Existem os sambas bonitos e, num degrau acima, os sambas de Dona Ivone Lara

15/04/2023

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Existem os sambas bonitos e, num degrau acima, os sambas de Dona Ivone Lara

Por Lucas Nobile
Jornalista, crítico musical, pesquisador de cinema e autor de “Dona Ivone Lara: A Primeira-dama do Samba” (Sonora Editora). Foi consultor da Ocupação Dona Ivone Lara do Itaú Cultural em 2015. Participa como co-curador da deste projeto.

Noite de 3 de setembro de 2015. Quando eu e Yvonne da Silva Lara nos sentamos no salão da Livraria Cultura, em São Paulo, para autografar “Dona Ivone Lara: a primeira-dama do samba”, ela esboçou um sorriso e soprou em meu ouvido: “Deus queira que esse povo todo se emocione com seu livro da mesma maneira que eu me emocionei, meu filho”.

O primeiro presente da noite estava garantido. O segundo era escrever dedicatórias tão generosas quanto todas aquelas pessoas que haviam dedicado parte de seu tempo para estar ali a fim de garantir uma foto-lembrança com aquela senhora de 93 anos, consagrada no universo do samba e considerada uma das maiores compositoras da história da música popular brasileira. Admiradores e admiradoras de diferentes Estados esperavam por mais de duas horas numa fila que serpenteava pelo andar principal da livraria e contornava parte externa do imenso prédio do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista.

Ao término daquela extensa sessão de autógrafos, fui para casa com a sensação de missão cumprida e de ter colocado um ponto final naquela história. A percepção se revelaria um tanto quanto ingênua e equivocada. Há quase oito anos, desde o lançamento do livro em 2015, o assunto Dona Ivone Lara permanece aceso e vivo em mim cotidianamente. De lá para cá, vieram uma exposição realizada pelo Itaú Cultural (visitada por mais de 30 mil pessoas), palestras, uma série de entrevistas e de artigos escritos para diversos veículos e publicações, a elaboração de um documentário e de uma cinebiografia, ambos ainda em fase de realização.

E, agora, o convite do Sesc Mogi das Cruzes para compartilharmos a curadoria da mostra Dona Ivone Lara: Axé! 100 anos de legado e vanguarda da Rainha do Samba. Iniciativa fundamental e à altura da homenageada no encerramento dos festejos de seu centenário de nascimento.

Em complemento a tantas atividades formativas – como oficinas e mesas de bate-papo – propostas pela equipe do Sesc Mogi, me coube o exercício de conceber e assinar a direção artística dos shows que compõem a Mostra; uma construção conjunta com o diretor musical, arranjador e maestro Henrique Araújo, a quem sou imensamente grato.

Além do espetáculo de abertura com Fabiana Cozza – realizado a partir do excelente disco “Canto da noite na boca do vento” (2019) –, desenhamos três shows inéditos com diferentes recortes de repertórios e de sonoridades. Oportunidade única de explorar e revelar as múltiplas facetas de uma artista cuja formação musical é das mais completas do Brasil.

Seja pela voz de Adriana Moreira interpretando na íntegra o álbum “Samba, Minha Verdade, Samba, Minha Raiz” – primeiro disco de Dona Ivone Lara que completa 45 anos de lançamento no mês de abril –, seja por Ilessi cantando composições feitas exclusivamente por Dona Ivone – com músicas e letras criadas apenas por ela, sem a colaboração de seus geniais parceiros –, seja pelo regional de choro tocando as melodias mágicas da Dama Dourada, todos os aspectos e nuances da obra de Dona Ivone Lara estão presentes em sua inteireza nesta Mostra.

Dos jongos aos choros, dos cantos orfeônicos aos partidos-altos, passando por marchas-rancho, sambas de enredo, valsas e sambas de terreiro: as melodias, as harmonias, os ritmos, os cantos e os contracantos de Dona Ivone estão todos ali enredados num amálgama tão complexo quanto popular.

Uma teia de canções de rara beleza sonhada coletivamente na intenção de que a obra e a memória de uma das maiores compositoras do Brasil siga povoando o imaginário brasileiro ao longo dos próximos 100 anos.

Criações de uma mulher preta que nasceu 33 anos e 11 meses após a Abolição. Neta de escravizados e escravizadas que vieram de Moçambique e de Angola. Compositora por natureza e essência, solfejou seu primeiro samba na aurora da infância para a adolescência, aos 12 anos. Mas dedicou-se exclusivamente à carreira artística somente aos 56. Num generoso interlúdio de 37 anos, dedicou-se a cuidar de pessoas com distúrbios mentais, como integrante da equipe formada por outra pioneira, a psiquiatra Nise da Silveira.

Criações daquela que em fevereiro de 1965 tornou-se a primeira mulher a compor e a vencer o concurso de samba de enredo por uma escola do Grupo Especial do Carnaval do Rio de Janeiro, o Império Serrano.

Criações da autora que entregou a um país uma dezena de sucessos até hoje cantados nas rodas. A saber, pois tal feito não acontece a toda hora: “Sonho meu”, “Acreditar”, “Alvorecer”, “Nasci pra sonhar e cantar”, “Liberdade” (todos em parceria com Delcio Carvalho), “Enredo do meu samba” e “Tendência” (ambos com Jorge Aragão), “Mas quem disse que eu te esqueço?” (com o poeta Hermínio Bello de Carvalho), “Tiê” (com os primos Hélio e Fuleiro) e “Os cinco bailes da história do Rio” (o memorável samba de enredo feito com Silas de Oliveira e Antonio Bacalhau).

Para além dessas dez mais conhecidas e de instantânea aceitação popular, a mesma autora deixou gravadas outras 140 obras de igual excelência e que merecem ser mais ouvidas. Um cancioneiro para o qual a escala dos quilates talvez ainda se prove insuficiente. Pois, afinal, existem os sambas bonitos e, num degrau acima, os sambas de Dona Ivone Lara.

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