“(Entre Parentes): Narrativas Indígenas Ilustradas” é um projeto do Sesc Osasco realizado ao longo do ano de 2022 e reuniu 24 escritores e ilustradores indígenas contemporâneos de diferentes etnias.
A partir de 12 narrativas ilustradas inéditas, o público pôde participar de encontros virtuais para falar dos textos e das artes produzidas, com a participação dos próprios artistas. O projeto teve curadoria de Daniel Munduruku e Mauricio Negro.
A iniciativa tem o objetivo de estimular a produção dos artistas e permitir o acesso e a difusão dessa produção ao público leitor brasileiro. Abaixo, é possível ler os textos na íntegra, assim como apreciar as ilustrações.
No mundo encantado das águas – Kali e Taiwano
Texto: Rosi Waikhon | Ilustração: Alexandra Tupi Krenak
A ciranda da roça – Zakap
Texto: Kamuu Dan Wapichana | Ilustrações: Gustavo Caboco | Tradução: Nilzimara de Souza Silva
A irmandade de um tudo que é parente
Texto: Kanátyo Pataxoop | Ilustração: Dona Liça Pataxoop
Medicina da memória ancestral do povo Tabajara de Ipueiras
Texto: Auritha Tabajara | Ilustração: Carmézia Emiliano
Um guardião lendário e a origem dos peixes
Texto: Ariabo Kezo | Ilustração: Cleomar Myahu Tan Huare
Cosmogonia Omágua
Texto: Márcia Wayna Kambeba | Ilustração: Ibã Huni Kuin
Encantaria
Texto: Lucia Morais Tucuju | Ilustração: Uziel Guaynê e Jonas Estevam Malakuiawá
NŨKŨ WIÍMŨ – O romance de Yukʉdʉka Mahsu
Texto: Jaime Diakara Dessana | Ilustração: Bu´u Kennedy
O nó do Mourão
Texto: Juvenal Payayá | Ilustração: Denilson Baniwa
Mulheres indígenas em luta!
Texto: Eliane Potiguara | Ilustração: Moara Tupinambá
O peixe e a criação de Tope
Texto: Vãngri Kaingáng | Ilustração: Arissana Pataxó
A astúcia do Pino
Texto: Darlene Yaminalo Taukane | Ilustração: Naine Terena
Texto: Rosi Waikhon
Ilustração: Alexandra Tupi Krenak
Kali era uma moça muito bonita, que vivia com os pais no mundo encantado das águas, onde dificuldades e tristezas inexistiam. Certo dia, ainda assim, foi contar a eles a decisão de partir daquele lugar pacífico e misterioso.
– Kali, minha filha – eles lhe disseram –, você tem certeza de que deseja deixar para trás toda essa beleza na qual estamos imersos?
– Meus pais, sinto um desejo forte de conhecer outros mundos. Quero encontrar pessoas diferentes. De coração, preciso mesmo fazer isso. Mas prometo voltar, sã e salva.
No passado, nas noites de lua cheia, os habitantes das águas procuravam participar das festas em terra firme. Mas a gente da terra não os aceitava. Sentiam repulsa pelas criaturas aquáticas marinhas, guardavam distância do seu universo extraordinário, temiam feitiços.
Por meio de encantamentos, os pajés decidiram fechar os caminhos de acesso à terra. Criaturas aquáticas eram facilmente reconhecidas pela pele e pelos cabelos. A poderosa pajelança fez a gente das águas perder o rumo.
Kali, filha única, desde criança sonhava conhecer outros mundos e gentes. Pôde, enfim, fazer isso. No dia marcado, despediu-se dos pais e partiu. E chegou ao mundo terrestre, sem chamar a atenção. Ela emergiu das águas na ponta de uma praia. Deixou suas pegadas na areia e por uma trilha chegou à mata. Primeiro, ouviu risadas infantis. Mais adiante, escutou os mais velhos conversando. Aproximou-se de uma grande maloca.
No interior da casa de palha, ela ouviu mais risadas e vozes femininas. Kali as espionava quando foi fl agrada pelas crianças que ali brincavam, e elas correram para contar aos mais velhos que tinham visto uma moça bonita e diferente, achegada à maloca. Os velhos foram logo conferir. Kali ali ficou, quieta e paralisada. Todos se espantaram com a estranha. Foi então que o cacique se pronunciou:
– Alguém deve ser responsável por essa aparição. É por isso que nossos antepassados sempre recomendaram jamais contrariar os conselhos dos pajés.
Ao seu redor, todos cochichavam, desconfiados de que alguém na aldeia tivesse feito algo errado na maloca. Como estavam reunidos, o cacique perguntou:
– Alguma das moças desceu para o rio sem a defumação de ervas de proteção do pajé? O silêncio foi total.
O pajé prosseguiu:
– Será que alguém comeu pupunha fria?
De novo, não houve resposta.
Naquela aldeia evitavam comer certas espécies de frutos frios, pois acreditavam que se a regra fosse quebrada despertariam a fúria dos deuses dos frutos, que então os condenariam a viver no mundo encantados das águas. Estavam amedrontados. E o pajé continuou:
– Não é verdade! Alguém deve ser o responsável, precisamos nos reunir, vou chamar todos os pajés e investigar o que está acontecendo.
Em seguida, pediu para que alguns membros da maloca chamassem os pajés das redondezas, e assim foi feito. Enquanto isso, Kali continuava quieta, observando a tudo e a todos, fora da maloca. Assim que os pajés chegaram, a cerimônia com ervas começou, resina e breu para a defumação. Todos foram purificados pela fumaça, mas não conseguiram constatar nenhum transgressor na maloca.
Segundo a tradição, a aparição de uma moça branca de cabelos negros e longos era sinal de morte para quem a encontrasse, porque pessoas com tais características pertenciam ao mundo dos encantados das águas. Os seres das aldeias do fundo do rio eram considerados perigosos pelos habitantes do mundo encantado da floresta. Para os últimos, aquele tipo de gente aparecia somente para quem não fosse protegido pelos encantamentos dos pajés.
A questão era encontrar uma explicação para o aparecimento da bela Kali naquela maloca. Algo tão difícil, que o único modo que encontraram para lidar com o medo dos castigos da moça encantada foi transformá-la em um deles. Por isso, os pajés encaminharam a moça para a cerimônia de transformação. Colocaram-na sentada no meio da maloca. Primeiro defumaram o seu corpo com resina de breu. Depois lhe deram um banho com ervas perfumadas. Por fim, recebeu frutas benzidas para comer. Assim Kali foi preparada para viver na maloca.
No início, alguns membros da maloca não aprovaram a ideia. Com o tempo, é claro, acabaram se acostumando. A jovem vivia feliz com aqueles humanos, sempre respeitando suas tradições, pois os efeitos dos encantamentos fizeram com que Kali se esquecesse totalmente do mundo das águas.
Na maloca viviam muitas moças e rapazes bonitos. Certo dia, as moças começaram a se incomodar com a presença de Kali, porque ela mexia com os corações dos rapazes. Entre tantos, havia Taiwano, que também se deixou seduzir por ela. Era um jovem lindo, o mais cobiçado entre as mulheres. Os dois logo se sentiram atraídos e começaram a namorar. Taiwano, tocando sua fl auta, gostava de passear pelas praias na companhia de Kali. Com o instrumento emitia notas suaves, que a deixavam muito feliz.
Tudo ia bem, até que as outras moças começaram a inventar histórias sobre Taiwano. Diziam a Kali que ele tinha outras mulheres. Até que um dia, cansada dos comentários das outras jovens, Kali resolveu partir sem deixar pistas. Numa noite de luar, enquanto todos dormiam, saiu lentamente. Por alguns minutos, fitou Taiwano e, em seguida, tomou seu caminho. Foi muito doloroso partir.
Ao amanhecer, Taiwano notou a ausência da companheira. Assustado, saiu à sua procura. Perguntou aos velhos, aos jovens e às crianças se alguém a tinha visto, mas ninguém sabia de seu paradeiro. Taiwano decidiu percorrer o mundo dos humanos em busca de sua querida Kali. Visitou dezenas de aldeias, em busca de notícias. Após vencer rios e mares, desapontado, regressou ao mundo encantado da fl oresta. Lá onde tudo era felicidade. As árvores, os insetos, os animais, as aves, todos falavam sem parar, mas quando avistaram Taiwano, ficaram em silêncio.
Foi quando Tawali, o pássaro animador, se aproximou:
– Caro jovem, eu percebo sua dor. Se você quiser matar das saudades da sua amada, procure por Téewa, a Avó dos Urubus. Ela o ajudará a chegar na aldeia de Temendawi, onde Kali se encontra.
Ao terminar a frase, a ave voou em disparada. Taiwano pediu que voltasse, mas Tawali desapareceu. Seja como for, aquele conselho o motivou ainda mais a procurar Kali.
No mundo encantado das florestas, as folhas ajudaram Taiwano a chegar até a caverna onde vivia Téewa, a Avó dos Urubus. Assim que a encontrou, contou a história de como tinha procurado sua companheira, sem sucesso, por todos os lugares humanos. A única notícia que colheu no mundo da floresta, foi que Kali estaria na aldeia de Temendawi.
Depois de ouvir a narrativa toda, a ave Téewa lhe disse:
– Existem várias aldeias no mundo encantado das águas, mas nunca ouvi falar de Temendawi. Ainda assim, talvez meus netos possam ajudá-lo.
Pediu, então, que o jovem aguardasse. Os seus netos costumavam chegar ao entardecer. A tarde se aproximou. Os grilos e outros bichinhos da noite começaram a cantar. E não demorou para aparecer o primeiro neto. Era um Urubu Branco, imenso, que pousou na entrada da caverna. A velha lhe contou a história de Taiwano e perguntou ao neto se ele conhecia a tal aldeia.
– Não conheço, não – respondeu o Urubu Branco. – Nunca ouvi falar desse lugar.
Diante do comentário, Taiwano se abateu. Mas a avó Téewa logo o animou, ao anunciar:
– Meu jovem, não desanime. Tenho outro neto, vamos aguardá-lo.
E assim fizeram. Após uma longa espera, apareceu um Urubu Marrom, o segundo neto, que interpelado pela avó, assim respondeu:
– Percorro o mundo de Norte a Sul, conheço milhares de aldeias. Eu jamais ouvi falar da existência de uma aldeia chamada Temendawi.
Taiwano sentiu-se ainda mais triste. E a Avós dos Urubus então lhe disse:
– Bem, agora só resta o terceiro neto chegar. Se ele nada souber sobre Temendawi, será mesmo melhor esquecer essa moça e recomeçar uma nova vida. Existem muitas outras jovens bonitas e de bom coração. O meu neto que falta chegar é trabalhador e tem um ótimo temperamento. Todas as pessoas que o conhecem gostam muito dele. Por onde passa, ajuda quem precisa. Não pousa em um único lugar, tem afazeres por toda parte. Por isso mesmo, costuma chegar quando já anoiteceu. Temos que ter paciência.
Já estava um breu quando aterrissou o último neto. Taiwano ficou admirado com o tamanho dele. Era um urubu bem maior do que os anteriores, tinha penas bonitas, pretas e brilhantes. Assim que pousou, Taiwano reparou que ele caminhava lentamente, devido a um ferimento em uma das pernas. Como de costume, sua Avó o recebeu muito bem, e se aproximaram. Uma vez mais, contou toda a história de Taiwano. O Urubu a ouviu com atenção e por fim se pronunciou:
– Eu conheço todos os lugares desse e de outro mundo, e visito todos diariamente. Quanto à aldeia Temendawi, também sei onde fica, porque a visito todo dia.
Com o coração palpitando forte, Taiwano o questionou:
– Mas essa aldeia fica muito distante daqui?
– Sim, fica muito longe – respondeu o gigantesco Urubu –, por isso mesmo, tardo a voltar para casa. Amanhã será um dia especial por lá, a filha do cacique vai se casar. Terá muita gente, com certeza, porque a comida será farta. Se você quiser ir, pode ir comigo. Mas é bem distante mesmo.
Taiwano não titubeou:
– Sim, eu quero! Não importa o tempo que dure a viagem!
– Então, você terá que matar duas antas e encher dois potes grandes de água – orientou o Urubu. – Depois, durante a viagem, quando eu pedir água você me dará carne e quando eu disser carne, me dará água. Se errar, eu te jogo lá do alto.
Taiwano prestou atenção e foi providenciar os pedidos do Urubu. No dia seguinte, estava pronto tudo. Quando se reencontraram, ele lhe explicou:
– São sete mundos para chegar até lá. Por cada mundo que cruzarmos, terá que fechar os olhos.
Assim que terminou a explicação, Taiwano montou no Urubu e deram início à longa viagem. Quando passavam por um mundo, o Urubu pedia e Taiwano cerrava os seus olhos. Quando restavam apenas dois mundos, o estoque de carne estava quase no fim, mas o Urubu continuava a pedir: – Mais água! Carne! Carne! Água! Taiwano atendia atento seus apelos, até que finalmente ouviu do Urubu:
– Agora feche muito bem os olhos, porque este é o último dos mundos.
Sempre que se aproximavam de um mundo, soava um barulho estranho, como o ranger de portas enormes. No último deles, o barulho foi tão intenso que Taiwano sentiu muito medo. Quando ultrapassaram o derradeiro mundo, já não restava um pedacinho de carne sequer. Taiwano não sabia como resolver o impasse. Afinal, se não atendesse ao Urubu, morreria. E ele persistia:
– Mais água!
Sem outra alternativa, o jovem começou a cortar nacos de carne da sua própria coxa. E, a cada pedido, foi se retalhando mais, até sobrar quase nada. Foi quando a majestosa ave disse: – Agora estamos perto. Podemos até avistar a pequena aldeia. Chegaremos em algumas horas.
E assim foi. Taiwano avistou um descampado e o Urubu pousou no local, ainda bem distante da aldeia. Tão logo o jovem botou os pés no chão, o pássaro o aconselhou:
– Chegamos. Agora pode ir aonde quiser. Ficarei por aqui mesmo à espera de comida.
Só que Taiwano não conseguia mais andar. O Urubu, surpreso, perguntou o que tinha acontecido. E o jovem respondeu:
– Fiquei com medo de que você me jogasse lá de cima. Quando a carne terminou, cortei a minha própria e a dei a você.
– Mas por que não me contou? – retrucou o Urubu, que em seguida começou a cuspir e a regurgitar a carne ingerida.
Incrivelmente, os retalhos foram se juntando, pedacinho por pedacinho, até recompor a perna de Taiwano. Uma vez recuperado, o Urubu afinal lhe disse:
– Vá, que eu ficarei por aqui.
Obediente ao Urubu, Taiwano partiu rumo ao centro da aldeia. Aproximou-se de uma pracinha e ali se sentou. Muitas criancinhas corriam alegres e uma delas percebeu aquele velhinho desconhecido na aldeia. Tinha sido mesmo uma longa viagem. Ele era incapaz de perceber, mas a velhice já havia tomado conta dele. É assim que acontece no mundo dos humanos. As crianças se aproximaram e fizeram suas perguntas:
– Vovô, o que está fazendo aqui? Por que está triste?
Espantado ao ser chamado de vovô, Taiwano se explicou:
– Há muito tempo estou à procura de uma moça, sem nunca a encontrar. É por isso que estou triste.
