O direito ao refúgio caminha lado a lado com os direitos humanos

15/01/2019

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Foto: Divulgação

Texto: Gabriel Vituri

Ao longo da última década, tornou-se comum assistir a cenas de refugiados se lançando ao mar em embarcações improvisadas em busca de um novo país para reconstruir a vida. Mas as migrações forçadas no Mediterrâneo, embora representem uma boa parte dos problemas enfrentados pelos refugiados, é um exemplo dentro de um cenário ainda mais amplo e preocupante.

Hoje, estima-se que mais de 65 milhões de pessoas já foram forçadas a deixar seus lugares de origem. “Essa situação global evidencia a necessidade de solidariedade”, defende Isabel Marquez Daniel, representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no Brasil. Para a espanhola de 47 anos, que é formada em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade de Edimburgo, é preciso enfrentar o problema de maneira articulada, fornecendo subsídios para que os refugiados sejam acolhidos em seus novos países e possam de fato usufruir da nova oportunidade que lhes é oferecida.

Ela conversou sobre o tema com exclusividade para a revista Cadernos Sesc de Cidadania. Confira a seguir a entrevista.

Sesc: Por que a discussão sobre refugiados é uma questão urgente?

Isabel Marquez Daniel: Em todo o mundo, o deslocamento forçado causado por guerras, perseguições e violações dos direitos humanos tem atingido um número cada vez maior de pessoas, e isso é inaceitável. Já são mais de 65 milhões de pessoas forçadas a deixar seus lares e destas, mais de 22 milhões são pessoas refugiadas, que precisam ser protegidas e ter seus direitos assegurados. Os números são crescentes, elevadíssimos, e estamos falando de jovens, crianças, adultos e idosos que merecem viver com dignidade e respeito. Essa situação global evidencia a necessidade de solidariedade e de um objetivo comum que ajude a prevenir e a resolver as crises, dando às pessoas afetadas proteção e assistência adequadas.

Que particularidades a crise migratória e de refugiados do século 21 tem em relação a outras crises do tipo ocorridas ao longo da história da humanidade?

Os conflitos estão mais complexos e ocorrem simultaneamente em várias partes do planeta. Ao mesmo tempo, são mais duradouros e midiáticos, o que pode torná-los banais aos olhos da opinião pública. Não podemos conviver com essa situação. Há afrontas ao direito internacional e a sociedade continua a sofrer os impactos de decisões que violam os princípios humanitários. Em um mundo em conflito, é necessário determinação e coragem, e não medo. As políticas do século 21 deveriam trazer ações integradas e coordenadas em prol do ser humano, independentemente de sua nacionalidade, religião, etnia, orientação sexual ou opinião política.

De que forma as sociedades que recebem esses refugiados podem se preparar para as novas configurações sociais que estão surgindo?

Primeiramente, as sociedades de acolhida devem ver os refugiados não como números ou estatísticas, mas como as pessoas que são, com os conhecimentos e a cultura que trazem consigo, diante dos sonhos que pretendem realizar. É importante também que as diferenças sejam vistas não como ameaça, mas sim como uma curiosidade que nos enriquece culturalmente, que nos faz progredir na medida em que passamos a nos relacionar com os saberes e conhecimentos diversos que as pessoas refugiadas trazem consigo ao país de acolhida.

Assim, a resiliência, a capacidade de superar desafios e a determinação das pessoas refugiadas é que se sobrepõem às agruras de quem foi forçado a deixar seu país de origem em busca de paz, direitos e dignidade.

Hoje em dia, quais os maiores desafios enfrentados pelos refugiados? Como driblar isso?

Nos grandes deslocamentos que vemos, por exemplo, no Mediterrâneo e no Oriente Médio, um dos principais desafios é garantir um acesso seguro destas pessoas aos países de acolhida, evitando assim rotas mortais e intermediários exploradores, que se aproveitam da condição frágil e de instabilidade enfrentada pelos refugiados. Em situações de refúgio urbano, como é o caso do Brasil, o grande desafio é o da integração socioeconômica e cultural destas pessoas.

Para driblar estes problemas, o ACNUR atua com diferentes parceiros – no setor público e no setor privado – para permitir o acesso efetivo dessas pessoas a serviços e direitos básicos, inclusive saúde, educação e o sistema de refúgio justo e eficiente. Também buscamos promover soluções duradouras, como o reassentamento, a integração local e a repatriação voluntária. Outro aspecto importante é a estruturação de redes que possibilitam soluções conjuntas, respostas integradas e resultados satisfatórios diante as diferentes demandas. No Brasil, estamos bastante avançados neste aspecto, com redes estruturadas no poder público, no setor privado, na academia e na sociedade civil.

Em que medida o problema na América Latina se diferencia daquele enfrentado na Europa? A maneira de lidar também precisa ser diferente?

