (trabalho, renda, saúde, educação, assistência social), ainda que as pessoas tivessem seus conflitos interpessoais ou problemas relacionados ao uso abusivo de substâncias psicoativas, por exemplo, elas não precisariam viver na indigência. Por essa razão, o não ter onde morar está no centro da discussão. Se os motivos são diversos e as pessoas diversas, a oferta e os modos de morar também deveriam ser diversos. Por isso, a massificação e homogeneização das alternativas de abrigamento da população em situação de rua são um caminho estéril que reproduz violências e traumas. Como afirmei em outro artigo sobre o tema:

Essa população expõe as vísceras do sistema; revela toda a crueldade da concentração de renda; expõe a insustentabilidade do capitalismo financeirizado e, por fim, revela a desumanidade e frieza da sociedade brasileira, tradicionalmente retratada pela ideologia oficial como “gentil” e “hospitaleira”. (ALMEIDA, 2019)

Por esse ângulo, é preciso que a população em situação de rua deixe de ser uma “personagem” que compõe a paisagem da cidade, é urgente denunciar o “mito” de que as pessoas estão nessa situação por contingências exclusivamente pessoais. Em momentos de múltiplas crises agudas, como a que estamos vivendo agora, em virtude da pandemia da covid-19, em que temos um contingente cada vez maior de pessoas caídas pelas calçadas, a sociedade precisa cobrar respostas dos governos.

2.4. Não Tenho Casa para Ficar em Casa: Pandemia e Miséria
Como busquei mostrar até aqui é urgente explicitar as raízes do fenômeno população em situação de rua, e penso ser imprescindível, para todos aqueles que buscam compreender as razões que levam milhares de pessoas a viverem de maneira precária e degradante, uma análise que faça a articulação entre as dimensões objetivas e subjetivas. Nessa perspectiva, é preciso compreender que tal fenômeno é resultado da organização econômica, política e social do capitalismo. Portanto, trabalho e moradia são elementos prioritários. A experiência cotidiana revela que é preciso diversificar as formas e os arranjos produtivos, assim como as formas de morar.

De maneira mais direta, a pessoa em situação de rua é, por definição, uma pessoa que não tem onde morar. O esvaziamento político e ideológico do sentido – estar na rua – provoca uma cortina de fumaça que impede a sociedade de pensar no óbvio, ou seja, se está morando na rua é porque não tem onde morar. Por isso, é necessário diversificar os sentidos e as formas do morar, como por exemplo: aluguel social, república, moradia assistida, entre outros.

Historicamente as alternativas para o acolhimento da população em situação de rua têm sido os “abrigos” ou “centros de acolhida”. Em geral, são locais que recebem um enorme contingente de pessoas. Lamentavelmente, alguns assumem as características de verdadeiros depósitos de gente. Em sua grande maioria, esses espaços não estão estruturados para execução de um trabalho social pormenorizado e individualizado, que leve em consideração, por exemplo, o resgate de projetos de vida de maneira singular.

Como afirmei anteriormente, a aprovação do decreto que institui a Política Nacional da População em Situação de Rua trouxe avanços inexoráveis, mas lamentavelmente acompanha um conjunto de outras políticas sociais que não são implementadas na sua totalidade.

O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas) possuem em suas estruturas e tipificações um conjunto considerável de serviços específicos para o atendimento da população em situação de rua, no entanto, a lógica asilar e manicomial ainda são entraves ideopolíticos.

Na atual conjuntura, as políticas hegemônicas para a população em situação de rua que faz uso abusivo de substâncias psicoativas são um bom exemplo disto. Amparados pelo dado de que 33,3% desta população declara estar na rua por fazer uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas, constroem-se respostas em que o aspecto “drogadição” é isolado dos demais. Ou seja, o modelo conservador, atualmente entronizado no comando do país, se reatualiza e a velha política higienista de confinamento, pautada pela lógica asilar e manicomial ganha destaque, justificando e legitimando a internação compulsória como principal alternativa. Com isso, temos visto a massificação dos investimentos públicos em comunidades terapêuticas religiosas em detrimento do investimento financeiro nos equipamentos públicos estatais do SUS e do Suas.

O Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), assim como outras entidades sociais de apoio, têm avançado nesta direção e assumiram como principal reivindicação a concepção do housing first, ou na tradução em português, “casa primeiro”.