– Hoje à noite vai acontecer o casamento da filha do cacique, e muitas moças estarão presentes – replicaram as crianças. – Talvez o senhor possa encontrá-la lá. Quer ir conosco?
Taiwano aceitou o convite e aguardou o anoitecer. E, assim, foi com as crianças à morada do cacique. Era uma casa muito bonita e grande, com dois andares. No superior, ficavam os convidados ilustres. O velho Taiwano ficou no andar de baixo, assim como a maioria. Em Temendawi era costume fazer festa antes da cerimônia de casamento. E uma festa realmente acontecia lá em cima. Em oposição, no andar debaixo, a reunião estava bem desanimada. As crianças perguntaram ao velho se ele sabia tocar algum instrumento.
– Sim, quando jovem eu tocava flauta – suspirou Taiwano.
Imediatamente providenciaram uma flauta e, com ela, o velho começou a animar a festa. O clima fi cou tão contagiante que fez os convidados ilustres descerem. Permaneceram no andar de cima somente a família do cacique e seus membros. Contrariado, o cacique pediu a alguém que fosse averiguar o que estava acontecendo. O enviado, ao pé da escada, notou um velhinho a tocar e animar as pessoas. Após ser informado, o cacique pediu que fossem buscar o tal sujeito imediatamente, que ele devia estimular a festa no andar superior.
Quando se aproximou do cacique, Taiwano a viu. Sim, a filha do líder era a sua Kali! Finalmente a tinha encontrado. E ela parecia jovem e radiante. É claro que ela não o reconheceu. Sentiu-se muito inquieto com aquela situação. E então, teve uma ideia. Com sua flauta, tocou a música mais íntima do tempo que namoravam.
Tão logo ouviu aquela melodia, Kali não teve dúvidas. Avisou o pai que não queria mais se casar com o noivo prometido. E que ele precisava ajudar, de algum modo, Taiwano a recuperar a juventude. O cacique compreendeu, concordou com a filha e de imediato providenciou uma bebida secreta que Kali deveria oferecer ao velho, para que recuperasse o vigor da mocidade.
Bastaram alguns goles e, mais uma vez jovem, Taiwano se casou com Kali e foi viver com sua companheira no mundo encantado das águas.
Da aldeia no mundo dos humanos, apenas um sábio pajé, com seus poderes, conhecimentos e rituais, consegue ainda hoje avistá-los e partilhar esta história com sua gente.
Rosi Waikhon é indígena do povo Waíkhana, mais conhecido como Pirá-tapuya (gente-peixe). Brasileira, poetisa, cientista, bióloga, escritora. É mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), licenciada em Ciências Biológicas pela mesma Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Doutora no programa de pós-graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora no Núcleo de Estudos de Populações Indígenas (NEPI). Atua em defesa do Território Indígena do Alto Rio Negro (Amazonas, Brasil), por meio do desenvolvimento de atividades voluntárias comunitárias indígenas na região e apoiando na divulgação. Foi vencedora do 5º Concurso Tamoios de textos de escritores indígenas (FNLIJ/INBRAPI), edição de 2008, com o texto Kali e Taiwano no Mundo Encantado das Águas. Participou da consagrada coletânea Nós: uma antologia de literatura indígena (Cia das Letrinhas, 2019), com o kírtí (reconto tradicional) Yawareté açu, o jabuti e
a onça-pintada.
Alexandra Tupi Krenak é artista plástica, fortemente influenciada pelos sonhos e convivência familiar. Nasceu em Paraibuna, Sã o Paulo, em 1973. Descendente de duas etnias indígenas brasileiras por parte das avó s. Teresa, avó paterna, era Krenak de Minas Gerais. E Jandira, avó materna, Tupinambá do Rio de Janeiro. Com a avó Jandira, durante as férias, aprendeu a reverência pela natureza. Na colheita do jenipapo, a pedir licença à grande senhora, ou melhor, à árvore conhecida como jenipapeiro. Com Teresa, acompanhou o costume de desenhar no terreiro do quintal animais e figuras abstratas geométricas. Aos
quinze quinze anos foi capaz de identificar aqueles desenhos como grafismos tradicionais e também de reconhecer-se como indígena. O pai de Alexandra também desenha e desde sempre a incentiva.
Fez curso técnico completo de Secretariado, de 1991 a 1993, em Sumaré , município paulista onde reside atualmente. Na mesma cidade, entre 1994 a 1997, interessada em desenho, grafite, tecido e óleo sobre tela, fez o curso ministrado pela professora Vânia Vasconcellos. Sua primeira exposição etnológica e ambiental ocorreu no mês das mulheres, em 1998. No mesmo ano, participou da coletiva do projeto integrart do Banco Itaú , tendo obtido o troféu de melhor artista plástica daquele ano. Participou da exposição de pinturas à óleo sobre tela na Pinacoteca Municipal Dr. Constâncio Cintra em Amparo, São Paulo, em 2001. Em 2010, da coletiva com artistas locais, na Biblioteca Municipal de Sumaré. Em 2014, expôs na mesma instituição a obra O Brasil de Alexandra Krenak.
De 2014 até 2018 exerceu uma série de outras atividades e serviços, tendo trabalhado na área de vendas, ensino de artesanato e atendimento. Foi a partir de 2018 que Alexandra assumiu plenamente a sua vocação como artista visual, e também como contadora de histórias e palestrante sobre culturas indígenas e oficineira sobre grafismo e pintura corporal. É pioneira na arte da pintura do porongo, o fruto do porongueiro, para a contação de histórias ancestrais.
Texto: Kamuu Dan Wapichana
Ilustrações: Gustavo Caboco
Tradução: Nilzimara de Souza Silva
Era a primeira vez que Kazakapyny’u cultivava milho!
Yryy ybaykypan zii Kazakapyny’u pauwan mazik!
No início, seu dary e seu dukuz lhe ensinaram a prática tradicional e o ajudaram a preparar a terra.
Sakadinhan ydary na’ik ydukuz tuminhapkidnyz dunuzui kadyz ysaban imi’i baara.
Quando a plantação atingiu a maturação, o milharal cantou para Kazakapyny’u! No entanto, surgiram outras espécies de plantas ao redor.
Paribei ikudan padiyan, mazikbau kinipen kazakayny’u ata! Yryynaa bakadinkid pauribeinhau aidinhan ydazaba’an.
Kazakapyny’u fi cou muito zangado, porque do nada apareceram algumas kuraidiaunaa, que cresciam com o milho e atrapalhavam a colheita. Kazakapyny’u saiu pelo roçado reclamando de todos aqueles que se emaranhavam nas plantas e dobravam o trabalho na hora de colher!
Kazakapyny’u tu’uran tyykii maxa’apkiaka kuraiziannau aidinhan diaypainhawyz maziki tym na’ik inhau tuwaydayan karaudakary. Kazakapyny’u kudichan kadakuinhan tuwaydaytainhawyz tyykii pauribei karaudakary.
As kuraidiaunaa por sua vez, cantavam, pulavam, dançavam e rodopiavam se agarrando ao milharal na maior festança.
Kurayziannau kinipen, inzeakayan, kunaypan na’ik inseuanainhan dukuptinhan mazikibau di’it inhau tuman ydary’u kunayapkary.
O waru, muito esperto, ouvindo a reclamação do Kazakapyny’u decidiu tirar proveito da situação, pois gostava demasiado de milho e a farra que as kuraidiaunaa faziam o impedia de desfrutar daquelas delícias sem se entrelaçar nos cipós!
Waru aichanha’u, yabatapan kazakapyny’u kadakuinhan sariap ynaybapan wyyryy kaimeakan , ynaydap nii maziki na’ik kuraiziannau tumnii, aunaa ytapadan inkaiwen kaimenauraz inutinhan kazidiaru id.
O waru chamou Kazakapyny’u e falou:
Waru dapadan kazakapyny’u na’ik ikian:
– Rapaz, você devia tirar essas kuraidiaunaa da sua roça. Elas atrapalham muito a colheita!
– Pysu’utu wyyryy kuraiziannau zakap ai. Inhau tuaydaytan tyykii karauapkau!
Meio desanimado, Kazakapyny’u respondeu:
Manaynam kazakapyn’u dakutin:
– Sei disso, mas, elas nasceram aí! Talvez tenham alguma serventia.
– Ungary aichap, mazan inhau diaypain na’ii! Pana’adun wa’aipen inhau kanan nii karikeunan.
Por um longo tempo, o waru continuou tentando convencê-lo de que seria preciso fazer alguma coisa para tirar as kuraidiaunaa da roça do milho.
Waru na’ian dupata amazada tiweytan pasu’utukidian kuraiziannau zakap mazikibau ik.
Preocupado, Kazakapyny’u resolveu procurar o compadre puaty para se aconselhar, pois ele entendia do assunto.
Idupian na’apan xa’apatinhan, sariap ydautan kunpady puaty kakinhautau’nii xa’apnymkayan yaichanii na’apauram.
Na verdade, o puaty também gostava de milho, mas não tinha problemas com as kuraidiaunaa!
Mazan mixi,puaty kapam naydap nii maziki, mazan aunaa yxa’apam kuraiziannau tym!
O puaty assim falou:
Puaty paradan kaipa’a:
– Olha essas kuraidiaunaa sempre estiveram no milharal, não seria bom tirá-las sem conhecer as suas tarefas!
– Tykapa diura’a kuraiziannau ipei dun kainha’a inhau mazikinbau,aunaa tyyryy inhau su’utuka’u pamaichakan py’y kanam inhau xa’apatan!
O waru, sabendo que podia perder a oportunidade de tirar as kuraidiaunaa da roça, propôs que as afastassem para bem longe do milharal, até um lugar reservado só para aquelas pestinhas e suas travessuras. Kazakapyny’u acolheu a proposta do waru e as levou para um lugar bem distante.
Waru aichapan aunaa tyyryy ysu’utan kuraiziannau zakap ik, diydan inhau zikedinhan mynapu mazikibau ai, amazada mynapu suu inhau at na’ik pamakinhautinkiz at. Kuraiziannau mixidian waru paradan na’ik yna’akan diayn mynapu mazikibau ai.
Quando os milhos amadureceram por completo, Kazakapyny’u fez a colheita e retirou também todas as sementes que estavam próximas! Ele separou as sementes do milho e com cuidado guardou algumas para o próximo plantio.
Mazik diyan dun ipei, ykaraudan na’ik ysu’utan kapam ipei baurainhau ydainhau manapauraz !kuraiziannau byytan maziki yda na’ik inhau saban baydaykid bauran pauapakary tannaa.
Quando voltou o tempo de semear, Kazakapyny’u teve a precaução de não deixar outras sementes junto ao milho e, com muita atenção, recolheu todas outras espécies de plantas!
Pawuapakary amazada kawan, kuraiziannau aunaa inhau myydan baurainhau ydainhau baukup inhau tym na’ik inhau zamatan baurainhau pauribeinhau yda pana’a! kuraiziannau aunaa inhau naydapan wyyry’y sariapa inhau tu’uran tyykii amzada dayan.
As kuraidiaunaa não gostaram da situação e reclamaram bastante do lugar onde foram recolocadas, pois era bem longe dos seus companheiros e companheiras. Ficaram tristes por não fazer parte da festa, por não dançar, pular, nem entrelaçar ou abraçar seus amigos!
kuraiziannau aunaa inhau naydapan wyyry’y sariapa inhau tu’uran tyykii amzada dayan. Na’iam inhau myydakau, amazada mynapu’u paminhaydaynau ai, na’ik inhau kaxauran aunaa inhau kunaypa, aunaa inhau zakayan aunaa inhau inutan papaunarynau!
Naqueles dias, não se escutou mais os assobios, nem as risadas e tampouco o canto que despertava o espírito do milho! Sem nenhuma alegria, o milho acordou com as chuvas, mas nenhum canto se ouviu, causando estranhamento a todos!
Yryy kamuu dun aunaa inhau abatan wichaurii, aunaa xazutinkery na’ik aunaa kynyi maziki durunaa pukudakinhan! Aunaa kunaykikery, maziki ziwyn wyn kawan id, mazan aunaa kinyi abatakau kaxauru ipei inhau at.
Com o passar dos dias, o milharal ia crescendo, mas sem espírito! Kazakapyny’u, pouco experiente, não desconfi ou da situação. As espigas pequenas e com poucas sementes fi zeram com que ele buscasse ajuda com o marynau da comunidade.
Dupata amazada mazikibau diaypain, mazan aunaa ydurunaa nii! Kuraiziannau aunaa inhau di’itpan, aunaa inhau aichipan aimeakan. Maziki disukid na’ik baydaykid yyda yryy inhau nankan marynau wiizei ik.
Chegando próximo ao ancião disse:
Maunaptan tynarynau di’it ikian:
– Marynau, não teremos milho para a festa deste ano!
– Marynau aunaa wamazikinnii kunayapkary diura’a wyn dia’a
O marynau, sem entender, quis saber qual era a situação e lá foram os dois para a roça!
Marynau, aunaa yaichapnatan, na’apauram aimeakan na’ik inhau diaytam inmeakun zakap it.
Chegando ao milharal, o marynau perguntou:
Kawan mazikibau it marynau pixan:
– Onde estão minhas kuraidiaunaa?
– Na’iam kuraiziannau?
– Que kuraidiaunaa? – perguntou Kazakapyny’u – Aquelas que pulam de um lado para o outro fazendo a maior bagunça? Eu as tirei e coloquei bem longe da roça!
– Kuraizinanau? – pixan kuraiziannau – Taunawyy zakaypainhawyz di’itnapkidia’a tumpainhawyz ydary’u aimeakan? Unsu’uta diayn na1ik unmydan diayn mynpu zakap ai!
– Não! Aquelas que cantam para despertar o espírito do milho! – disse o marynau.
– Aunaa! Tauna’awy’y kinipeinhau pukuwayinhau maziki durunaa! – marynau kian.
O marynau fi cou muito bravo e continuou:
Marynau tu’uran tyykii na’ik ikian:
– Você não sabe que essas kuraidiaunaa são importantes para o milho? Sem elas, o milho fi ca pequeno e com poucas sementes, sem energia e sem espírito. Agora você terá de convencê-las a voltar para a roça!
– Pygary aunaa piaichapan wyyryy kuraiziannau kaimena’u maziki at? Aunaa inhau nii maziki dydudin na1ik baydaykid yyda, aunaa ydurunaanii, aizii pygary tiwen nii pikiukidian inhau pawa’at zakap at.
Todo desconfiado e sem graça, Kazakapyny’u dirigiu-se ao local onde tinha deixado as kuraidiaunaa e pediu ao marynau para acompanhá-lo! Quando o marynau se aproximou, viu as kuraidiaunaa muito tristes, reclamando por terem sido separadas dos seus companheiros e companheiras!
Ikibe’azun na’ik manaynam, kazakpyny’u makun na’iauram y myydan kuraiziannau na’ik ipixan marynau ymakukiz patym marynau maunapadinhan ytykap kuraiziannau manaynam kid, yparadan inhau byytau dayan paminhaydaynau ai!
Com a voz engasgada, Kazakapyny’u pediu desculpas às kuraidiaunaa e se comprometeu a nunca mais afastá-las de seus amigos, e que, daquele dia em diante, as prepararia sempre, e outros também, para receberem o milharal.
