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Karatê-dô: um projeto para a vida

Foto: Lucas Tannuri
Foto: Lucas Tannuri

Igor Luiz de Bello (1)

 

Oss! (*) O karatê pode nos trazer autoconhecimento, nossos pontos fortes e fracos. Manifestar-se no equilíbrio e levar ao kara, ou seja, ao “vazio”, vazio de plenitude. Karatê-dô significa: caminho das mãos vazias (dô = caminho, tê = mãos e kara = vazio). Esse caminho é buscado por meio de esforço, respeito, autocontrole. A busca pela perfeição é constante e, nas palavras do grande mestre do karatê Gichin Funakoshi, para tornar-se um verdadeiro adepto do karatê-dô é preciso atingir a perfeição em dois aspectos: o espiritual e o físico.

O projeto “Karatê para Idosos” apresentou-se na forma de alternativa de atividade, no Sesc Araraquara, como parte do Programa Esporte para Idosos, em sintonia com a equipe do Trabalho Social com Idosos (TSI), em 2013. Sabemos ser a quebra de preconceito um elemento importante no ineditismo dessa ação. Quebras de preconceitos e desconstrução de estereótipos são elementos fundamentais nas ações voltadas ao cidadão idoso, uma vez que possibilitam novos olhares e o deslocam para novos lugares no imaginário social. A ideia de que a prática da arte do karatê seja adequada somente para pessoas mais novas está no ar. A equipe entendeu que a ousadia deveria estar presente nessa proposta e partiu-se de importantes estudos sobre a população idosa praticante de exercícios físicos. A primeira questão surgida foi como apresentar a arte do karatê aos idosos? A opção seria aceita pelo público? 

Como primeira aproximação e sensibilização – durante uma reunião proposta como atividade do Trabalho Social com Idosos – oram apresentados vídeos sobre karatê. Um deles, particularmente, trazia imagens da prática de um grupo de idosos na cidade de Londrina. No vídeo, depoimentos sobre os inúmeros benefícios do karatê. Tal sensibilização trouxe reforço da possibilidade da prática do karatê na velhice. No início do projeto, além de estimular os idosos, tinha lugar a importância de informar os benefícios dessa atividade. Assim, um grupo de 20 idosos motivou-se a iniciar a prática. Alguns cuidados – como se deve fazer diante de qualquer população que pretende praticar atividade física – foram exames médicos e anamnese(2) minuciosa. Nesse primeiro momento optamos por não introduzir o uso do kimono para os praticantes, a fim de que a experiência pudesse acontecer de forma gradual.

Segundo Martins (2000), por intermédio do Modelo de Mudança Transteórico (instrumento de auxílio à compreensão da mudança comportamental relacionada à saúde), para a prática de atividade física passa-se por cinco estágios: estágio de pré-contemplação, estágio de contemplação, estágio de preparação, estágio de ação e estágio de manutenção. Observamos que a maior parte dos idosos que procurou o projeto estava no estágio de contemplação, quando o indivíduo conhece e sabe da importância, mas, ainda, não tem o compromisso com a prática efetiva. Por tratar-se de uma experiência, construiu-se a metodologia a partir do dia a dia. A opção foi iniciar as aulas utilizando kihons – prática dos movimentos individuais. Na repetição dos exercícios, busca-se aperfeiçoar os movimentos e torná-los naturais. Kata: exercícios formais. Em uma luta contra adversários imaginários, todo movimento tem uma aplicação prática, de defesa ou de ataque; e Kumitê: a prática do combate. Nessa aplicação de exercícios tradicionais e lúdicos, o objetivo é despertar o estágio de ação, aquele momento em que o indivíduo se empenha na prática de atividade física regular, incorporando-a em sua vida, porém com tempo de prática inferior a seis meses (MARTINS, 2000). Dessa forma, observou-se que no decorrer do tempo o grupo se empenhou e foi aos poucos incorporando o karatê em suas vidas. Em concordânciacom  Nakayama (2014), um karateka, por meio das práticas, pode dominar os movimentos do corpo: flexões, saltos, aprendendo a movimentação dos membros e do corpo para a frente e para trás, para cima e para baixo, de um modo livre e uniforme. Certamente, quando conseguimos manter o equilíbrio corporal e mental, há um incremento de qualidade nas atividades da vida diária. Desde janeiro de 2014 o curso tornou-se regular. Podem-se perceber os benefícios e o desejo de aperfeiçoarem-se. O kimono foi introduzido na prática por solicitação dos participantes. Observamos que o grupo se encontra na fase de manutenção, que, segundo a Teoria Transteórica, é aquela na qual os indivíduos incorporam a prática da atividade física em suas vidas, tornando- a um hábito.