A proposta tem como núcleo central a ideia de que primeiramente é necessário acessar uma moradia estável e que, a partir disso, as demais demandas e necessidades da vida social podem ser organizadas de maneira mais estruturada. Em 2019, foi divulgada a importante publicação: É possível Housing First no Brasil?: experiências de moradia para população em situação de rua na Europa e no Brasil, cujos autores Luiz Tokuzi Kohara, Maria Teresa Duarte e Marina Moreto tratam de um estudo iniciado em 2013 e finalizado em 2018 que teve como objetivo:

(…) observar mais atentamente o funcionamento do Housing First europeu, reconhecer as iniciativas brasileiras que seguem estas ideias e difundi-las em âmbito nacional, incentivando uma transição do modelo em que, em geral, a moradia é o último “degrau” do atendimento da população em situação de rua para um modelo onde a habitação, o trabalho e a emancipação das pessoas passam a ser o foco das políticas públicas para esta população. (BRASIL, 2019, p. 20)

A pandemia da covid-19 adensou os históricos, complexos e difíceis desafios de estruturação de políticas públicas para a população em situação de rua. A ampliação da miséria é alarmante e o retorno da fome é hoje uma realidade em todo país. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, em agosto de 2021, o impressionante dado de que o desemprego atinge 14, 4 milhões de brasileiros e que a renda média caiu 6,6%. Em muitas cidades é possível notar o empobrecimento em massa.

A partir disso, o Ipea demonstra através de dados que o aumento significativo de pessoas em situação de rua exigirá dos governos respostas rápidas. Por meio da nota técnica nº 7424, de junho de 2020, elaborou um texto com o seguinte objetivo:

(…) identificar as principais iniciativas municipais em curso para o enfrentamento dessa realidade, discorrer sobre a qualidade, quantidade e oportunidade das ações realizadas, bem como sugerir recomendações para sua implementação ou aprimoramento. Para tanto, foi realizada pesquisa documental em sites governamentais sobre tais iniciativas tendo como escopo de análise as capitais das regiões Nordeste e Sudeste. (Ipea, 2020)

Ao mesmo tempo, a sociedade brasileira assiste ao aumento da miséria e ao retorno da fome em todo o país. Enquanto eu redijo esse texto um fato emblemático ganha destaque na mídia. Uma mulher de 41 anos, mãe de cinco filhos é presa por furtar Coca-Cola, Miojo e suco em pó de um supermercado na zona sul de São Paulo. Ao ser presa ela declarou: “Roubei porque estava com fome”. O debate judicial girou em torno do conceito de “princípio da insignificância”25. A sociedade respondeu de maneira incrédula à severidade da lei diante de um crime de tão baixa periculosidade. A mulher ficou presa por 18 dias. Os itens furtados somam o valor de R$ 21,69. No dia em que saiu da prisão ela declarou: “Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã”. Rosângela Sibele é uma pessoa que está há dez anos em situação de rua, está desempregada, faz tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps/AD). Na entrevista concedida ela declara: “Eu não queria, não estou acostumada, não queria fazer. Eu só estava com muita fome, queria muito comer um miojo, estava doida para tomar um leite condensado e um refrigerante gelado. Não tenho dinheiro para isso”.

Assim, a crise sanitária mundial tem evidenciado a insustentabilidade do modo de vida constituído pela racionalidade neoliberal, que se impõe como sociabilidade e imprime o mal-estar do nosso tempo. Os sintomas sociais desse processo são vivenciados cotidianamente: a profunda e estruturante desigualdade social, as condições de vida e trabalho precários e a radicalização do ódio ideológico conflitam com a necessidade imperiosa de atitudes fundamentalmente éticas, coletivas, altruístas, solidárias e radicalmente humanitárias para enfrentar o período pós-pandêmico e, também, os desdobramentos das lutas políticas e econômicas contra os direitos sociais.

3.População em Situação de Rua e Envelhecimento: Alguns Apontamentos
Como se pôde notar até aqui, não há respostas simples para problemas complexos. O fenômeno população em situação de rua desafia os poderes públicos, assim como convoca e mobiliza a sociedade a pensar sobre o futuro da sociabilidade nas cidades brasileiras. Além de suportar condições de vida completamente incertas, a população em situação de rua convive com o “despreparo” e o “desconhecimento” por parte dos poderes municipais.

Fruto de constantes análises e intervenções generalizadoras, a característica mais acentuada dessa população, qual seja, sua heterogeneidade, é ignorada. Ao elaborar políticas públicas para a população em situação de rua é necessária uma profunda articulação entre as dimensões individuais e coletivas que se reproduzem no cotidiano das cidades. Quero reafirmar com isso que os sujeitos são únicos, portadores de histórias singulares. Portanto, qualquer política pública massificada, que não articule as dimensões coletivas e singulares e, ainda, que tenha um caráter imediatista está fadada ao fracasso.