Paparandan nazban dia’na,kazakapyny’u kiukidian paparadan kuraiziannau at na’ik ikian aunaa pawa’a ybyytan diayn paminhaydaynau ai, na’ik tauryy kamuu di’ik ytuminhapkidiannii inhau ipei dun na’ik baurainhau zamata kiz mazikibau.
Depois dos pedidos de perdão, as kuraidiaunaa concordaram em voltar no próximo plantio! E assim Kazakapyny’u o fez. Preparou com muito zelo o local onde as kuraidiaunaa iam aparecer. Quando chegaram as primeiras chuvas e elas começaram a brotar, foi uma cantoria que estremecia a nova
roça. O dono ficou muito feliz e dessa vez acompanhou com cuidado, ouvindo minunciosamente os cantos diferentes que cada uma fazia. Aos poucos, as melodias encantavam e acordavam o milho para novamente participarem das festas dos iribienau
Dayna’na pakiukidian dayna’an paparada kuraiziannau at inhau kiwen pawa’a it maunapa pauribei diyan di’it yryy na’ap kuraiziannau tuman saban kaimen amazada kuraiziannau aidinkiznii. Kiwiniu wyn kawan na’ik inhau sakadan pasudan, yryy tyykii kynyi zakap ii.kazakapynyu kunaykian tyykii. Abatapan kaimenaimen kynyi pabinakakid kuna’ii kynyi pukuda maziki durunaa kuxan ymakun iribeniinhau kunayapkiz it!
Aquela roça para sempre foi lembrada pelo Kazakapyny’u. Não poderia ser diferente, pois, desde então, a comunidade se tornou referência na colheita anual do milho e também na troca das melhores sementes!
Tauryy zakap ipei dun kazakapyny’u inhykynyan, aunaa pana’an kayan wiizei tykapakau pakaraudan dia’an wyn kawan at maziki na’ik xakatkidian kaimena’u ydainau.
dary – pai
dukuz – vô
Kazakapyny’u – dono da roça
kuraidiaunaa – criança, crianças
marynau – pajé
puaty – macaco
waru – papagaio
zakap – roça
Kamuu Dan Wapichana (filho do Sol), nasceu na capital Boa Vista, Roraima, de origem do povo Wapichana, mas reside no Distrito Federal desde 2007. É escritor, contador de histórias, educador socioambiental popular, permacultor, membro da Associação Cultural Manuru Paunary, estudante do curso de Gestão Ambiental na Universidade de Brasília (UnB) e servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Foi premiado três vezes pelo Concurso Tamoios para Escritores Indígenas pelos títulos A árvore dos sonhos, em 2015 e ainda não publicado, O sopro da vida (Editora Expressão Popular, 2017) e A ciranda da roça, em 2019 e também ainda não publicado.
Além de O sopro da vida (Putakaryy kakykary), tem mais dois títulos publicados: Presente de Makunaimã (Makunaimã taanii) e A origem das águas do Planalto Central (Wyn tuminkiz Planalto Central dia’a), ambos lançados pela Auá Editorial, e ainda mais de treze histórias para ganhar espaço, todas trazendo a valorização da língua materna, tendo sido traduzidas para o wapichana.
Defensor do meio ambiente, da sustentabilidade e da cultura medicinal tradicional, vem se dedicando também ao trabalho de formação continuada para o ambiente escolar com a temática indígena em sala de aula, tendo como base a importância da literatura de autoria indígena.
Gustavo Caboco é artista visual wapichana. Trabalha na rede ParanáRoraima e nos caminhos de retorno à terra. Nasceu em 1989 e cresceu no ambiente urbano de Curitiba, sempre irrigado pelas histórias da mãe, uma mulher wapichana da terra indígena Canauanim, do município de Cantá, em Boa Vista, Roraima. Ambos retornaram ao território em 2001. O encontro com a avó e familiares indígenas traçou o seu destino como artista. Gustavo encontrou no desenho, no texto, no bordado, no som, na escuta e no sobrenome Caboco formas de dialogar com a identidade e atualidade indígenas. A pesquisa autônoma em acervos museológicos, aliada à produção de artista-indígena no desenho-documento, pintura, texto, bordado, animação e performance, propõem reflexões sobre os deslocamentos dos corpos indígenas, as retomadas de memória e a luta dos povos originários.
Em 2018, escreveu e desenhou Baaraz Kawau – “O campo após o fogo” em língua Wapichana – logo após o incêndio ocorrido no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Vencedor do 3º prêmio seLecT de Arte e Educação, tem participado de exposições coletivas importantes, tais como a 34ª Bienal de São Paulo, Vaivém, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e Véxoa | Nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo. É membro da comissão artística e curatorial do Museu das Culturas Indígenas (MCI).
Texto: Kanátyo Pataxoop
Ilustração: Dona Liça Pataxoop
No primeiro tempo, o mundo foi criado como parte do mesmo todo. Somos um pouco de tudo o que vive, de tudo o que faz e de tudo que é a natureza. Pertencemos ao mesmo corpo vital da Terra. Somos muitas gentes, mas não somos iguais, temos tantas semelhanças quanto diferenças.
Somos parte das três vidas que formam o corpo da natureza: animais, vegetais e minerais. Nesses domínios, temos parentes chegados, parentes da mesma família, partes do mesmo sangue, filhos do mesmo tronco ancestral. Desde a origem, tudo evolui e se transforma. Há parentes que andam lado a lado, que têm compromisso com a vida do outro, parentes de bom coração que nada têm nas mãos, mas, ao mesmo tempo, têm tudo. E há seres que foram criados com o mesmo pouco de tudo, mas não somos parentes.
Cada espécie tem os seus parentes. Alguns também se tornam parentes pela ajuda ao próximo oferecida e recebida, por conta do cuidado, da simpatia e da alegria pela existência do outro. Dentro do mundo que você é, que você vive, que defende e foi criado, há sempre um pouco de tudo. O ser gente, o ser
planta, o ser animal, a irmandade de tudo que é parente se reconhece no amor pela vida. Somos parentes por ter um pouco de tudo. Há respeito, estima e confiança na grande família dos considerados parentes.
O primeiro tempo nos conta sobre tudo, de nossas origens, quando cada um recebeu sua própria história e, desde então, a vida que segue evoluindo na Terra.
Fazemos todos parte do grande giro da Terra no Cosmos, do mesmo movimento da vida na Terra no Universo. Uma folha, um animal, uma pessoa, um rio, todos têm o mesmo direito. Enquanto estamos em pé, somos um só em vida, partilhando, inclusive, o ciclo da criação. Mas cada ser é filho do seu tempo, para si e para os outros.
Afirmar que tudo é parente é reconhecer o sentido mais sagrado. O nosso parente maior é a Mãe Terra. É ela que gera e mantém a vida, que puxa e nos liga ao seu corpo. Todos somos seus filhos, porém cada um tem os seus parentes, uma raiz que é a sua identidade, e o seu lugar no mundo. Se você está aqui, é porque tinha que estar, merece o seu lugar de viver neste mundo.
Sempre mantemos vivo o vínculo com todos os seres terrestres. Porque há uma irmandade que chamamos Tokxãm, onde “tudo é parente’’. Não é toda espécie de gente que é parente. Temos parente de carne e osso, e também temos parente água, árvores, animais e astros. Reconhecemos quem é nosso
parente pelo caminhar, pela forma de viver, pelo modo de falar, pela linguagem do coração, pelo cuidar, pelo sentimento, pelo toque, pela fragrância, pelo que faz e oferece no grande ciclo da vida.
Na concepção de uma grande família, dialogamos por códigos do nosso corpo, sentimos o outro, entendemos o outro, ouvimos o outro, respeitamos o outro e, pelos mesmos códigos, vivenciamos uma fraternidade onde “tudo é parente”. É uma doutrina de amor e reverência, na defesa de todos por um e
de um por todos.
A Terra para nós é viva, assim a sentimos. Ao plantarmos uma semente seca, ela a recebe quando a enterramos. A Terra oferece o seu corpo para aquecer e gerar a vida. Também guarda o ar para a semente respirar e viver ali embrulhada. Após alguns dias, a semente finalmente brota. De onde vem a vida da semente? Da Terra. Acolhida por ela, germina. Depois de enterrada, a semente se transforma e recebe a vida presente na Terra para se tornar um pé de planta. A Terra gera e forma vários pés de planta. Porque guarda o fôlego da vida para elas.
O pé de planta nasce e eu, que vejo o vegetal nascer, vou acompanhando a sua vida, o seu desenvolvimento. Converso com ele, cuido dele, jogo terra nas suas raízes. Quando cuido do pé de planta, ele sente a minha presença mesmo sem me ver. Eu estabeleço um vínculo de parente com esse pé de planta. E o vegetal passa a ser parte da minha irmandade. Eu sinto o seu vigor, sua energia e a alegria ao conversar e tocar no seu corpo.
Vivemos em comunhão, ninguém sabe do juramento entre nós. Só eu e o pé de planta entendemos os códigos naturais entre nossas vidas. O pé de planta segue a sua história, bebe água do rio pelas veias da Mãe Terra, usa os recursos naturais do seu ambiente para se desenvolver, sem nada destruir. O pé de planta e eu temos uma vida de parentesco e gentileza. Dividimos uma história de vida e respeito. O rio, a mata, as plantas, a maré e os animais esperam a Lua completar o seu giro no Cosmos. O pé de planta se transforma, cresce e dá frutos. Mas seu corpo não se transforma para prejudicar a Terra. A seus pés há um animal que passa a viver ali entre idas e vindas. Eu também estou de passagem, como parte da mesma vida e história.
Para que haja respeito e dignidade para todos, o reconhecimento das individualidades é importante, porque na natureza todo mundo é alguém que merece direito, vida e respeito. Nós combinamos ideias, dividimos a vida, respiramos o mesmo ar, bebemos da mesma água, sentimos o calor sob o mesmo sol e moramos na mesma Terra.
O homem que caça a natureza, um dia pode ser por ela caçado.
Kanátyo Pataxoop (Salvino dos Santos Braz, nos documentos) é cacique e professor na aldeia indígena Pataxoop Muã Mimatxi, no município de Itapecerica, Minas Gerais. É escritor, compõe música e poesia sobre a história de seu povo pataxoop e sobre a natureza para alfabetizar as crianças da aldeia. Usa uma pedagogia inovadora, pela qual busca desamarrar os nós de uma educação colonizadora. Através da educação, trabalha com a ideia de um projeto de vida para o povo da sua aldeia. É graduado em Formação Intercultural de Educadores Indígenas, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE – UFMG).
Por meio desse projeto, Kanátyo e os educadores da aldeia trabalham o todo de sua cultura, a vida na Terra, o meio ambiente, as experiências coletivas de vida em vários momentos históricos, a relação com o mundo e os desafios que enfrentam na atualidade. E Kanátyo considera que a escola é o arco e a flecha de caça, a pesca e a luta, que os orienta com um pé fincado no chão da aldeia e outro pé no chão do mundo.
Dona Liça Pataxoop pertence ao povo pataxó. Mora na aldeia indígena Pataxoop Muã Mimatxi, no município de Itapecerica, Minas Gerais. É educadora, artista e liderança das mulheres. Seu estudo e aprendizado foi com a terra. Partilha os valores essenciais da vida que as matas, os rios, os mangues
e o mar lhe inspiram. Não teve formação escolar, o seu método de ensino é baseado na oralidade e na escrita elaborada com imagens ou desenhosnarrativas, os chamados Tehêys, que antigamente eram utilizados pelas mulheres como instrumentos de pesca e hoje são empregados como pescaria de conhecimento. Por meio dos Tehêys, as crianças da aldeia aprendem a ler imagens e, assim, a conhecer os valores da vida e da natureza que fazem parte da cultura e do território do seu povo. A metodologia de dona Liça tem sido campo de pesquisa acadêmica e artística. Entre outros, participou como convidada das três fases do projeto Jenipapos: Literatura de autoria indígena (2020), Redes de saberes (2021) e Narrativas sobre viver (2022).
Texto: Auritha Tabajara
Ilustração: Carmézia Emiliano
A nossa ancestralidade
Ensina em tempo real
A cuidar da mãe-terra.
Da planta medicinal,
Como deve ser usada,
Depois de ser cultivada,
Na floresta ou no quintal.
Cada povo tem um jeito,
De ensinamento e cultura,
Muito próprio de viver,
Da caça à agricultura,
Memória e tradição,
E da minha região,
Falo da planta que cura.
No nascer de uma criança,
A parteira vai preparar
A água com ervas morna.
Os cueiros defumar,
Camomila ou alecrim,
Pra banhar o curumim,
A imunidade aumentar.
Depois de quarenta dias,
Com pé́ e moleira coberta,
Umbigo com a jalapa,
A lamparina desperta,
Fogo é a primeira visão
Em vez da televisão,
Crescer com a mente aberta.
E depois da quarentena,
Na cama, em sua maloca,
A mãe só cuida do filho,
Carne assada e tapioca,
Pirão mole da farinha,
Depois caldim da galinha,
Alimento da mandioca.
Se a criança sente dor,
Hortelã̃ pra melhorar.
Se é febre ou quebranto
Pra rezadeira rezar.
Se está nascendo dente,
A mãe toma aguardente,
E resulta no amamentar.
Quando a menina menstrua,
Sete dias sem sair,
Não come caça do mato,
Pra cólica não contrair,
Só́ toma banho com erva,
Corpo e saúde conserva
Com aroeira e cajuí.
A casca do jatobá́
Feito o suco de limão,
Mel, babosa e uva-tinto
Servem pra inflamação,
Noni com vinho do bom,
Bate até́ ficar no tom,
Limpa e cura o pulmão.
Se leva corte no corpo,
Azeite pra estancar,
Da mamona pequenina,
Que faz parar de sangrar,
Bota a ameixa de molho,
Derruba até́ o piolho,
Que é pra desinflamar.
Auritha Tabajara, mulher indígena, nordestina, cearense, escritora cordelista, contadora de histórias e terapeuta holística. É apaixonada pela escrita desde os seis anos de idade, quando aprendeu a ler. Sua primeira obra, Magistério indígena em verso e prosa, lançada em 2007, foi adotada como leitura obrigatória pela Secretaria de Educação do Ceará. Escreveu ainda Toda luta história do povo Tabajara (2008), Diário de Auritha (2009), Coração na aldeia pés no mundo (2018), obra reconhecida com o selo FNLIJ 2019, pela qual despontou no mundo literário como a primeira escritora cordelista indígena, A sagrada pedra encantada (2019), A grandeza Tabajara (2019) e A lenda de Jurerê (2020). Tem vários textos em cordel publicados em antologias indígenas e revistas on-line, tais como Maria Firmino dos Reis, IHU e ACROBATA. Participou de muitos congressos nacionais e internacionais, como do Projeto Circuitos dos Saberes Indígenas, promovido pelo Itaú Cultural.
Carmézia Emiliano nasceu na comunidade indígena de Maloca do Japó, em Normandia, Roraima, em 1960. Mudou-se depois, em 1990, para a capital Boa Vista. Começou a pintar em 1992, ao visitar uma exposição de pinturas e ser tocada profundamente pelo universo das cores. Naquela ocasião, a artista, que mora no estado de Roraima, reconheceu que a pintura era o canal ideal para perenizar o rico imaginário de sua etnia, o povo Macuxi. Desde então, a artista plástica faz no mínimo duas exposições por ano — eventos que extrapolam o estado de Roraima e o Brasil, já ocorrendo no exterior. O reconhecimento da artista plástica é traduzido pelas premiações em salões nacionais, pela integração de seus quadros a importantes acervos públicos e privados e por uma crescente e qualifi cada crítica. Pintando sobretudo cenas cotidianas indígenas de Roraima, a artista macuxi participou de diversas edições da Bienal Naïfs do Brasil.