Após um ano de prática, mais um grande desafio para essa turma: o primeiro exame de faixa. A ideia é que o grupo participe das mesmas dinâmicas propostas para todos os praticantes dessa arte marcial. Outros desafios estão por vir, já que receber a faixa preta se tornou desejo de parte do grupo. O projeto, atualmente, conta com homens e mulheres acima de 60 anos. A integrante mais idosa é Setsu Miyakawa, de 87 anos. Setsu já vivenciara o karatê na infância, nas aulas de educação física, no Japão.

“O karatê cria muita coragem, né? As doenças vão embora e tenho menos preguiça. Vou fazer karatê até morrer.” (Setsu, 87 anos, dois anos de treinamento)

Observamos que a cada dia a turma se torna mais forte e leva o karatê para além do dojô (3) . A prática é também um estímulo à qualidade de vida: alimentar-se de forma correta, evitar bebidas prejudiciais à saúde, a prática rotineira da atividade física; meios de promoção da saúde. O karatê traz a ideia da integralidade, uma vez que o praticante deve desenvolver-se dentro e fora do dojô. “Eu me sinto muito bem. Melhorou muito a minha saúde depois que eu comecei o karatê. Eu emagreci 12 quilos sem fazer regime. Antes de treinar karatê eu vivia caindo. Eu aprendi a me equilibrar e a firmar o pé. Desde que comecei a fazer o karatê eu nunca mais caí. O karatê mudou muito a minha vida.” (Alexandrina, 79 anos,dois anos de treinamento)

“Das doenças que eu tenho, duas que mais me aterrorizavam eram a disritmia cardíaca, pois quem tem sabe que é horrível, e o medo, o medo de trovão. Comecei a fazer o karatê e eu já estou dominando, já não tenho tanto medo e também já não tenho tanta disritmia, tanta aceleração, e o karatê foi o que melhorou muito a minha saúde. Eu tinha insônia, fibromialgia e tomava remédios. Hoje não tomo mais remédios e durmo muito bem.” (Cleonice, 64 anos, mais de um ano de treinamento)

“Eu sofria de depressão, tomava antidepressivo. Tratei com uma psiquiatra por dois anos, mas depois que eu comecei a fazer o karatê eu melhorei cem por cento. Levei até fotos nossas, do nosso grupo, para minha psiquiatra ver. E hoje em dia não tomo mais remédio nenhum.” (Benigna, 69 anos, dois anos de treinamento)

“Antes de iniciar as práticas esportivas, eu precisava tomar cinco tipos de medicamentos, pois tinha grandes variações da pressão arterial e era depressiva. Foi quando conheci a Geralda (aluna do grupo). Ela um dia me convidou para fazer karatê. No início foi difícil, mas hoje não preciso tomar remédios. Posso dizer que ganhei uma família e graças a essa família e ao esporte minha vida mudou.” (Rita, 12 meses de treinamento)

"Comecei a fazer o karatê por brincadeira, mas hoje estou levando a sério, porque melhorou muito a minha saúde, melhorou a minha postura, fortaleceu bastante as minhas pernas e eu gosto muito daqui.” (José, 67 anos, dois anos de treinamento)

“Ganhei novos amigos. Melhorou tudo na minha saúde. O que eu não consegui em três anos fazendo tratamento com o médico e tomando medicamentos eu consegui em seis meses com o karatê. Eu tinha problemas de circulação, ácido úrico, pressão alta, colesterol, triglicérides, essas coisas. E hoje eu estou ótima![...] Esses dias que eu fiquei na minha casa eu me senti muito só, sem o meu grupo. Senti muitas saudades. Eu gosto de participar mesmo daqui.” (Cleuza, 65 anos, um ano e meio de treinamento)

“O karatê para mim é união de grupo, ajudar um ao outro, incentivar um ao outro e uma amizade que não tem dinheiro que pague. É muito bom na parte social de fazer novas amizades, ter união e respeito.” (João, 61 anos, pouco mais de um ano de treinamento) 

