O avesso do mesmo lugar: artes, negritudes e os caminhos do 13 ao 20

18/07/2019

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Por Hélio Menezes*

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu

Nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar de Aracati.

Assim cantou a Mangueira na avenida, enquanto desfilava o samba-enredo História para ninar gente grande, no carnaval de 2019. Anunciando uma revisão da história do país ao reconhecer protagonismo a quem protagonista foi – negros, indígenas, pobres –, o Brasil da música da Estação Primeira tem rosto indígena do sertão e RG de mulher negra quilombola. A letra faz ainda menção a Francisco José do Nascimento, líder jangadeiro e abolicionista, símbolo de resistência. A liberdade, nessa versão verde-e-rosa da história, se confunde com sua própria figura negra, em substituição à imagem da dadivosa princesa branca – aquela que, após sofrer pressões políticas por todos os lados, assinou a lei dita áurea (mas de brilho tão acanhado…). A lei, desacompanhada de qualquer política de reparação e inserção socioeconômica dos ex-escravizados, pôs termo formal à escravidão – sem mexer, contudo, um centímetro no conteúdo e estrutura que seguraram a escravidão por mais de 300 anos em território brasileiro.

Os jornais da época anunciavam o fim do cativeiro com a linguagem típica do racismo à brasileira, de um crime perfeito, como definiu Kabengele Munanga, que se manifesta à frente de todos, embora (ainda) pareça invisível a tantos. “Sanccionado o projecto que extingue a escravidão no Brazil, encerrou-se o periodo negro da nossa Historia”, noticiava o jornal O Paiz a respeito da Lei Imperial no 3.353, de 13 de maio de 1888. A insistência em usar “negro” como qualitativo para algo inferior, malvado ou vergonhoso deixa entrever como, por detrás da manchete jornalística, se manifestava o desejo de localizar os negros como dado do passado, fora dos projetos de construção de cidadania e futuro.

Essa não foi a primeira vez que a Mangueira questionou o 13 de maio na avenida. Três décadas antes, no centenário da abolição, a escola de samba havia cantado o enredo 1988 – 100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão. E já na primeira estrofe da canção, lançava a pergunta:

Será que já raiou a liberdade

Ou se foi tudo ilusão

Será, oh, será

Que a lei áurea tão sonhada

Há tanto tempo assinada

Não foi o fim da escravidão?

O ano de 1988 foi mesmo dessas datas singulares no Brasil. Animados pela efeméride dos cem anos da abolição incompleta da escravatura, foram organizadas centenas de eventos comemorativos, entre filmes, espetáculos musicais, livros, exposições, missas de ação de graças. A maioria dos eventos buscava celebrar o “negro-tema”, como diria o sociólogo Guerreiro Ramos, deixando de lado o “negro-vida”: mais importava festejar os produtos de origem negra no campo da cultura (samba, capoeira, culinária, religiosidade) do que reconhecer seus produtores. Assim, nas celebrações governamentais, houve pouco espaço para os temas difíceis do racismo persistente e da enorme desigualdade racializada de acesso a bens, serviços e direitos entre nós.

Por outro lado, 1988 foi também um ano de forte presença e rearticulação dos movimentos negros em várias frentes de atuação. Ao passo que o governo caprichava na festa, negros e negras organizavam a histórica Marcha Contra a Farsa da Abolição, no centro do Rio de Janeiro. Debates, publicações e protestos foram convocados por todo o país, impondo à agenda política os temas de urgência que os eventos oficiais buscavam desviar. Na contramão da via pública, se expunha em plena rua a fissura racial que rasga, desde a invasão portuguesa de 1500, o esgarçado tecido social brasileiro. Em outdoors à época se lia o recado, promovido pelo Movimento Negro Unificado: “a princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho”. As palavras de ordem nos cartazes ecoavam, insistentemente: “Zumbi sim; princesa Isabel, não!”. O 13 de maio era substituído, em definitivo entre as populações negras, pelo 20 de novembro como data de reconhecimento e relevância.

No campo das artes, uma exposição organizada por Emanoel Araújo e Carlos Eugênio Marcondes Moura no MAM-SP viria a se tornar um marco, um ponto de inflexão fundamental. A mão afro-brasileira tomava a autoria negra como guia expositivo e critério curatorial em grande escala pela primeira vez no país. O historiador Joel Rufino definiu a empreitada de maneira sintética: tratava-se de “exibir como negro quem negro foi”. Fruto de uma extensa pesquisa de mapeamento de artistas negros e negras que atuaram no Brasil do século XVIII ao XX, a exposição elencou nomes que haviam sido apagados, anonimizados ou branqueados na história oficial das artes, além de ter jogado luz sobre uma importante produção negra contemporânea. Lançava-se ali um programa expositivo de longa duração, afinado a um movimento mais amplo de crítica e revisão dos modos muito masculinos, brancos e marcados por olhares colonialistas de se contar a história, inclusive a da arte.