Texto: Ariabo Kezo
Ilustração: Cleomar Myahu Tan Huare
No universo tradicional balatiponé, defendem os anciãos que o mundo é dividido em duas grandes eras: a Era dos Boloriê, os primeiros habitantes da humanidade, quando tudo que existe ainda estava em preparação no planeta e no universo, e a Era Balatiponé, o povo descendente dos Boloriê, cuja origem é também bastante remota. Muitas histórias balatiponé remontam à Era Boloriê, como é o caso da presente narrativa, que integra esse amplo repertório ances- tral relacionado à formação do mundo. É uma história que nos conta como aconteceu a criação dos peixes na Terra para os Balatiponé.
Os antigos dizem que na primeira era haviam vários guardiões, cada qual com uma grande responsabilidade no mundo. Eles detinham saberes e habili- dades excepcionais para uma pessoa comum. Cito alguns exemplos: Katamã, o inventor e gênio do arco e flecha; Mení e Harí, os irmãos possuidores da es- teira sagrada que ressuscitava mortos (Mení, depois de roubar as flechas do Katamã, a elas conferiu o poder de se projetarem sozinhas); As Ipuekozitabú, inventoras da panela de barro, que se tornaram exímias pescadoras; Ariamunú, um menino de forte personalidade e bastante crítico, que ao morrer fez surgir diversos alimentos para o mundo; Pakalarepô, o mais forte e inteligente guer- reiro que já existiu; e outros tantos.
Entre tais grandes guardiões, Zurimã, detentor da sabedoria do rio, foi certa vez requisitado pela gente comum. Seu povo estava sofrendo com a
escassez de alimentos. Buscavam todos os modos obter ou produzir comida, mas ela era sempre insuficiente para suprir a fome. Ainda que trabalhassem juntos e empenhassem todos esforços com esse objetivo comum, foi preciso recorrer ao sábio das águas.
Muitos foram em assembleia reunir-se com Zurimã, para suplicar por sua ajuda. Zurimã, que já sabia que iriam procurá-lo, ouviu atentamente as angús- tias de cada pessoa. Contudo, não manifestou qualquer expressão, juízo ou questionamento. Não adiantou insistir, Zurimã nada disse, e as pessoas se foram insatisfeitas.
Após aquela assembleia, o guardião voltou para sua casa pensando so- bre tudo que ouviu do povo. Ao chegar, ele se sentou para confeccionar suas flechas. Enquanto as empenava com o fio da seda de tucum, apareceram seus dois filhos, que brincavam juntos no terreiro. As crianças se aproximaram e perguntaram:
– I’yokô, pixé potupapó? Pai, vamos tomar banho no rio?
Zurimã moveu a cabeça para o céu, e olhou o sol. Sem dizer palavra, re- tomou a atenção aos detalhes da confecção da sua flecha. Envolveu o fio de seda de tucum com cera de abelha. E com breu, afixou duas penas em uma das extremidades.
Os filhos se distraíram brincando, mas logo requisitaram a atenção do pai novamente, cuja reação foi a mesma. Zurimã manteve-se concentrado na sua ocupação. Fazia muito calor, e quando as crianças já estavam molhadas de suor de tanto brincar, chamaram o pai pela terceira vez. Zurimã olhou para
cima de novo. E viu o sol posicionado ao centro do dia. Então se levantou e, com um sorriso no rosto, disse:
– Pixé potupapó, abiolô imí. Vamos tomar banho no rio, meus peque- nos filhos.
Zurimã tomou os filhos pelas mãos e foram ao rio, que não era muito distante da aldeia. Quando chegaram, foi aquela animação. Eles mergulha- ram e se refrescaram, sob a deliciosa a sensação de frescor que a água nos proporciona. Brincaram até cansar. Por um momento, com o semblante muito reflexivo outra vez, o pai manteve-se de pé a uma certa distância, imóvel e com os olhos profundamente fixos nos filhos.
Zurimã se aproximou, com um filho em cada braço forte, e foi para o meio das águas. Lá permaneceram inertes. Numa certa altura, deixou que a corren- teza os levasse. Foi quando a mãe das crianças acompanhou a cena. Furiosa, correu ao rio ao notar o plano do marido. Mas de nada adiantou a sua fúria e o desespero. Aos prantos, ajoelhou-se.
Por um longo tempo, os três seguiram o curso das águas. Até que
Zurimã perguntou:
– Aqui está bom?
Uma voz respondeu:
– Ainda não.
E os três continuaram a viagem, descendo, descendo, descendo… Já bem longe do ponto de partida, dezenas de quilômetros rio abaixo, Zurimã repetiu sua pergunta:
– Aqui está bom?
E alguém replicou:
– Agora, sim. Aí está bom!
No trajeto mais adiante o rio revelou uma bifurcação. Uma metamorfose começou a operar em Zurimã, dos pés à cabeça. À beira da bifurcação, a trans- mutação foi concluída. Zurimã cresceu. E cresceu tanto, que seu corpo se transformou em um enorme tronco e seus braços, em longos galhos de árvore. Um de seus filhos se converteu em folhas. O outro, em frutos. E ali naquele lugar se fixaram, vertidos na Ynianzó Kuxiporé, a árvore gigante. Toda vez que o vento a transpassava por todos os lados, derrubava folhas e frutos sobre a água. As folhas caídas se transformavam em peixes escamados de todos os tipos, aqueles de menor porte; e os frutos, em todas as espécies de peixes de pele, e de grande porte.
É por isso que no período da reprodução, também conhecido como pira- cema, os peixes tendem a viajar rio acima, percorrendo uma longa distância para desovar. Da mesma forma, todos os peixes surgidos das folhas e fru- tos da grande árvore trafegam rio acima para se reproduzir, para aumentar suas populações e enriquecer a vida fluvial. O porto e o seu povo, distantes da Ynianzó Kuxiporé por apenas algumas dezenas de quilômetros rio acima, be- neficiaram-se diretamente da abundância de peixes produzida pelo sacrifício espontâneo do guardião lendário Boloriê e seus filhos.
Foi assim que Zurimã, ao alcançar seu objetivo de suprir a fome dos seres humanos, entrou para a história do povo Balatiponé como um dos seus guar- diões, e também como um herói lendário. Por fim, esta narrativa nos explica a origem dos peixes para os Balatiponé.
Paykutipiá! Obrigado!
Ariabo Kezo, é indígena do povo Balatiponé, do Mato Grosso. Formado em Letras – português e espanhol – pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e mestrando no programa de pós-graduação em linguística, integrante do Grupo do Laboratório de Línguas, Linguagens, Etnicidade e Estilos em Transição (LEETRA). Ilustrou e escreveu Boloriê: A origem do alimento (LEETRA, 2015). É um dos autores de Nós: uma antologia de literatura indígena, com o conto Jibikí Porikopô: o furto da panela de barro (Companhia das Letrinhas, 2019).
Foi protagonista de Chegamos Antes, curta-metragem dirigido por Cainã Tavares. Recebeu o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema do Amazonas, em 2016. Foi também um dos protagonistas do curta Trovão sem chuva, dirigido por Bruno Bini, em 2021.
Cleomar Myahu Tan Huare nasceu em Cuiabá, Mato Grosso. Morou com sua família na aldeia Pakuera, do povo Kurâ-Bakairi, no município de Paranatinga. Mudou-se depois para a Aldeia Umutina, em Barra do Bugres, Mato Grosso, onde atua como professor de linguagem e arte. Cleomar é artesão, entalhador, ilustrador, artista plástico, pesquisador e arte plumarista do povo Balatiponé (Umutina). Graduado em Licenciatura para Professores Indígenas pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).
Texto: Márcia Wayna Kambeba
Ilustração: Ibã Huni Kuin
Ser indígena omágua
É sentir o mundo das águas
Saber que o rio é um espírito
Que tudo fortalece e conduz
Caminho de todos
Morada consagrada
Resistência vivida
Entre a cruz e a espada
Ser gota de chuva
Molhando a imensidão
É unir-se ao vasto rio
Fortalecendo a união
Ser povo em caminhada
Quando mundos se interligam
Fortalecemos o sagrado
Nossa uka, cosmovisão
De cada gota de chuva
Que toca nosso rio-irmão
Nasce um omágua/kambeba
Banzeiro de louvação
Somos palavra líquida
Derramada no coração
Movendo correntezas
Ponte que une a nação
Chove omágua/kambeba
Aqui e agora no nosso torrão
Banha a planta do saber
Promovendo libertação.
Márcia Wayna Kambeba, é indígena do povo Omágua Kambeba. Nasceu em 1979 no Alto Solimões (Amazonas), numa aldeia chamada Belém do Solimões, do povo Ticuna, onde viveu até aos oito anos de idade. Por motivos de saúde, foi morar com a família em São Paulo de Olivença, aldeia ancestral do seu povo de origem: os Kambeba.
Doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Geografia Cultural pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), é poeta, escritora com quatro títulos publicados, compositora, palestrante sobre assuntos indígenas e ambientais, educadora, atriz, palestrante, contadora de histórias. Ouvidora geral da prefeitura de Belém do Pará, é uma ativista na defesa da cultura, identidade e arte do povo Kambeba, bem como na valorização da mulher.
Seus poemas, como os publicados em 2013 no livro Ay Kakyri Tama, são rimados e guardam semelhanças com o cordel e bebem das narrativas orais, tradicionais, originárias e nas canções populares. Publicou recentemente Kumiçá Jenó: narrativa poéticas dos seres da floresta que, segundo a autora, mistura contos narrados, diálogos de teatro e estrutura poética. Músicas compostas e interpretadas por ela e por seu parceiro Edu Toledo estão na trilha do filme Os Breves, que aborda o encontro entre o indígena e o branco, a partir de um contexto de dor e luta. Já percorreu todo o Brasil e a América Latina com seu trabalho autoral, discutindo a importância da cultura dos povos indígenas, em uma luta descolonizadora que chama para um pensar crítico-reflexivo sobre o lugar atual dos povos originários sul-americanos.
Ibã Huni Kuin (Isaías Sales) é o txana, mestre dos cantos na tradição do povo Huni Kuin. É pesquisador indígena, especialista nas artes musicais. Como professor, alia os saberes de seu pai Tuin Huni Kuin aos conhecimentos ocidentais, pesquisando na escrita a sua tradição junto com seus alunos. Em 2008, ingressou na Universidade Federal do Acre (UFAC) e criou, com seu filho Bane, o Projeto Espírito da Floresta para pesquisar processos tradutórios multimídias para esses cantos, compondo o coletivo MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin que, desde então, participa de encontros, eventos e exposições, tais como O espírito da floresta – Desenhando os cantos do nixi pae (Rio Branco, 2010-2011), Histoires de Voir – Show and Tell na Fondation Cartier Pour L’art Contemporain, cerimônia de abertura, coletiva e documentário O espírito da floresta (Paris, 2012), exposição coletiva Artes Visuais Contemporâneas dos Povos Indígenas (MIRA), no Centro Cultural UFMG (Belo Horizonte, Minas Gerais, 2013), bem como na edição seguinte (Brasília, 2014), exposições coletivas Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2014), Made by… Feito por brasileiros na Cidade Matarazzo (São Paulo, 2014), exposição individual Nixi Paewen Namate – O sonho do nixi pae no SESC Rio Branco, entre outros.
Texto: Lucia Morais Tucuju
Ilustração: Uziel Guaynê e Jonas Estevam Malakuiawá
Quando a canoa atracou à beira do rio, avistei-o na proa, sorriso largo, angelical, dentes alvos, pele cor de jambo, esbelto, olhos graúdos e vivazes. Usava bermuda decorada de açaí, camisa com botões, cor de jutaí. De pés descalços, encardidos, saltou da embarcação, guardou o remo e pediu bênção aos mais velhos. Sua voz tinha um timbre melodioso. Pensei: “Menino diferente!”.
Ele ficava o dia todo com a gente, na lida da roça. Na mata, com sua agilidade para caçar, era como harpia; pescar era seu maior talento, parecia uma ave de rapina. Eu ficava me perguntando como um menino tão franzino poderia ser comparado a um gavião real.
O dia todo com ele era uma diversão, recheado com as piadas que contava. Diziam que ele tornava a lida mais leve. Quando colocava o jamaxi nas costas, entoava uma canção – “Eita pau, eita pau!” –, brandando os versos que o povo grita quando cai madeira no madeiral.
No final da tarde, subia no açaizeiro, ao lado do tendal. Eu gostava de ver sua agilidade na escalada, ainda maior na descida, com a peconha no pé, deslizando na palmeira, pulava de uma para outra com o cacho de açaí na mão, num balé, com um assobio nos lábios que enchia o ambiente de encantamento. Até os pássaros vinham saudá-lo com seus cantos. Era uma festa!
Em seguida, ele se dirigia para a beira do rio, acocorado na pedra, jogando caroços, observando os círculos que se formavam na água, ficava um bom tempo contemplando aquilo. Eu não via graça nenhuma, me deixava tonta. Às vezes parecia que conversava com alguém. Eu ficava arrepiada ao vê-lo falar com quem eu não via. Diziam que conversava com os encantados. Menino diferente!
Depois do jantar, era o momento da prosa. Todos choravam de tanto gargalhar com as histórias engraçadas que ele contava. Não entendo como sabia tantos causos e anedotas. A história de mizuras que narrava deixava todos arrepiados dos pés à cabeça. Eu cuidava de me cobrir com o lençol e dormir.
Na madrugada, no escuro da noite, os homens se preparavam para a pesca, e o menino os acompanhava, ele sabia gapoiar com primor, sempre trazia as tainhas, os carás mais bonitos do igarapé. Era muito perspicaz!
Possuía diversos dons e habilidades. Com uma faca talhava os troncos das árvores e fazia palavras, flores, poesia; colhia as folhas mais lindas da mata e criava os mais belos desenhos. Um dia, fez um coração com seu nome junto ao meu, escrito: “Para sempre!”. Meu coração maracateou. Não entendia o que era aquilo dentro de meu peito, mas me fazia feliz.
Quando ele partia, eu o fitava sem piscar até sumir na curva do rio. O vento uivava ao som do meu coração amargo com a falta que ele deixava, as flores do meu coração murchavam, meus olhos choviam de tristeza. Era mágico aquele sentimento!
Todo dia eu o esperava aparecer e, sempre que chegava, abarrotava a casa de magia com sua energia, contagiando a todos com sua vivacidade. Era sempre assim nessas idas e vindas, eu sempre naquela tristeza, mas pensava: “Ele volta!”.
E esse pensamento me acalmava.
Quando chegava, trazia o sol e alegria com ele. Todos da casa o recebiam de coração aberto. Um café era servido com beiju de tapioca para saudar sua chegada. Eu timidamente olhava de soslaio encostando-me à parede, pensando: “Menino bonito!”.