“O karatê mudou muita coisa em minha vida. Mudou o modo de me ver, de agir, de pensar.” (Geralda, 80 anos, dois anos de treinamento) 

A ação do Sesc – Serviço Social do Comércio – é fruto de um sólido projeto cultural e educativo que trouxe, desde sua criação pelo empresariado do comércio e de serviços em 1946, a marca da inovação e da transformação social. Ações que estão diretamente relacionadas às práticas e intervenções do Sesc no dia a dia e este projeto não poderia ser diferente. A dedicação e a frequência dos praticantes ao longo desses dois anos de projeto trouxeram inúmeros benefícios físicos, mentais e sociais para cada praticante. Melhora da capacidade cardiorrespiratória, fortalecimento muscular, fortalecimento ósseo, potência muscular, agilidade, velocidade, flexibilidade, coordenação motora e visual, aumento do repertório motor, equilíbrio, diminuição da pressão arterial, melhora no quadro de dislipidemias, emagrecimento, diminuição de dores articulares e musculares, melhora postural foram benefícios físicos observados, juntamente com o desenvolvimento de autocontrole, perseverança, compreensão, respeito, concentração, foco, companheirismo e espírito de equipe. O karatê ajuda o indivíduo a buscar suas potencialidades e se esforçar para a formação de um caráter saudável, com isso atingindo um estado de paz interior que irá refletir em suas atitudes, ações e nas pessoas ao seu redor.

Promover a prática inclusiva é um dos maiores objetivos do projeto. A essência da arte marcial deve ser mantida por meio da história, da filosofia e da busca individual de cada praticante. Adotar a pedagogia inclusiva é uma ação fundamental dentro do Sesc e a arte marcial nos dias de hoje nos leva à responsabilidade de lutarmos para isso. Anteriormente a luta era para defender sua casa ou seu próprio país, dando espaço para aquele praticante que tinha o poder real de combate. Nos dias de hoje a luta é contra o sedentarismo, contra a obesidade, contra a depressão, contra hábitos insalubres. Os tempos mudam e o karatê também deve mudar. Com esperança de ver o karatê incluído na educação física universal ensinada em nossas escolas públicas, dediquei-me a revisar os katas de modo a simplificá-los o mais possível. Os tempos mudam, o mundo muda e obviamente as artes marciais também devem mudar. O karatê que os alunos de segundo grau praticam hoje não é o mesmo que era praticado há dez anos, e é bem grande a distância que o separa do karatê que aprendi quando era criança em Okinawa (FUNAKOSHI,1975, p. 47).

Com isso não devemos rebaixar ou desqualificar as exigências técnicas, mas fazer com que as pessoas tenham acesso a elas. Assim, o estudante mais preparado deverá ser mais exigido, seja por meio de um maior número de repetições, maior intensidade do desempenho, procurando estimulá-lo e motivá-lo. Lançar desafios para que cada um dos idosos busque seus limites e seja respeitado em suas individualidades é a chave do sucesso para alcançarmos objetivos cada vez maiores. Os relatos apresentados não possuem caráter científico, mas nos excitam na busca por respostas aos inúmeros benefícios apresentados neste trabalho.

 

Referências Bibliográficas

NAKAYAMA, M. O melhor do karatê: visão abrangentepráticas. 8. ed. São Paulo: Pensamento-Cultrix,2014. 144p.
MARTINS, M. O. Estudo dos fatores determinantes da prática de atividade física de professores universitários. 2000. Dissertação (Mestrado)– Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.
FUNAKOSHI, G. Karate-dô: o meu modo de vida. Tradução de E. L. Calloni. São Paulo: Cultrix,1994. (Original publicado em 1975).

 

(*) A expressão significa “perseverança sob pressão”. É uma palavra que por si já resume a
filosofia do karatê. Um bom praticante é aquele que cultiva o “sentido de Oss”, de respeito.

 

(1) Instrutor de atividades físicas do Sesc Araraquara. Formado em Educação Física pelo Centro Universitário de Araraquara –UNIARA. Especialista em Atividade Física em Saúde Humana pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP). Pratica karatê há 25 anos.

(2) Entrevista inicial realizada a fim de conhecer o histórico de patologias, queixas, atividade física, histórico alimentar e objetivos do aluno quanto à atividade a ser realizada

(3) Local para treinar artes marciais japonesas. Muito mais do que uma simples área, o dojô deve ser respeitado como se fosse a casa dos praticantes.