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E não somos nós mulheres?

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

E não somos nós mulheres?

por Bárbara Esmenia

Antes de iniciarmos uma fala ou posicionarmos nossos corpos em certos espaços, é ponto central sermos conscientes a partir de onde falamos. Qual nosso lugar. Locus. Origem latina, bem como a palavra “radical”, que tem sua etimologia enquanto raiz, ter origens. Portanto, de onde se vem. Ser radical. Ser originária/o. Ir profundo.

Conscientes deste lugar de fala, determinamos as interseccionalidades resultantes de corpos marcados por atravessamentos opressivos e, também, privilegiados. Eu, sendo homossexual, posso ainda ter o privilégio de ser homem; eu, sendo negra, posso ainda ter o privilégio de ter a pele clara, ser socialmente aceita enquanto branca no quesito fenotípico.

Não é possível falarmos de feminismo se não cruzarmos essas vertentes além do gênero: classe, raça e sexualidade. O que vimos sem isso foi um histórico de feminismo limitado às necessidades de determinadas mulheres. Quando as mulheres brancas saíram às ruas desejosas de espaço no mundo do trabalho para além do espaço privado da casa, as mulheres negras questionaram, já que há tempos ocupavam as ruas e sempre trabalharam como modo de sustento familiar. E não sou uma mulher? Já tinha perguntado Sojourner Truth em 1851.

Negra, lésbica, feminista, socialista, poeta, mãe, Audre Lorde afirmava que não poderia levantar voz a somente uma forma de opressão, mas sim a todas que se amalgamavam e a atingiam. Em suas palavras, “não existe hierarquia de opressão”. No entanto, existem hierarquias de privilégios na medida em que ser homem, branco, heterossexual e classe média/alta te leva ao topo da pirâmide social, permitindo ocupar os espaços que bem queira.

De todo modo, o que Lorde afirma enquanto não existência hierárquica está voltado à percepção pessoal – consequentemente parte de um coletivo – de quem sofre as opressões. No caso das hierarquias privilegiadas, a existência de tais sujeitos como “norma social” faz com que não observem seus lugares de privilégios. E essa tem sido uma discussão bastante atual: o reconhecimento dos privilégios. Quem sou eu, qual meu histórico, quais espaços ocupo, como sou vista/o socialmente. Perguntas necessárias para o estar no mundo.

Não à toa, escutar de um homem que nós, mulheres, podemos ser o que quisermos, que estamos em igualdade, demonstra de modo abissal seu estar no mundo a partir de uma perspectiva limitada a suas vivências e ambientes de convívio.

E o que hoje observamos majoritariamente nos espaços ditos de poder – sejam eles no privado empresarial ou no âmbito público-político – é a permanência das marcações de privilégios históricos: homens, brancos, heterossexuais. Como nossas lutas interseccionais podem ser pautadas, reconhecidas como importantes e entendidas suas trajetórias diacrônicas se para o arremate necessitam passar por esse crivo? Crivo este em que a ocupação de diversos espaços por mulheres raramente atinge a marca de 20%. Se hoje falamos, ainda mais, de representatividade, é justamente pelo esparso avanço do feminismo brasileiro necessitado de leis e políticas públicas mais eficientes. No entanto, seguimos no micro atuando em bases, fomentando discussões e ocupando espaços outros, para além dos institucionais.

Fica um salve para cada coletivo de mulheres, sobretudo nos espaços periféricos, que atuam na prática (o pleonasmo é proposital), mobilizando imaginários, desconstruindo pensamentos hegemônicos e seguindo. Sempre.


Bárbara Esmenia, bacharela em Letras, é animadora cultural do Sesc Interlagos.