Naquela manhã o céu amanheceu com nuvens escuras, anunciando torós fortes de chuva. Os pássaros recolhidos nos troncos das árvores. Não tardou a cair o aguaceiro, acompanhado por uma ventania muito forte. Passada a chuva, o menino pulou na canoa e foi rio acima. Todos falaram pra ele não ir, mas teimoso, não deu ouvidos, disse que quando chovia era bom de colher os piquiás que caiam fresquinhos das árvores. Eu, de coração aflito, rogava:
– Que mãe natureza te proteja!
Logo veio outro toró ainda mais forte. Todos preocupados com o menino que não voltava. Noite chegou, dia clareou e nada. Sumiu misteriosamente. A floresta chorou vários dias, os pássaros cantaram em ritmo frio, a maré morta.
Contam que a mãe d’água o mundiou, levou-o para as profundezas do rio. Ele era sol, cor, alegria para nossas vidas. Tão jovem e com sabedoria anciã. Agora eu, de coração desalumiado, sentada na pedra jogando caroços na água, observo os círculos, pensando: “Menino bonito, menino diferente! Não voltará…”.
Lucia Morais Tucuju, tem origem indígena do Amapá, do povo Galibi Marworno, em processo de retomada. É professora, escritora, mediadora de leitura, palestrante, narradora de histórias, pesquisadora de cultura/literatura indígena e ativista de bibliotecas comunitárias no Rio de Janeiro. É pós- graduada em Psicopedagogia, pós-graduada em Literatura Infantil e Juvenil e membro da Academia Internacional de Letras do Brasil (AILB).
Também é professora de pós-graduação em Literatura Étnico-raciais – Estudo Afro-brasileiro e Indígena, palestrante e idealizadora do projeto de incentivo à leitura PEQUENALEGRIA, pelo qual idealizou e executou diversos saraus, oficinas de mediação de leitura e contação de histórias, biblioteca comunitária e iniciativas como o O livro bate à sua porta, Leitura na feira, entre outras. Foi homenageada na campanha Paixão de Ler, em 2016, pela prefeitura
do Rio de Janeiro. É coordenadora pedagógica dos projetos GIROLIVRO/ Biblioteca, Cantinho da Natureza/Centro Educacional Cantinho da Natureza- Tabajaras e Leitura no Lajão no Morro dos Cabritos, em Copacabana, Rio de Janeiro. Além disso, atua como professora de Artes na Escola Integrada Bem Viver e monitora de mediação de leitura e contação de histórias em creches, escolas municipais, estaduais, particulares e universidades. Realizou enraizamento comunitário em diversas comunidades: Tabajaras, Santa Marta, Cerro Corá, Campinho, Mangueira, Maré, Rio das Pedras e Engenho Novo. Tutora do curso de Pedagogia e Letras na UNINTER. Mediadora de leitura e contação de histórias nas redes de colégios Santa Mônica. Realiza formação para educadores pelas Paulinas Livrarias em Madureira, Niterói e Centro do Rio de Janeiro. Assistente do curso Leituras Digitais/CODEX. Também ministrou oficinas de mediação de leitura e contação de história para alunas do curso normal superior no Instituto Superior Pró-Saber (ISEPS) e se apresentou em feiras e eventos literários, como a Bienal do Livro. Gestora do Centro Cultural Casa da Ponte (Inhoaíba, Campo Grande). Como atriz, esteve em cartaz com o espetáculo ARANDU Lendas Amazônicas, em todos os CCBBs do Brasil, e com O Girassol em mim, dirigido por Beth Goulart. Durante a pandemia, participou de vários cursos de especialização na área literária, lives, palestras e contação de histórias. Idealizadora do projeto online Crianças Leitoras do Amapá. Contemplada nos editais emergenciais:
Uziel Guaynê é escritor, ilustrador e artista plástico. Indígena amazonense, é técnico em enfermagem e colabora com a saúde de seu povo. Atua como vice-tuxawa do povo Maraguá, nas aldeias do rio Urariá.
Como artista plástico, já expôs em diferentes partes do Brasil e da América do Sul. Por certo tempo, colaborou na confecção artística do boi-bumbá de Parintins. Como autor de texto ou imagem, publicou diversas obras indígenas amazônicas como, por exemplo, As pegadas do Kurupyra (Mercúrio Jovem), Wirapurus e Muirakitãs (Larousse), Formigueiro de Myrakãwéra (editora Birura), Historinhas marupiaras (Mercúrio Jovem), Maraguápéyára (editora Valer), O povo das histórias de assombração (editora Cintra). Também ministrou aulas de desenho e pintura no interior do Amazonas, visando sempre valorizar a literatura indígena. Atualmente mora em Nova Olinda do Norte, onde faz parte do movimento indígena. Pai de Paola Çaiçug e do também ilustrador Jonas Estevam Malakuiawá, com quem divide a produção das imagens que ilustram esta narrativa, no âmbito do projeto Entre Parentes: Narrativas Indígenas Ilustradas.
Jonas Estevam Malakuiawá é estudante de artes e artista plástico. Desde cedo, demonstrou um grande potencial e habilidade para as artes visuais. Filho do povo Maraguá, tem colaborado como instrutor de artes no projeto Volta às Origens, por meio do qual são montadas oficinas artísticas nas aldeias. Entre outras produções, Jonas participou como ilustrador da elaboração do livro O povo das histórias de assombração(editora Cintra), narrativa de Yaguarê Yamã. É filho de Maria Helena e do ilustrador, artista plástico e escritor Uziel Guaynê Maraguá, com quem divide a autoria e a elaboração das imagens que acompanham a presente narrativa.
Texto: Jaime Diakara Dessana
Ilustração: Bu ´u Kennedy
A história começa assim: na boca da noite estrelada, pela porta da maloca, sobe a fumaça do cigarro ritual. O som de gritos, da minha flauta de osso, do peculiar ceri- monial do canto de grilos, do coaxar do sapo e da festa se misturam pelos arredores. Em meio à agitação, abre-se no telão do universo a imagem do kumu Dihputiro Porũ, líder do povo Dessana do grupo da máscara de onça chata, especialista e conhecedor de ritos, que chama a atenção quando pergunta o que estava acontecendo. Todos guardam silêncio, assim como eu, de olhos atentos no telão, acompanho o velho sábio. A voz de Dihputiro Porũ me atinge feito um raio, neste tom:
– Arõpa Ãrĩbu Peké… Tudo começou assim…
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Segundo o nosso kumu, no princípio havia um ser chamado Yukʉdʉka Mahsu, o responsável pela floresta. Ele surgiu na cuia da origem da vida, a Dohtoari Koasoro. Essa enorme cuia flutuava com sete vidas no Ʉmʉsĩ Pahti, o vasto cosmos. Nela nas- ceu um formoso homem, com seus adornos corporais, um lindo cocar na cabeça, brin- cos de ouro nas orelhas. Radiante como um arco-íris, com o inteligente rapaz surgiram todas as danças rituais do maracá, o chocalho feito de cuia; gapiwaya, os cantos e danças rituais da ancestralidade; cariçú, a flauta de pã; yurupari, o demiurgo sagrado e seu instrumento musical; plantas medicinais; frutas do mato e demais seres que vivem na floresta.
Ʉmʉri Ñekʉ, o avô do universo, pediu para Yukʉdʉka Mahsu erguer sua morada no coração da mata. Acatando a orientação, ele achou um lugar em terra firme, bem no centro do mundo dos seres responsáveis pela floresta: Yukʉdʉka Mahsa. Em se- guida, convidou todos os seres da floresta para ajudá-lo na construção de uma maloca muito grande e alta. Quando o trabalho foi concluído, Ʉmʉri Ñekʉ surgiu. O avô do universo fincou o bastão ritual no centro da maloca e anunciou:
– A partir de hoje, esta maloca se chamará Nʉkũ Wiímũ, casa sagrada. Terminado o rito, fez-se um clarão e Ʉmʉri Ñekʉ desapareceu.
Tempos depois, Yukʉdʉka Mahsu casou-se com uma bonita mulher do Nekã Mahsa, o clã da gente-estrela. Mas o matrimônio durou pouco: Nekã Mahsa faleceu durante um parto, sob influência maléfica da própria família. Após o ocorrido, Yukʉ- dʉka Mahsu encerrou-se na maloca onde viveram. No seu interior, muito praticou Mahsa Dihá, o rito fúnebre.
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Neste ponto da narrativa, Dihputiro abaixa a cabeça. Percebo uma lágrima no seu rosto. Acho que o kumu se lembrou da própria esposa falecida. No breve inter- valo, o velho acende o tabaco e respira fundo. Estou curioso pelo desfecho da história, deve haver mais amargura. Ele apaga o cigarro, e retoma a narrativa ao lembrar que
estamos no período de enchente da constelação de camarão. Nessa época do ano, a chuva sempre começa a cair de madrugada, para terminar lá pelas duas horas da tarde. Conta que meu avô Mirupu costumava dizer que a chuva é o alerta da véspera do primeiro voo do ano de maniuara, a rainha das formigas. A história que Dihputiro narra aconteceu justo nesta época.
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Após o aguaceiro da madrugada, conforme era previsto, a chuva só foi parar no começo da tarde. Yukʉdʉka Mahsu lembrou-se que era tempo de voo das formigas e se levantou ainda se espreguiçando. Primeiro, preparou o cigarro como de costume. Depois, apanhou o arco e as flechas. Deixou a maloca e pegou o caminho da floresta em busca de um local para voo de maniuara. Vasculhou aqui e acolá, até finalmente localizar uma agitação de insetos. Achou também um bom pé de sapupema, para guardar arco e flechas. Havia por ali uma folha de sororoca, que aproveitou para forrar o chão, mascar ipadu sentado e fumar um cigarro. Ao terminar o curto rito, retirou as folhas secas, varreu ao redor da casa delas, deixou o local bem limpo, pronto para recolher as cobiçadas formigas. Só retornou à maloca depois de tudo terminado.
No dia seguinte, quando chegou o horário do voo de maniuara, Yukʉdʉka Mahsu arrumou a torobü, sua jarra de barro. E foi para a floresta, sem esquecer do seu arco e das flechas. Caminhou cerca de uma hora pela trilha, até ouvir uma voz feminina suave, bem distante, chamando assim:
– Oô… oô… Oô… oô… Oô… oô… Oô… oô…
Ficou bastante incomodado e murmurou:
– Não acredito! Essa voz, não pode ser dela… Esses seres estão fazendo uma brincadeira de mau gosto comigo. Já tiraram a vida da minha mulher, e agora ousam imitar a sua voz, isso não está certo!
Mas foi adiante mesmo assim, até alcançar a primeira armação, onde havia muitas maniuaras. De lado a lado, retirou diversas formigas da captura e as colocou na panela de barro. Recolheu o máximo de maniuaras que pôde, até a última armadilha. Quando o rapaz se sentou para arrumar o aturá, o paneiro feito de cipó, sentiu uma mão humana tocar no seu ombro. Arrepiado, Yukʉdʉka Mahsu, virou-se e deu com aquele sorriso, os longos cabelos trançados, a pena de arara na orelha e toda a beleza de Woagô Mahsõ. E ela o cumprimentou:
– Olá, tudo bem?
Muito surpreso por encontrar uma moça tão deslumbrante quanto aquela, ficou até sem jeito. Por isso, meneou a cabeça e gaguejou:
– Sim, estou bem. Vim recolher maniuaras. Passei muito tempo sem comer e hoje senti fome. Lembrei que era época do voo delas. Também estava cansado de ficar na minha maloca. Decidi sair para relaxar um pouco, tratar das tristezas que marcam meu passado.
E a moça, curiosa sobre a vida particular do rapaz, perguntou:
– O que aconteceu contigo?
–Eu tive uma esposa que acabou falecendo – ele respondeu e continuou. – Éra- mos muitos felizes, andávamos juntos por aqui para apanhar maniuaras juntos. Enfim, é uma longa história. Mas e você? O que faz sozinha no meio da mata? É arriscado…
Woagô Mahsõ sentiu, pelo seu jeito de falar, que Yukʉdʉka Mahsu carecia de uma nova companhia. Graciosamente sorriu, coçou a cabeça e disse:
– Eu e a minha irmã saímos hoje bem cedo da maloca, à procura de alimento. Só que ela me deixou sozinha. Por isso, eu a estava chamando. Não sei o que aconteceu com ela. Você me desculpe por isso.
***
O kumu Dihputiro faz uma segunda pausa, para relaxar e fumar. Parece até um filme romântico, estou ansioso por saber mais. Após o rito, o velho sábio respira fundo e continua.
***
Yukʉdʉka Mahsu era simpático, acolhedor, amoroso. Os dois se sentaram no chão e, enquanto conversavam sobre a vida, o rapaz foi fazendo funis de folhas para armazenar maniuaras. Quando terminou, sugeriu:
– Vamos lá encher funis para levar para sua família também. Eles vão adorar se você voltar com algumas maniuaras para comer.
Os dois se levantaram e foram até as armadilhas. Com agilidade, encheram muitos funis de folhas com formigas. O rapaz fez um peneiro com folhas de bacaba e ajudou a ajeitar tudo dentro da cesta. Depois se despediram, e cada um tomou o próprio rumo. Assim que ela partiu, Yukʉdʉka Mahsu se estendeu um pouco mais por ali, matutando sobre aquele encontro inesperado com uma jovem desconhe- cida tão encantadora. Jamais imaginou que um dia poderia se apaixonar ou casar novamente. Ficou sentado, pensativo, com a cabeça entre as mãos. Foi quando ouviu um ruído de folhas secas. Intrigado, percebeu que era a jovem, caminhando de volta em sua direção:
– Por que você voltou? Está anoitecendo rápido, daqui a pouco a trilha estará muito escura e perigosa para você seguir sozinha pela floresta.
Ela realmente tinha voltado com a intenção de se declarar, mesmo com o risco de causar desconforto ao rapaz:
– Escuta! Eu voltei porque quero morar contigo na sua maloca. Sei que você precisa de companhia, assim como eu também careço.
Surpreso e confuso com a investida da misteriosa jovem, Yukʉdʉka Mahsu a ouviu. Então, conversaram e entraram em acordo. Ela aceitou conhecer a maloca dele primeiro. E, depois, apresentá-lo à sua família. O papo foi longo, veio a noite, e foram juntos à maloca de Yukʉdʉka Mahsu. Antes de entrar, o rapaz fez o ritual de boas-
– vindas, batendo o pé no chão. E entoou sua voz temorosa, sob a defumação do breu, para purificar a entrada onde o sol nasce, a porta onde o sol se põe, as laterais por onde o vento entra, e também a passagem por onde o vento sai. Fez desse modo, fumegando seu cigarro em torno de Woagô Mahsõ, para assegurar a vida. Quando terminou o rito, atou uma rede de tucum para ela, bem perto da sua própria.
Os dois viveram muito felizes. Ou, pelo menos, assim pareceu. Demorou bas- tante para o companheiro perceber que havia algo estranho com Woagô Mahsõ. Aos poucos, notou que ela não era feliz o tempo todo. Por isso, decidiu acompa- nhar a mulher mais de perto. Ficou claro que ela não comia peixe, nem carne de caça. Sempre atento à sua rotina, viu quando sua mulher levou beiju e farinha no aturá e, ao chegar à roça, apanhou gafanhotos, grilos e besouros embaixo do pau oco para comê-los. Ciente da necessidade da esposa, ele decidiu fazer uma casinha com folhas de bacaba, cercada com a tala de paxiúba, ao lado da maloca. Do lado de dentro e por fora, cavou buracos para capturar insetos e besouros noturnos. Isso mudou a vida da esposa. Toda manhã, ela passou a guardar os insetos capturados no moqueador feito de tala de bacaba. Woagô Mahsõ, filha de uma cobra, era do clã Waí Mahsã, dos seres não humanos.