No tocante à condição de vida dos idosos é imprescindível acender o alerta. A questão mobiliza a seguinte pergunta: é possível envelhecer nas ruas? Sabe-se que o estado de saúde da população em situação é muito precário. Mendes, Chagas e Penna (2020), com base em dados epidemiológicos, revelam como os marcadores sociais são determinantes no processo saúde-doença da população em situação de rua.

No que se refere às questões do envelhecimento nas ruas, ainda são incipientes os materiais técnicos que tratam do assunto. Se a população em situação de rua de maneira geral é invisibilizada, sua população idosa o é duplamente. Em 2012, o Ministério da Saúde lançou o Manual sobre Cuidado à Saúde junto à População em Situação de Rua, nesta publicação não há qualquer menção às particularidades da condição de saúde das pessoas idosas. Em 2014, um outro documento foi publicado pelo mesmo ministério: Saúde da População em Situação de Rua: um Direito Humano, neste, a palavra “idoso” sequer foi mencionada. O fato revela a necessidade de ampliar o campo de pesquisa sobre o tema.

Ainda que esteja desatualizado, o último Censo Rua de São Paulo (2019) constatou que das 24.344 pessoas em situação de rua, 2.211 tinham mais de 60 anos, destas 1.801 estavam em centros de acolhida e 410 viviam na rua. Do total de idosos em situação de rua, 1.943 eram homens e 266 eram mulheres, destas, 9 identificaram-se como pessoas
transexuais. O número de mulheres idosas acolhidas era de 214, e 51 estavam na rua. Um outro fator merece destaque, a população idosa em situação de rua é preta. Do total de 2.211 idosos, 1.221 declararam-se negros ou pardos, 768 se declararam brancos, 310 são indígenas e 165 declararam-se amarelos.

Embora os dados dos idosos acompanhem os marcadores da situação geral da população em situação de rua, é intolerável não pensar nas particularidades e singularidades desses sujeitos. Todo trabalho teórico e científico produzido até hoje por esta revista, por exemplo, tratou da fundamental importância em discutir a problemática do envelhecimento, e de como a longevidade está diretamente associada à qualidade vida, nesse sentido, como não pensar na negligência do Estado com essa população que deveria ter seus direitos assegurados por meio da lei que regulamenta o Estatuto do Idoso?

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é garantido aos idosos carentes acima de 65 anos. As Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) são garantidas àqueles com idade acima de 60 anos. A população em situação de rua tem acesso e igual condição de oportunidades que a população que não está em situação de rua?

No Brasil, as pessoas acima de 60 anos são consideradas pessoas idosas. Já a População Economicamente Ativa (PEA) é a parcela entre 15 e 65 anos. Em minha experiência cotidiana tenho acolhido pessoas em situação de rua que “envelhecem” – no sentido depreciativo da palavra – antes mesmo de completarem 55 anos. Muitas dessas pessoas
possuem uma saúde tão debilitada que a expectativa de vida é muita reduzida. Por esse ângulo, não acolher as especificidades e vicissitudes da condição de rua é não garantir o direito ao envelhecimento saudável.

Conheci uma senhora de 64 anos que experimentou crack pela primeira vez aos 52 anos, durante um surto psicótico. Aos 57 anos, muito fragilizada, ela foi morar na rua. O vínculo afetivo com os filhos e com os demais membros da família, que por sua trajetória já eram muito fragilizados, foram deveras interrompidos. Emagrecida, psicótica e sozinha ela contava apenas com o apoio dos trabalhadores da saúde e da assistência social. Assim como a família a desprezara, ela também não nutria nenhum desejo de estar com eles. Durante os atendimentos era sempre muito prestativa e cuidadosa com as relações constituídas institucionalmente. Ela não teve empregos formais, portanto direitos previdenciários não lhe eram assegurados. Não cultivava nenhuma amizade antiga. Parecia ter cindido definitivamente quando foi morar na rua. Essa mulher não era idosa “formalmente”, mas vivia como tal. Sua precariedade simbólica e material eram expressivas. Um dia ela me disse que antes de dormir sempre pensava que talvez não houvesse na cidade nenhum lugar para ela. A sensação de inadequação dessa mulher idosa é o flagrante de como “a cisão” pode = ser representada por essa cidade que não ampara e não acolhe os seus filhos. Haverá futuro para quem vive nas ruas das cidades brasileiras?

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