O ACNUR enxerga a América Latina como um cenário de práticas positivas, pois aqui há diálogo e soluções construídas conjuntamente entre vários países, como o caso mais recente da Declaração e Plano de Ação do Brasil [de 2014]. Trata-se de um mecanismo que orienta a resposta dos governos e da sociedade no período de dez anos, buscando reforçar o ambiente de proteção e assistência às populações sob o mandato do ACNUR. É uma iniciativa única e vista como exemplar pela comunidade internacional. A integração local na América Latina tem avançado. No Brasil, por exemplo, o solicitante de refúgio tem direito a carteira de trabalho e CPF provisórios para facilitar sua integração no país. As articulações com o setor privado trazem ao palco um ator fundamental para este processo, que cada vez mais assume compromissos que refletem a responsabilidade social corporativa.

Eu gostaria que você comentasse a ideia de que o direito ao refúgio é também uma questão de direitos humanos.

O acesso aos direitos é o que transforma uma lei em propriedade humana, onde o poder político se faz de fato representativo. O direito ao refúgio caminha lado a lado com os direitos humanos, sendo partes de um mesmo trajeto na medida em que a mobilidade humana deve ser uma garantia universal não restritiva. Ainda mais em situações extremas, como em conflitos armados, onde a pessoa ameaçada ou perseguida é obrigada a deixar seu local, estando privada de ter a vida que almejava, de manter uma perspectiva futura para si e para seus familiares por fatores externos. Dentro dessa perspectiva, é importante ressaltar o princípio da não devolução – non refoulement, do termo em francês –, garantindo a proteção internacional das pessoas que solicitam refúgio em qualquer parte do mundo ao reconhecer e assegurar seus direitos sem qualquer tipo de discriminação.

Ao que tudo indica, estamos vivendo a ascensão de uma onda mais conservadora e, por consequência, mais egoísta e autocentrada. De que maneira isso pode dificultar na construção de um cenário mais solidário com os refugiados e como contornar esse panorama mais sombrio?

Os dilemas globais da atualidade requerem respostas à altura, onde a integração dos mercados e dos capitais sejam acompanhadas por práticas de acolhimento humano. De acordo com dados do ACNUR, 55% dos refugiados no mundo são oriundos de três países: Síria, Afeganistão e Sudão do Sul. Do total de refugiados, 84% se encontram em países em desenvolvimento, sendo que crianças representam mais da metade dos refugiados no mundo. Fica claro que, em vez de construir muros, é preciso facilitar pontes. Políticas nacionalistas e restritivas ao acolhimento de pessoas em situações delicadas reforçam um isolamento cultural, social e intelectual que limitará o desenvolvimento, deixando de lado elementos que promovem a inovação, a troca de saberes e valores, a essência humana.

A respeito da sua experiência pessoal, existe alguma lembrança mais marcante do seu trabalho de campo que ilustra a urgência de lidar com esse problema?

Em 1997, eu trabalhava como Oficial de Proteção do ACNUR em Kinshasa, na República Democrática do Congo. Era mais um período conturbado na história deste lindo país, pois seu líder havia sido deposto por uma coalizão liderada pela oposição. Mas o arranjo que permitiu esta tomada de poder durou pouco tempo, e o Congo mais uma vez se viu em conflito com países vizinhos, representando um impacto humanitário ainda maior a uma população que já se encontrava em extrema situação de vulnerabilidade.

Nesta operação, fui confrontada com a perda de muitas vidas entre refugiados de Ruanda como resultado da violação do caráter civil e humanitário do refúgio. Esta experiência me marcou muito e me faz refletir sobre a necessidade imperiosa de que espaços de proteção e de trabalho humanitário sejam preservados em benefício das pessoas que mais precisam.

Como o ACNUR e outras entidades não-governamentais devem se relacionar com os governos para construir um panorama mais otimista na questão dos refugiados? Quais os maiores desafios dessa articulação?

O ACNUR, sendo uma agência das Nações Unidas, trabalha junto aos governos e à sociedade civil para auxiliar a formatação de políticas públicas adequadas e responsáveis, compartilhando nossas experiências globais e as diferentes articulações que realizamos também nas esferas regionais e locais. Este diálogo tripartite assegura a implementação de ações que impactam diretamente a vida das pessoas em condição de refúgio, que precisam ter seus direitos reconhecidos e considerados. Os maiores desafios residem na continuidade de políticas públicas e na adoção de novas diretrizes que respondam ao cenário atual de forma solidária e responsável. Em ambos sentidos, o governo brasileiro tem adotado exemplos de notórios avanços, como a assinatura dos acordos internacionais, a construção de uma lei nacional atualizada e o reconhecimento de emergências humanitárias que requerem medidas enérgicas, como o estabelecimento de vias legais alternativas ao refúgio para acolher pessoas em necessidade de proteção.

Para você, pessoalmente, o que significa encampar essa bandeira e trabalhar exclusivamente com o tema? Que perspectivas você enxerga em um mundo onde os refugiados sejam mais bem acolhidos?

Eu jamais escolheria outra profissão. É muito recompensador trabalhar para salvar vidas e melhorar a situação de pessoas em necessidade. Não existe nenhum outro trabalho que eu gostaria de ter.

Acredito que um mundo com refugiados integrados desde o princípio do seu processo de refúgio seria um mundo melhor, onde a inclusão se inicia já nas fronteiras e prossegue como forma de proteção e assistência. Isso permitiria que pessoas forçadas a se deslocar reconstruam suas vidas e contribuam para as sociedades que as acolhem.

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