Iniciativas anteriores, como o Museu de Arte Negra, fundado por Abdias Nascimento na década de 1950, nunca chegou a lograr uma sede própria, embora tenha se configurado como importante marco histórico na tensa relação arte – raça – museus no Brasil. O cenário contemporâneo, no qual assistimos a uma multiplicidade de artistas, curadores e exposições mais diversos, num momento de sopro e oxigenação das artes, é evidentemente tributário dessas realizações que nos precederam. Essa pluralidade de olhares vem resgatando nomes que estiveram apagados, à margem ou em gavetas empoeiradas da história. Vem também revelando e trazendo expressões artísticas até então ignoradas para o centro de grandes instituições e do mercado de arte.

Nomes como Rosana Paulino, Jaime Lauriano, Dalton Paula, Ayrson Heráclito, Michele Matiuzzi, Jota Mombaça, Sônia Gomes e Paulo Nazareth, para citar apenas alguns, vêm produzindo uma ampla gama de estéticas, interesses, suportes e técnicas, numa variedade que invalida qualquer capacidade unificadora que a expressão “arte negra” poderia pretensamente abarcar. São tão variados os seus campos de interesse que a expressão, fora do terreno de disputa política, carece de força explicativa. Parte dos artistas negros contemporâneos – não todos, é preciso sublinhar – têm cruzado arte e engajamento político em suas poéticas, disputando narrativas hegemônicas e reposicionando as imagens numa arena de disputa simbólica e material. Por meio de revisitas críticas à história do país e da arte, questionam os imaginários e estereótipos sociais que nos circundam, com desejo de intervir sobre o real. Trata-se de trabalhos que vêm revirando o passado e criticando o presente, em busca de fabulações de um devir, de um futuro menos morto.

Tomemos a faixa “Onde estão os negros?” da Frente 3 de fevereiro, um coletivo artístico antirracista baseado em São Paulo, como exemplo. A obra integrou a exposição Histórias Afro-Atlânticas, ocupando temporariamente as fachadas do Instituto Tomie Ohtake e, pouco depois, do MASP. No contexto de uma mostra ambiciosa, que reuniu cerca de 450 obras de mais de 220 artistas, a faixa mobilizava questões pungentes às instituições que a abrigaram: onde estão os negros na história da arte do Brasil? Qual a visibilidade dos artistas negros no sistema das artes, que questões sua obras têm mobilizado? E quanto a curadores, diretores, coordenadores negros? Onde estão os negros nas hierarquias dos museus, galerias, centros culturais e demais instituições de cultura e arte?

Apesar do “boom” recente, no campo das artes a passagem do 13 ao 20 está ainda em processo. Acelerado, mas ainda tímido tendo em conta a disparidade histórica. A “onda negra”, contudo, tem surgido do mar em forma de dragão, e não parece dar sinais de recuo ou ressaca. A mensagem é clara – no caso, escura: sob pena de afogar-se numa monótona contemplação narcísica, o mundo do cubo branco está sendo revirado pela presença negra. Ou, como cantou a Mangueira em meio ao carnaval: Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marieles, Malês!

* Hélio Menezes é antropólogo, atua como pesquisador, crítico e curador. Graduado em Relações Internacionais e em Ciências Sociais pela USP, é mestre e doutorando em Antropologia Social. Vem desenvolvendo pesquisas sobre arte e política, lugares do corpo negro na arte brasileira  e teoria antropológica da imagem. Foi coordenador internacional do Fórum Social Mundial de Belém (Brasil, 2009), Dacar (Senegal, 2011) e Túnis (Tunísia, 2013). É curador de literatura do Centro Cultural São Paulo, curador do Museu de Arte Osório César e foi um dos curadores da exposição Histórias Afro-Atlânticas (MASP e Instituto Tomie Othake, 2018) e da mostra de performances Eu não sou uma mulher? (ITO, 2018).

De 13 de maio a 20 de novembro, todas as unidades do Sesc São Paulo oferecem ações artísticas, reflexivas, experimentais e formativas que abordam as lutas, conquistas, manifestações e realidades do povo negro. Acompanhe a programação completa aqui.

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