***
Mais um intervalo para o kumu Dihputiro baforar seu tabaco. Aguardo e ouço a orientação baseada na história, quando ele fala sobre a forma de educar. E, depois, continua do ponto em que parou.
***
Certo dia, Yukʉdʉka Mahsu decidiu conversar com a esposa para planejarem uma visita ao sogro. Imaginou um encontro de conciliação familiar, para oficializar a autorização de casamento:
– Bʉkʉo, minha esposa, temos que visitar os seus pais e parentes. Precisamos formalizar nosso relacionamento, podemos visitá-los?
A companheira, apreensiva, replicou depois de muita insistência:
– Bʉkʉ, meu marido, não me parece uma boa ideia. Mas, se acha mesmo necessário, primeiro você precisa coletar frutas e insetos na floresta para fazer um ritual de dabucuri.
– Tudo bem! – respondeu o companheiro – Em dois dias, cuido disso.
E assim foi. O rapaz conseguiu encher várias cestas de frutas silvestres e mui- tos funis de folhas com os insetos que coletou. Depois disso, preparou os instru- mentos de Yurupari. No dia seguinte, arrumou a canoa para seguir viagem até a aldeia de Woagô Mahsõ.
O percurso de descida levou algumas horas, até chegar a uma primorosa ma- loca, ornada com o grafismo de uma cobra grande na fachada. Woagô Mahsõ deu ao companheiro uma última orientação sobre a recepção de boas-vindas:
– Bʉkʉ, logo na entrada estarão muitas pessoas, e essa gente vai querer te agar- rar e morder seus pés. Por isso, você tem que jogar as frutas nas laterais da maloca quando estiver tocando o seu yurupari.
A esposa se referia a outros seres do clã de Yukʉdʉka Mahsã. Mas Yukʉdʉka Mahsu, conhecedor de todas as coisas, preparou e acendeu seu cigarro de proteção espiritual antes de entrar na maloca. Para disfarçar, começou a dança de jurupari e logo jogou frutas no canto da maloca. Manteve assim a concentração desde a entrada até o banco central da construção, onde, após finalizar a dança, se sentou para esperar o sogro.
Em poucos minutos, apareceram duas cobras grandes com seus bastões-rituais, batendo no seu ombro e chocalhando como sinal de boas-vindas. Elas eram Yukʉ Piroã Mahsa, gente cobra da árvore. O seu cunhado e o sogro de Yukʉdʉka Mahsã retornaram ao fundo da maloca e se transformaram em gente humana. Ao cumpri- mentá-lo, trouxeram uma cuia de ipadu e lhe ofereceram um cigarro ritual.
Este trecho da narrativa do kumu Dihputiro me deixa arrepiado. Apesar do medo, quero muito saber por que Yukʉdʉka Mahsã joga as frutas na entrada, quem são essas tais cobras e se isso tudo é mesmo realidade.
***
Depois de cumprimentar Yukʉdʉka Mahsã, o sogro voltou ao fundo da maloca para conversar a sós com a filha:
– Magõ, minha filha, quem é seu marido e a que clã ele pertence? O que vamos oferecer a ele como alimento?
A sua filha Woagô Mahsõ demorou um pouco para responder:
– Ahʉ, meu pai, temos um problema. Ele é Yukʉdʉka Mahsã. Por isso, a sua comida é do clã Waí Mahsa. Quer dizer, ele come peixe e carne de caça.
O velho Yukʉ Piroã Mahsa refletiu duas vezes e lembrou que havia um servo, um velho socador de ipadu no fundo da maloca. E chamou dois Yukʉ Piroã Mahsa:
– Venham aqui, vocês dois! Matem aquele velho lá no fundo da maloca, que não serve para mais nada. Depois o tragam aqui.
Os dois Yukʉ Piroã Mahsa acataram à ordem do líder. Pelas costas, cacetaram o velho na cabeça com um pedaço de madeira:
– Pronto, aqui está.
O líder Yukʉ Piroã Mahsa ordenou que eles entregassem o corpo do velho ao genro Yukʉdʉka Mahsã. E assim eles fizeram. Na perspectiva do Yukʉdʉka Mahsu, en- tenda, o velho não era humano. Para ele, era um peixe sohó, que alguns chamam de ituí, ele apanhou, levou ao porto para tratar e preparar quinhampira no fogo. Depois de comer o delicioso caldo picante de peixe, foi fazer o reconhecimento da maloca.
Lá no fundo, percebeu que gente se transformava em cobra. E de cobra, de novo, em pessoa. Sua esposa, percebendo que ele estava indo além da orientação, disse:
– Bʉkʉ, afaste-se daí. Esse lugar é proibido para gente estranha e pode aconte- cer uma desgraça contigo.
Mas o marido retrucou:
– Nada vai acontecer, eles não têm intenção de fazer essa maldade comigo, são
meus cunhados.
O casal passou três dias na aldeia do Yukʉ Piroã Mahsu. E chegou o momento de Yukʉdʉka Mahsu regressar a sua maloca. Quando o sogro soube que o genro estava prestes a partir, chamou a filha para oferecer alguma coisa a ele. Mas ela recusou a oferenda de gratidão. E, assim, seguiram.
Alguns anos depois, o casal teve um filho. Quando o menino completou três anos, a filha do Yukʉ Piroã Mahsu desejou levar o neto para o avô conhecer:
– Bʉkʉ, vamos visitar o meu pai. Ele vai ficar muito alegre com a nossa visita,
ainda mais quando conhecer com o seu lindo neto.
Yukʉdʉka Mahsu concordou e foi preparar alguns alimentos para levar ao sogro.
Dessa vez, a viagem à aldeia Yukʉ Piroã Mahsu foi por terra. Os três foram rece- bidos com um cerimonial de boas-vindas, revezando-se nos cumprimentos e danças com a criança. Lentamente, os avós encaminharam a criança e a mãe até o fundo da maloca, onde costumam sumir. Para os Yukʉ Piroã Mahsa era tempo de mofar. Preo- cupado, Yukʉdʉka Mahsu perguntou o que estava acontecendo com eles. Sua mulher disse para ficar bem ali onde estava e não se preocupar. Mas ele amava demais o filho único e caminhou pela maloca toda, de um lado para o outro. Viu várias bacias de barro ao fundo, cada uma com uma cobra, tudo mofado, parecendo algodão cinza e verde. E a parede do fundo era fechada com paris, um cercado de proteção feito com talas de zarabatana, reservado para a família do Yukʉdʉka Mahsu. Embora não pu- desse entrar naquele espaço, ele ultrapassou as esteiras em busca do filho. De bacia em bacia, acabou por achá-lo com a mãe, juntos mofados. Yukʉdʉka Mahsu não tinha como saber se estavam vivos. Resolveu beliscar a testa do filho, que espirrou sangue. Para Yukʉ Piroã Mahsu, tal atitude era um desrespeito à tradição. Yukʉdʉka Mahsu voltou para a sua rede.
Três dias depois desse episódio, mãe e filho saíram ilesos da bacia, como se nada
Tivesse ocorrido. A mulher aproximou-se de Yukʉdʉka Mahsu e disse:
– Bʉkʉ, o que você foi fazer? Você estragou o nosso filho. Agora ninguém pode dizer o que vai acontecer com ele…
Yukʉdʉka Mahsu ficou chateado com a mulher por ter chamado sua atenção. Cismado, antes que algo realmente acontecesse ao filho, foi investigar o que havia na bacia. Pela madrugada, sem acordá-la, deixou a rede devagarinho e foi até o reser- vado. Yukʉdʉka Mahsu não pensou duas vezes antes de entrar na bacia. Só podia sair na próxima temporada ritual do mofamento, na época de canto de gambá mucura. Mas ele fora insolente com o ritual, sofreria as consequências do castigo.
Woagô Mahsõ nada contou ao filho ao voltarem pra a maloca deles. Enquanto arrumava a rede de dormir, o pequeno desatou a chorar pela falta do pai. Diante do seu desespero, a mãe lhe deu um maracá para brincar. E ele caminhou por cada divisão da maloca – xĩ, xĩ, xĩ, xĩ, xĩ, xĩ… –, percutindo o seu maracá, dançando e mar- cando passo. Woagô Mahsõ estava acompanhada da irmã, que ficou admirada com a dança do sobrinho. Na verdade, a criança procurava pelo pai onde ele costumava ficar na maloca.
Certo dia, o filho de Yukʉdʉka Mahsu insistiu que a mãe o levasse até a maloca do avô Yukʉ Piroã Mahsu. A mãe acatou o pedido, e caminharam até o local. Mas lá não encontraram mais nada. Nem sinal da construção.
Na boca da noite, já de volta à morada deles, a criança começou a chorar. E repetiu aquele mesmo rito triste, agitando o seu maracá – xĩ, xĩ, x,ĩ xĩ, xĩ, xĩ… –, mar- cando os seus passos e dançando. Diante da agonia do filho, Woagô Mahsõ – xĩ, xĩ, x,ĩ xĩ, xĩ, xĩ… –, decidiu acompanhá-lo.
E foi assim que o menino se transformou em Yakó Musĩrõ, o gafanhoto da noite e sua mãe, na barata Kasiawũ.
***
O kumu Dihputiro termina a história, levanta-se do banco e diz:
– Magʉ, meu filho, ninguém sabe o que aconteceu com o pai do Yakó Musĩrõ, o nosso ancestral Yukʉdʉka Mahsu. A história dele termina aqui. Aconteceu no pas- sado. Mas hoje ainda podemos ver Yakó Musĩrõ e Kasiawũ, sempre presentes na ma- loca antes da chuva ou antes de kumu ficar doente. Yakó Musĩrõ canta nos corredores da maloca e Kasiawũ voa pelo meio do esteio central da maloca.
Yri perãta arã lphuti, Karike Magʉ.
Aqui termina a história. Vamos dormir, filho.
***
Jaime Diakara Dessana, é indígena do povo Dessana, fundador do grupo Kariçú – Mamaphia Bahsamori Mahsa. É ilustrador, criador de ensaio desenhístico cosmológico, que interpreta a identidade do seu povo por meio de grafismos, idealizador de calendário lunar dessana, agente cultural, escritor, professor e contador de história. Graduado em Licenciatura em Pedagogia Intercultural Indígena pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e colaborador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI).
Vencedor da coleção PROARTE de Literatura 2013 pela Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas, Prêmio de Tamoios e menção honrosa pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) (Rio de Janeiro, 2012).
Autor dos livros infantojuvenis Yahi Puíro Ki’ti – A origem da Constelação da Garça (Editora Valer), Waímurã Ki’tiakã – Historinhas dos Animais (Secretaria de Cultura do Amazonas) e Wahtirã – A lagoa dos Mortos (Editora Autêntica), pelo qual venceu o 10º Concurso Tamoios de Textos de Escritores Indígenas (FNLIJ/Instituto UKA). Participou da antologia LEETRAS na Universidade de São Carlos, lançou o poema Dessana no Im Flug der Harpyie. No Voo da Harpia: Indigene Poesa Aus Dem Brasianischen Regenwald (Alemanha, 2015), e Wʉrʉ Siburu – Peneira de Arumã, uma das narrativas de Nós, uma antologia de literatura indígena (Cia das Letrinhas, 2019).
Bu’u Kennedy é artista plástico, mestre na técnica de marchetaria e xamã do povo Ye’pamahsã-Tukano. É diretor da performance Ühpü (corpo), em Manaus, no Amazonas. Membro fundador da Terra BAHSESÉ WIÍ SP, líder de cerimônias e retiros no Brasil e exterior.
Bu’ú para o povo Ye’pamahsã, registrado como João Kennedy Lima Barreto, nasceu na aldeia Kayrá, às margens do rio Tiquié, nas Terras Indígenas do Alto Rio Negro, Município de São Gabriel da Cachoeira, noroeste do Amazonas, fronteira brasileira com a Colômbia. Filho de pai do povo Ye’pamahsã e mãe do povo Tuyuka, fala os idiomas paterno, materno e português. É membro do Clã Üremirin Sararó, linhagem patrilinear do povo Ye’pamahsã da Amazônia, também conhecidos como Tukanos. Para o povo Ye’pamahsã o nome Bu’ú significa tucunaré, o peixe encantado dos rios amazônicos, que representa uma pessoa de vida curta e brava.
Texto: Juvenal Payayá
Ilustração: Denilson Baniwa
Quão triste sina deste país das oficinas,
onde tudo que o avô do artífice construiu
o filho pródigo pela noite sorrateiro destruiu.
De um lado, as vacas de tetas magras,
do outro, pasto verde para as de tetas gordas
e o capataz na porteira deixando passar boiadas.
E bufa o vice-capataz, enganado, no mourão laçado,
que nem mesmo o diabo pode desfazer o tão atado nó
desprezado pela boiada, no mourão, cada vez mais só.
Mas, com linha, o bom artífice remenda cada retalho,
convida a multidão, pois a fome é cada vez maior rapaz
pra prender no mourão das vacas, o vice e o capataz.
Juvenal Payayá (Juvenal Teodoro Payayá) é filho da Chapada Diamantina, Bahia. Por pais, teve Cosme Teodoro e Ana Gonzaga. Seguidor da linhagem das lideranças Sacambuasu e Raimundo Gonzaga, o cacique Payayá tem acompanhado o movimento indígena. Sua participação na diretoria foi efetiva na fundação do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígena da Bahia (MUPOIBA) e do Conselho de Políticas para os Povos Indígenas da Bahia (COPIBA). Representante dos indígenas, foi ainda membro do Conselheiro Estadual de Educação da Bahia (CEE-BA) e do conselho de idosos. Como cacique tem lutado para consolidar o território Payayá, desenvolvendo atividades para recuperação da bacia do rio Utinga, bem como pela revitalização do povo Payayá, dado por extinto.
Como escritor, publicou obras de temática indígena em gêneros como romance, poesia e ensaio. O filho da ditadura, Vozes selvagens, Roda de prosa na periferia são alguns dos títulos da sua produção literária. Gosta de praticar rabiscos primitivos, que ele chama de rabiscuitos, atividade reconhecida e premiada artisticamente.
Estudou História na Universidade de São Paulo (USP), sem completar o curso. Formou-se em Ciências Econômicas, com especialização em Educação e Administração. Trabalhou no segmento editorial e na sala de aula, empregando o livro como guia. Foi sempre um dedicado lutador pela defesa da cultura e dos direitos dos povos originários e suas organizações, em particular, na direção do MUPOIBA e da Red Latinoamericana por la Preservación Biculturalidad. Como palestrante tem participado de encontros, fóruns e congressos no Brasil e no exterior.
Denilson Baniwa nasceu em 1984 na aldeia Darí, em Barcelos, no rio Negro, Amazonas. Seu percurso como artista começou na infância, a partir da cultura de seu povo Baniwa. Na juventude, iniciou sua trajetória na luta pelos direitos dos povos indígenas, transitando e apreendendo pelo universo não indígena, que fortaleceu sua resistência. É um artista antropófago, cuja obra se apropria das linguagens ocidentais para descolonizá-las. Ao longo de sua trajetória, como artista ou curador, consolidou-se como uma inspiração contemporânea, ao romper paradigmas e abrir caminhos ao protagonismo indígena. Mescla em sua produção referências indígenas tradicionais e contemporâneas – por meio da pintura, performance, projeções a laser, imagens digitais e instalações –, com parâmetros culturais e artísticos icônicos ocidentais. Vencedor do Prêmio PIPA de Artes Visuais em 2019, foi também selecionado em 2021.
É atualmente membro do comitê de indicação do Prêmio PIPA 2022. Desde 2015, ministra palestras, oficinas e cursos. Participou de exposições no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Pinacoteca de São Paulo, Centro Cultural São Paulo (CCSP), Centro de Artes Hélio Oiticica (CMAHO), Museu Afro Brasil, Museu de Arte de São Paulo (MASP), Museu de Arte do Rio (MAR) e Bienal de Sidney. Em 2018, realizou a mostra Terra Brasilis: o agro não é pop!, na Galeria de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro da comissão artística e curatorial do Museu das Culturas Indígenas (MCI).
Texto: Eliane Potiguara
Ilustração: Moara Tupinambá
Na década de 1980, fui visitar o povo indígena Guarani Kaiowá, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Naquela época, o cacique era o sr. Marcos, o falecido pai de Valdelice Veron, brutalmente assassinado por jagunços em conflitos de terra. Eu o conheci pessoalmente e passei um bom tempo na sua comunidade. Quem me levou até lá foi o Conselho Indígena Missionário (Cimi).
Muitas mulheres me contaram casos absurdos. Ao conversar com a guerreira Valdelice Veron, numa semana de outubro de 2021, exibi uma foto e qual foi a minha surpresa? Valdelice mostrou a foto à mãe, já idosa, que, perplexa, disse:
– Eu me lembro dessa moça; ela esteve aqui quando você era uma criança.
E a velha senhora ainda identificou cada homem sentado no caminhão. Lá estavam seus irmãos, amigos e parentes. Deu o respectivo nome de cada um deles. Valdelice ficou surpresa e muito feliz. Ela me disse, e eu já sabia, que os comícios comunitários eram feitos sobre um caminhão velho, sempre acompanhados por indígenas músicos no violão e na sanfona, como eles dizem.
Naquela mesma semana da nossa conversa, fiz algumas transmissões on-line, inclusive ao lado de Valdelice. Eu mencionei os enormes desafios de sobrevivência desse povo milenar tão sofrido, marcado pela violência, estupros, suicídio de jovens, jagunços, fazendeiros, política regional e pelas ações e massacres intensificados por um governo genocida e fascista.
Décadas se passaram e a situação desse povo tão carente e sofrido não mudou.
Eu me vi ali naquela foto, de cabelos longos, com a mão na boca. Não que eu não pudesse falar, apenas esperava a vez de ser chamada pela liderança para o meu discurso. Eu era a única mulher naquele caminhão combativo. E ainda passei alguns anos nessa mesma condição, na luta.
“No passado, Eliane Potiguara olhava para a direita, olhava para a es- querda e só via homens. Era só solidão quando ela ia conversar com todos sobre a violação dos direitos indígenas, dos povos e das mulheres indígenas.”
Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó
Na área potiguara, com as minhas parentes, lançamos o nosso grupo de mulheres, o GRUMIN. Era uma luta solitária, mas hoje vemos meninas, jovens, deputadas, vereadoras e líderes, mulheres nas frentes das lutas. A Marcha das Mulheres Indígenas é uma realidade, baseada nas lutas das mulheres locais. Inclusive o título de meu livro A cura da Terra, pela Editora do Brasil, serviu de inspiração para as mulheres guerreiras e eu me orgulho disso. Elas utilizaram essa imagem, o que foi fabuloso. A literatura indígena é democrática.
No passado, nas conferências internacionais, só havia uma única vaga para mulheres indígenas. E lá estava eu, de mala e cuia, com informações sobre o que acontecia no Brasil. Foram os indígenas norte-americanos que me levaram até a ONU: ao Congresso Nacional dos Índios Norte-Americanos e ao Conselho Internacional de Tratados Indígenas. O primeiro fez uma petição ao governo Collor, pela qual denunciava a ausência de direitos dos povos indígenas no Brasil e a segunda instituição era ligada ao Programa de Combate ao Racismo do Conselho Mundial de Igrejas de Genebra, do qual Nelson Mandela fazia parte.
Meus filhos sempre foram cuidados pelos avós materna e paterna, Elza e Olga, pelo meu dedicado irmão Carlos Alberto Lima dos Santos e minha cunhada, que muito me ajudaram a cumprir minha missão. Eu também costumava solicitar licença à escola onde lecionava ou aos departamentos onde trabalhava. Fui funcionária pública concursada, primeiramente como professora em sala de aula e, depois, em departamentos burocráticos e políticos. Assim tenho levado a luta indígena. Hoje, aos 72 anos e aposentada, continuo atuante na literatura e firme na construção do pensamento indígena brasileiro das últimas décadas.
“(…) Vem mulher,
despe toda a roupa suja,
fica nua pelas matas,
vomita o teu silêncio
e corre_criança_feito garça.”
Mulher, Eliane Potiguara
Eliane Potiguara, é escritora, poeta e professora. É formada em Letras (Português-Literatura) e Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com especialização em Educação Ambiental pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
De etnia Potiguara, brasileira, é fundadora da primeira ONG de mulheres indígenas GRUMIN/Grupo Mulher – Educação Indígena (1988) e Embaixadora da Paz pelo Círculo de Embaixadores da França e Suíça. Trabalhou pela Declaração Universal dos Direitos Indígenas na ONU, em Genebra.
Seu livro carro-chefe é Metade cara, metade máscara (Global Editora, 2004), reeditado em 2019 pela GRUMIN Edições. Vencedora do Prêmio do PEN CLUB da Inglaterra e do Fundo Livre de Expressão, nos EUA. Publicou vários livros infantis, textos, pensamentos e poesias em antologias nacionais e internacionais.
Em 2021, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2014, recebeu do governo brasileiro o título de Cavaleiro da Ordem ao Mérito Cultural. E, em 2005, foi indicada ao Projeto Internacional Mil Mulheres ao Prêmio Nobel da Paz.
Moara Tupinambá é artista visual e ativista das causas indígenas. Natural de Mairi, em Belém do Pará, vive em contexto urbano. Sua ancestralidade genealógica origina-se da região do baixo Tapajós (Vila de Boim e Cucurunã). Integra o coletivo de mulheres artistas paraense MAR, é sócia do Colabirinto e vice-presidente da associação multiétnica Wyka Kwara. Radicada em Campinas, artista multiplataforma, utiliza desenho, pintura, colagens, instalações, vídeo-entrevistas, fotografias e literatura. Sua poética percorre cartografias da memória, identidade, ancestralidade, resistência indígena e pensamento anticolonial.
Fez parte da residência de artistas do MAM RIO 2021. Ganhou o Prêmio 67º Salão Paranaense do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR) e foi finalista do Prêmio Sim de Igualdade Racial, na categoria Arte em Movimento. Recentemente, em Kunstraum Innsbruck, Áustria, participou da exposição individual Ressurgences of Amazon, junto com Emerson Uýra. Em 2020, foi selecionada com o projeto Museu da Silva para a 30ª edição do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Participou, com Janaú, da Bienal Nirin em Sidney (com curadoria de Brook Andrew), com o vídeo da Marcha das Mulheres Indígenas (2019), do Seminário de Histórias Indígenas do MASP (2019), da Exposição Agosto indígena (São Paulo, 2019) e, em 2019, em Niterói, da Teko Porã na exposição coetiva Re-antropofagia, com curadoria de Denilson Baniwa e Pedro Gradella, no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2018, foi indicada ao Prêmio de Arte e Educação da Revista Select, pelo projeto II Bienal do Ouvidor 63, ocorrido na maior ocupação artística de São Paulo. Recentemente lançou o seu livro O sonho da Buya-wasú, pela editora Miolo Mole.]
Texto: Vãngri Kaingáng
Ilustração: Arissana Pataxó
O sol surgiu cedo na aldeia de Nenkay. Os raios despontaram entre as frestas da oca de sua mãe. O jovem se ergueu para olhar o que restou do fogo. Sentiu as brasas ainda quentes, lembrou da vida na floresta, seus rios e céus. Apanhou dois pedaços de lenha, soprou as cinzas e colocou algumas toras sobre as brasas. Imerso em pensamentos, avivou o fogo e saiu apressado para a nascente, onde todos os dias tomava o seu banho.
Pelo caminho, Nenkay observou os pássaros riscarem o céu e, mais adiante, ouviu barulhos entre os arbustos, bichos correndo pelo chão da floresta cheia de vida. Até que chegou à nascente, onde a água límpida borbulhava no poço profundo escavado por ele e por seus irmãos. Era uma fonte tão bela quanto a sua aldeia, onde os rios se perdiam pela mata, ressoando com o canto dos pássaros. Mergulhou então naquele poço de águas transparentes e nadou, imaginando os animais que por ali poderiam viver, nos rios e nas grandes lagoas. Tinha em mente descobrir o segredo das águas seguirem tão longe quanto o vento.
Após o banho matinal, o jovem kaingáng voltou para casa e se sentou ao redor do fogo. Os irmãos se levantaram enquanto as chamas ainda crepitavam. A mãe lhe ofereceu mandioca quentinha com torresmo, pão de milho e café de brasa. Depois de saborear sua refeição, Nenkay foi com o pai e os irmãos buscar lenha. E caminhou pelo longo dia, carregando os fardos da floresta até sua casa. Cansadíssimo, só parou para almoçar no final da tarde. Terminadas as tarefas, foi tomar seu banho.
À noite, o jovem permaneceu sentado por um certo tempo, de olho na fogueira. Aquela lenha toda, recolhida ao longo de um árduo dia de trabalho, ardeu e aqueceu o seu corpo até o sono bater. Deitado, lembrou-se do frescor do poço pela manhã; pareceu ainda ouvir os seus sonidos. Nenkay sonhou submergir naquelas águas e encontrar animais misteriosos. Foi uma experiência tão nítida que, ao acordar, não pôde se desvencilhar daquelas sensações todas que o levaram ao mundo mágico das águas.
Certa manhã, o jovem foi cedo ao rio Ligeiro admirar a sua correnteza veloz, que lhe justificava o nome, extensivo à sua aldeia. Pensou o quão profundas poderiam ser suas águas. Tinha curiosidade em saber até onde os raios do sol eram capazes de penetrar. Seria ainda mais escuro e frio? Havia mesmo algum animal subaquático descomunal adormecido? Essas e outras questões pipocavam em sua cabeça.
Nenkay lembrou das narrativas dos velhos ao redor da fogueira. Das histórias que contavam sobre uma grande cobra sob as margens do rio Ligeiro, sua morada naquele poço sem fim, tão profundo que som algum emitiria caso alguém nele tombasse. As crianças até evitavam tomar banho de rio sozinhas, assombrados pela possibilidade de serem devoradas pela cobra colossal que comia gente.
Talvez fossem apenas histórias de velhos. Mas ele próprio sentia que as florestas abrigavam animais sagrados e protetores. Como a cobra grande que zela pelos rios, cachoeiras e mar. E se há animais assim sob as águas, outros existem sobre as terras. Embalado pelas reflexões e pelo rumor do rio Ligeiro, adormeceu o jovem sob a sombra das árvores. Uma vez mais, sonhou. E o espírito das águas o levou a lugares distantes, ao encontro daqueles que jamais imaginou conhecer.
Nenkay acordou com o murmúrio do grande rio amado, sob as águas que sentia como extensão do próprio corpo. Medo algum o impediu de mergulhar mais fundo. Corpo e alma ficaram serenos no silêncio das águas, mesmo sem saber de onde elas vinham e para onde corriam. Seriam quantas suas cascatas e cachoeiras? Chorou por ser capaz apenas de sonhar e suas lágrimas se misturaram ao grande rio. Voltou ao lar amargurado, fez sua refeição e foi se deitar sem dizer qualquer palavra sobre o que havia vivenciado.
A mãe de Nenkay, sempre atenta aos seus passos e semblante, observou que o filho tinha se tornado um homem. E acompanhou o seu coração alegre tornar-se um pouco mais triste, embora a esperança e a capacidade de sonhar com as magníficas águas brilhantes resistissem.
Nenkay, que não deixou de brincar com pequenas frutas após tantos anos, depois de abrir e tirar o miolo de um pente-de-macaco fez um pequeno barco, que encheu de formigas e entregou à correnteza. Motivado, resolveu fazer uma canoa do seu tamanho para poder chegar ao meio do rio sem precisar nadar até cansar. Assim ele seria capaz de admirar tanto a beleza da paisagem que muito amava quanto dormir sobre as águas.
A partir do engenho traçado, procurou pela floresta a madeira mais adequada à embarcação, capaz de suportar o seu peso. Mas o tempo corre como um rio, diversas canoas falharam, não suportaram a carga e afundaram com seu desejo. Só quando ficou mais maduro pôde enfim anunciar aquela que seria capaz de levá-lo até o meio dos rios, afluentes e bacias intermináveis. A canoa, muito bem planejada, tinha lugar para sentar e espaço para levar algumas coisas.
A família toda chorou, irmãos e irmãs, quando ele pediu a bênção dos velhos pais e se dirigiu ao lugar onde estava a canoa. Nenkay nunca quis se casar, rejeitou todas as moças que sua mãe lhe apresentou. E agora, o que lhe reservaria o futuro? Quatro kaingáng carregaram sua canoa até o rio, que era mais profundo naquela época. Uma vez lá, a canoa foi jogada na água. Quando Nenkay entrou, ela se manteve estável. A seu comando, os companheiros largaram os cipós que a prendiam e a embarcação começou a descer a correnteza, lentamente, controlada somente por uma longa taquara que chegava até o leito. Nenkay, de pé em seu barco, acenou aos parentes, triste pela despedida, mas alegre por finalmente conseguir flutuar sobre aquelas águas, prestes a conhecer todos os rios e seus segredos, após anos de grande expectativa.
E lá se foi a canoa cortando o rio Ligeiro, de madeira leve e clara, tão bem entalhada que gota alguma dentro dela respingou. Com preciso domínio da navegação, Nenkay gritou aos parentes que seguiria seus sonhos. Entre acenos e choros da família, com a taquara alavancou a embarcação da margem à correnteza. E assim remou, por horas e horas, até estacionar à beira de um barranco em uma das margens.
Aproveitou a parada para descansar e comer um pouco dos alimentos que sua mãe colocou em um cesto, no fundo da canoa. Depois, sentou-se junto a uma árvore para pensar. Teria que tomar o longo caminho de volta em algum momento?
Nenkay adormeceu por um longo tempo, embalado pelo tremular das águas. E sonhou mergulhar com animais que logo chamou de peixes, cujos corpos não lhe pareciam estranhos. Eles não tinham pernas. Para compensar, tinham um rabo, com o qual podiam nadar com tamanha agilidade que Nenkay mal podia tocá-los, apenas se confundir com a beleza estonteante das suas cores.
Quando acordou, fitou o fluxo das águas novamente e caminhou até se distanciar do rio. Encontrou e limpou o local mais adequado para um descanso. Fez o seu fogo, lembrou dos sonhos e dos peixes. Era estranho que aqueles belos animais não habitassem os rios, exceto nos seus sonhos. Não fazia sentido. Depois de amarrar sua canoa com todo o cuidado, Nenkay passou boa parte da noite à procura de comida. Depois de se alimentar e deixar tudo arrumado, deitou-se na cama improvisada. Embora já fosse tarde, custou a dormir. Acompanhou os ruídos dos grilos, o coaxar dos sapos e os passeios noturnos das corujas, lagartos, macacos e uma infinidade de outros bichos, até por fim adormecer.
Levantou cedinho na manhã seguinte, tomou um banho rápido, fez a refeição, desamarrou sua canoa e seguiu novamente pelo rio, observando os animais pelas margens e barrancos. Até onde se estenderia a beleza daquela paisagem? Até a foz do Ligeiro? Navegou por muitos dias e noites. Só parou para um mergulho, quando avistou uma bonita cascata, rodeada de enormes coqueiros apinhados de frutos perfumados, abundância que o fez lembrar da infância na sua aldeia. Uma vez mais, mesmo ao mergulhar fundo até cansar, foi incapaz de avistar qualquer peixe.
Nenkay escolheu uma daquelas palmeiras e começou a escalada. Os cachos mais atraentes eram os mais altos, mas isso não o intimidou. Ao contrário, sentiu-se até mais encorajado, apesar do vento crescente, quando chegou mais próximo da copa. Até que uma rajada inesperada sacudiu a palmeira violentamente. Na queda não houve dor. Ele apenas sentiu o baque do próprio corpo sobre as pedras, a vida a escorrer feito água.
Tope, o Criador, esta história toda acompanhou. Mais do que ninguém, conhecia os sonhos do guerreiro kaingáng. Por esse motivo, ordenou ao espírito do rio que guardasse o corpo de Nenkay sob as suas águas. E da sua cabeça fez surgir um vasto cardume de peixes de todas as cores, tamanhos, formatos e texturas que rapidamente povoaram todos os rios, servindo de alimento ao nosso povo, até chegarem aos mares mais distantes.
Desde então, Nenkay vive nos sonhos de todos os Kaingáng.
Vãngri Kaingáng, nasceu na aldeia de Ligeiro, município de Tapejara, Rio Grande do Sul. É artista plástica, professora, escritora e militante da causa indígena. Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e graduanda de Medicina na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Como educadora bilíngue pelo Instituto Kaingáng na aldeia Serrinha, trabalhou com arte-educação na produção de material didático e cartilhas ilustradas, no contexto educacional da Escola Estadual Fág Kawá. Com o Ponto de Cultura Indígena Kanhgág Jãre, teve iniciativas premiadas e reconhecidas no Prêmio Cultura Viva e no Prêmio Escola Viva.
Participou da Antologia Indígena, organizada pelo Núcleo de Escritores Indígenas do Instituto Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI); do livro de poesias publicado pela Secretaria de Cultura de Mato Grosso, especialmente para a 1ª Feira do Livro de Mato Grosso (FLIMT), em 2009; Jóty, o tamanduá, reconto tradicional do povo Kaingang (Global Editora/Editions Reflets d’ailleurs) foi finalista da 1ª Bienal Continental das Artes Indígenas Contemporâneas (México, 2012: Museu Nacional da Cultura Popular); publicou também Estrela Kaingáng, a lenda do primeiro pajé (Editora Biruta), entre outros títulos. Fez grafismos e tradução para a Rede Globo de Televisão, no núcleo indígena da novela Araguaia, escrita por Walther Negrão, exibida entre 2010 e 2011. Entre muitos trabalhos educacionais, participou do projeto Povos da Floresta, em conformidade com a lei 11.645/08 em escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro. Foi coordenadora da produção do maior cesto indígena já produzido por diferentes povos, que ficou em exposição no Museu de Arte Moderna (MAM), de agosto a setembro de 2013. Ministrou oficinas de tecelagem para peças de adornos com grafismos em diferentes aldeias do norte do Rio Grande do Sul. E participou de projetos educacionais envolvendo as quatro escolas da comunidade de Serrinha, pelo Instituto Kaingáng e pelo INBRAPI.
Arissana Pataxó é artista visual e professora. Filha de Meruka e Wilson (em memória), de etnia Pataxó, com quem compartilhou seus primeiros processos artísticos ainda durante a infância. Atua na educação escolar indígena desde 2002. Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em Artes Plásticas em 2009 pela mesma instituição. Ao longo de seus estudos desenvolveu atividades de extensão de arte-educação, oficinas e produção de material didático com o povo Pataxó e outros povos indígenas da Bahia. Sob o olhar Pataxó foi sua primeira exposição individual no Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA, em 2007.
Desde então, tem participado de diversas exposições tais como o Salão Regional de Artes Visuais de Porto Seguro (Bahia, 2009), a exposição internacional Eco Arte no Museu de Arte de Montenegro (Rio Grande do Sul, 2011) e, mais recentemente, da exposição itinerante Mira! Artes visuais Contemporâneas dos Povos Indígenas (Belo Horizonte, MG, e Brasília, DF, em 2013 e 2014). Foi a segunda colocada no Prêmio PIPA 2016.
Texto: Darlene Yaminalo Taukane
Ilustração: Naine Terena
Numa pequenina aldeia nasceu Pino, um menino que desde miúdo revelou uma natureza especial e um bom coração.
Pino cresceu com talento criativo, disposto sempre a ajudar a mãe nos afazeres domésticos. A sua atividade mais costumeira era apanhar lenha — na mata, podia treinar a pontaria, por horas a fio, para flechar passarinho em pleno voo. Tanto por lá se demorava que sempre levava um puxão de orelha da irmã mais velha. E prometia, só de boca, não fazer mais isso, porque aquele era o seu esporte preferido. Tornar-se um arqueiro de precisão era o seu grande objetivo. Por isso, também costumava ir ao rio para flechar os peixinhos.
O tempo passou e o jovem Pino adquiriu plena noção da cultura do povo Kurâ. Entre as muitas narrativas tradicionais que conheceu, a que mais o marcou foi a história de uma temível onça da região.
Certo dia, desejou saber mais sobre ela:
– Mãe, por que todos têm tanto medo dessa onça? E onde ela vive?
– Filho, não se meta com a onça. Até mesmo nós, que somos da família, evitamos ir à casa da sua irmã.
– Minha irmã? – Pino foi pego de surpresa – Mas o que ela tem a ver com isso?
E a mãe explicou:
– Você tem uma irmã que é casada com a onça. Nós não a vemos há muito tempo. O seu cunhado é nosso inimigo, ataca as pessoas sorrateiramente. Muito cuidado ao perambular sozinho, meu filho. Dizem que a onça fica à espreita, observando e aguardando um momento de distração para atacar. Por favor, não vá muito longe nas suas andanças!
Após a conversa com a mãe, Pino passou a noite matutando. Poderia mesmo se apresentar, mesmo sabendo da sua índole e habilidade, sem que o cunhado reagisse? Queria mesmo fazer uma visita à casa da irmã, e duvidava que seria atacado diante dela.
Antes de tudo, foi preciso se preparar física e espiritualmente. Pediu ao avô que confeccionasse boas flechas, um arco potente de madeira e cordas bem resistentes. Todos os dias, lá na floresta, praticou escalada. Na árvore mais alta, subiu e desceu até cansar. Algumas vezes, quando alcançava a copa, trocava de árvore. Com o mesmo empenho, foi ao rio nadar e mergulhar por longas horas, para ganhar resistência e fôlego. Com os pais e avós aprendeu a se benzer e a agradecer aos elementos da natureza para enfrentar os desafios.
Enfim, o momento chegou. Pino anunciou aos pais:
– Amanhã, saio cedo. Vou visitar e me hospedar na casa da minha irmã.
A mãe e o pai olharam para ele com compaixão.
– Você tem certeza, Pino? – perguntou o pai. – Quer mesmo enfrentar uma onça que mete medo em tanta gente?
E a mãe emendou:
– Nós admiramos a sua coragem, meu filho. Mas você é muito jovem. E
eu não quero te perder.
– Fique tranquila minha mãe. Vou à casa da minha irmã e do meu cunhado com espírito de paz. Nada de afronta, só quero conhecê-los pessoalmente.
Diante da confirmação, sua mãe se aproximou:
– Pino, para muito além do nosso mundo, há perigos de todo tipo. Você precisa estar sempre atento por onde for, está bem? Seja cuidadoso com seu corpo e com a sua alma.
Quando o sol clareou no horizonte, Pino já tinha preparado a bagagem. Benzeu o corpo e partiu. Seguiu à risca a rota e as orientações transmitidas pelo pai, para que chegasse bem ao seu destino. Toda vez que reconheceu um lugar, conforme as suas dicas, deixou uma flecha cravada em uma árvore, para indicar o caminho de volta.
Quando a tarde começou a cair, apressou-se em escolher uma árvore imponente, para lá em cima armar a sua rede. De madrugada, Pino acordou e cantarolou algumas músicas de agradecimento pela noite tranquila e por aquele momento de vida.
Pela manhã, Pino subiu até a copa, de onde se maravilhou com a beleza e a imensidão da paisagem. Em meio às árvores, avistou uma fumacinha ascendente, que logo reconheceu como um sinal de presença humana.
Animado, Pino certificou-se de que estava na direção certa. E calculou
que chegaria até antes do previsto à aldeia da irmã.
Ao completar o percurso, já naquela aldeia tão pequena quanto a sua, perguntou ao primeiro morador que encontrou onde ficava a casa da sua irmã. E para lá se dirigiu. A irmã o reconheceu de imediato. E também o acolheu muito bem. Quando teve oportunidade, é claro, perguntou sobre o cunhado. Ela lhe respondeu que ele tinha saído cedo para caçar, mas que estaria de volta antes de anoitecer. Restou ansiedade e curiosidade.
O cunhado chegou bastante carregado. E jogou toda caça bem perto da
rede do Pino. Diante disso, a esposa comentou:
– Cuidado, bem ali está o meu irmão, que veio nos visitar.
E o marido se desculpou, com áspera ironia:
– Ah! Eu não sabia que tinha visita. Pode ficar tranquilo, meu cunhado,
continue a descansar na sua rede.
Pelo comentário, Pino percebeu que o cunhado não estava muito contente com a visita. Num dado momento, levantou-se e foi lá para fora. Quando retornou, trouxe dois vagalumes, que manteve na sua rede. Quando o sono chegou, o jovem kurâ ajeitou os insetos sobre as pálpebras e adormeceu. Durante a noite, o cunhado levantou-se para conferir se o Pino estava dormindo. Assim fez inúmeras vezes, mas sempre dava com aqueles olhos brilhantes incansáveis.
Houve um momento em que Pino acordou e sentiu acima de rede o olhar felino do cunhado:
– Você está sem sono, cunhado?
E ele respondeu:
– Não, meu cunhado. Eu apenas zelo por você. Quero que durma bem.
De manhãzinha, Pino se espreguiçou:
– Nossa, como é bom dormir na casa dos parentes! Esta noite foi muito boa…
O cunhado ficou uma fera quando viu o jovem tirar os insetos das pálpebras. Ele tinha sido enganado pelo brilho dos vagalumes. “Que disgrama, eu podia tê-lo devorado!”, pensou a onça.
No dia seguinte, conforme programado, Pino arrumou sua bagagem: a rede de dormir, arco, flechas e outras coisas. O cunhado ficou de olho na sua movimentação. Mas Pino, fingindo não perceber o olhar furtivo da onça, agradeceu a hospedagem, anunciou sua partida e se despediu do casal.
Seguiu pela mesma trilha da chegada, atento às flechas, caminhando sereno por um longo tempo. Porém, à certa altura, o jovem kurâ percebeu que não caminhava só. Lembrou-se do rio mais adiante e decidiu apertar o passo. Quando finalmente chegou às margens, rapidamente descarregou os pertences. Mas o cunhado logo pulou na sua frente, obrigando Pino a declarar:
– Que bom que você veio me acompanhar! Muito obrigado!
– Foi a sua irmã que pediu para eu te acompanhar.
– Você não veio me acompanhar, meu cunhado. Veio é me intimar. Quem cruza contigo pelo caminho, não costuma voltar para casa. Mas não é o meu caso, não tenho medo de você.
O cunhado, enfurecido pela ousadia do rapaz, avançou. E eles lutaram violentamente. Quando Pino percebeu que já não tinha mais forças, cravou seu punhal feito de osso no coração da onça. E depois se benzeu.
Daquele dia em diante, nunca mais animal algum submeteu os humanos. Nem mesmo as onças. E, nós, ficamos com o compromisso de preservar todas as espécies da natureza.
Darlene Yaminalo Taukane, é natural da aldeia Pakuera, do território da Terra Indígena Bakairi do Município de Paranatinga-MT, da etnia Kurâ Bakairi.
Estudou na escola da aldeia até os quinze anos e, quando completou dezessete, foi estudar no Colégio Internato Congregações das Irmãs Franciscanas. Estudou no Colégio Coração de Jesus em Rondonópolis, no Mato Grosso, para cursar magistério (1982 – 1984).
Entre 1989 e 1992, para prestar vestibular e cursar o ensino superior, foi morar em Cuiabá-MT. Cursou Licenciatura Plena em Letras, pela Universidade de Cuiabá (UNIC). No período de 1994 a 1996, fez pós-graduação em Educação
na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), na área de Concentração: Educação Pública, Educação e Sociedade/Educação Indígena, tornando-se a primeira indígena a conquistar o título de Mestre em Educação.
Juntamente com Isabella Rosado Nunes, Daniel Munduruku e Mauricio Negro, Darlene Yaminalo Taukane é uma das organizadoras do livro Jenipapos: diálogos sobre viver, que traz depoimentos e narrativas de autoras e autores originários e reflexões sobre educação por especialistas convidados, indígenas e não indígenas. Obra que será lançada em novembro na FLIP, em Paraty, pela pela Mina e pelo Itaú Social.
Naine Terena de Jesus é mestre em artes, doutora em educação, graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Mulher do povo Terena, é pesquisadora, professora universitária, curadora e artista-educadora. Desde 2012 movimenta um empreendimento cultural chamado Oráculo Comunicação, Educação e Cultura que fomenta a participação ativa de minorias no mercado sociocultural. É organizadora da coletânea de escritores indígenas Tempos (Ed. Sustentável, 2021). Naine foi uma das cinco finalistas do Jane Lombard Prize for Art and Social Justice, oferecido em 2019, pela Vera List Center for Art and Politics, de Nova York (EUA).
Agraciada como mestre da cultura de Mato Grosso (Brazil, 2020/2021). Curadora da exposição Véxoa – Nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo, e de um dos núcleos do Festival Desenho Vivo, tendo composto a equipe curatorial do Circuito Urbano de Arte (CURA), da exposição virtual Rec-Tyty, do Cine Curumin e foi membro da comissão julgadora da 13ª Bienal Internacional de Arquitetura. É docente da especialização em Gestão Cultural – Ampliação de Repertórios do Instituto Itaú Cultural e do mestrado Intercultural Indígena da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). É pesquisadora no Labtecc/UFMT e pesquisadora do projeto DECAY, financiado pelo Riksbankens Jubileumsfond. Visite o repositório Prêmio Ms Cultura MT 2021 para conhecer mais sobre suas produções.
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