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Legado dos megaeventos esportivos

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Legado dos megaeventos esportivos

A realização dos jogos Pan-Americanos em 2007, da Copa das Confederações em 2013, da Copa do Mundo em 2014, dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos em 2016, entre outras competições de grande porte, colocou o Brasil no mapa dos megaeventos esportivos mundiais. Sediar tais provas trouxe também a necessidade de diversas adequações estruturais. Agora, após o fim da temporada de eventos, qual é o impacto deixado no país? Discutem o tema os professores Ricardo Ricci Uvinha, da Pós-Graduação em Turismo e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Atividade Física da Universidade de São Paulo, e Billy Graeff, do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande – Curso de Educação Física.


Impactos e oportunidades

por Ricardo Ricci Uvinha

Na chamada “década de ouro” para o esporte no Brasil, ao menos sete megaeventos mereceram destaque no cenário internacional por seu forte apelo midiático e potencialidade de impacto nos mais distintos setores no país e na América do Sul. Foram eles: a) os Jogos Pan-Americanos Rio 2007; b) os Jogos Parapan-Americanos Rio 2007; c) os Jogos Mundiais Militares Rio 2011; d) a Copa das Confederações Fifa 2013; e) a Copa do Mundo Fifa 2014; f) os Jogos Olímpicos Rio 2016 e; g) os Jogos Paralímpicos Rio 2016.

Os mencionados eventos levantam uma discussão relevante, seja no âmbito acadêmico, seja no senso comum, no que concerne aos reais legados para as cidades-sede. Basicamente, se questiona: Quais seriam os possíveis impactos nas cidades-sede nos mais diversos setores, entre eles o de serviços? Qual a garantia de retorno de investimentos massivos (em geral públicos) destinados aos megaeventos esportivos no Brasil? Quais as oportunidades criadas por eventos, como a possível geração de empregos e renda?

Talvez ainda seja cedo para avaliarmos os reais legados, em especial os oriundos dos recém-realizados Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. No entanto, quando analisamos o que ocorreu em sedes imediatamente anteriores, como é o caso de Londres 2012, vale destacar o documento oficialmente veiculado por um comitê britânico intitulado Keeping the Flame Alive: the Olympic and Paralympic Legacy. A avaliação geral é de que tal evento foi um grande sucesso, já que não foram encontrados locais de competição subutilizados e se destaca efusivamente o papel dos Jogos na revitalização da área chamada East London, região londrina especialmente envolvida na realização do megaevento, onde se observou um real legado para a população local, ao gerar novas oportunidades de trabalho e melhores condições para os equipamentos esportivos e de lazer. Com relação especificamente aos Jogos Paralímpicos, chega-se à conclusão de que o principal legado foi uma generalizada mudança de percepção sobre as pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, fato estimulado especialmente pela grande exposição de tais jogos na mídia televisiva.

No entanto, no que diz respeito à criação de novos empregos, mostra-se certo desapontamento com o pós-Londres 2012 já que se observam baixas cifras numa Europa em crise e bastante aquém do projetado para tal megaevento. Quanto à prática da atividade física, a conclusão do Comitê Britânico é de que não houve significativo incremento do interesse por tais atividades pós-Jogos, como se esperava. Tal fato é preocupante, segundo o documento, num país onde a obesidade cresce em níveis alarmantes. Outro destaque negativo no documento diz respeito ao Estádio Olímpico, que, desde o período pós-Jogos, vem sofrendo intensa disputa para sua utilização sem levar em conta as reais necessidades da comunidade.

Aliás, a utilização das arenas esportivas pós-competição tem sido provavelmente o maior alvo de discussão em termos de legado para as cidades-sede. No exercício necessário da cidadania, vale um olhar atento à preparação dos megaeventos esportivos, em especial no que tange aos gastos exorbitantes despendidos principalmente em sua esfera infraestrutural, como os estádios da Copa do Mundo, em grande parte subsidiados com verba pública. As diversas manifestações ocorridas pelo Brasil em 2013 tinham como alvo claro os gastos excessivos com os megaeventos no Brasil, em especial com a preparação para a Copa Fifa em 2014. O questionamento principal residia no elevado custo dos estádios, que em grande parte consumiram verba pública em contratos bilionários e acenderam uma ampla discussão sobre os reais benefícios de tais investimentos, principalmente no período pós-Copa.

Tais eventos trouxeram, assim, um desafio considerável de gestão e lidaram com questões polêmicas diretamente atreladas à sua implementação nas cidades-sede, como os altos investimentos e o necessário direito da população residente a uma moradia adequada ante o desenvolvimento imediatista para atender aos anseios dos comitês organizadores locais. Arenas construídas especialmente para a Copa 2014 no Brasil (como a da Amazônia, em Manaus, e a Pantanal, em Cuiabá) têm sido candidatas claras a se tornar “elefantes brancos” no pós-evento por não apresentarem uma liga de futebol de campo competitiva. Assim, são questionáveis do ponto de vista de gestão, em especial em sua manutenção.

Em termos comparativos, na Copa Fifa 2010 da África do Sul, o Cape Town Stadium, da Cidade do Cabo, recebeu investimentos da ordem de R$ 1 bilhão e hoje apresenta uma elevada manutenção de R$ 13 milhões ao ano. A programação de utilização pós-evento inclui amistosos da seleção sul-africana de futebol de campo e show de bandas estrangeiras. O estádio vem sendo considerado como “elefante branco”, com gastos de manutenção indesejáveis para a população sul-africana, e muito se tem discutido sobre a possibilidade de sua demolição. Uma alternativa também cogitada seria convertê-lo em casas populares para famílias carentes.

Os comentados megaeventos esportivos no Brasil, em que pesem todas as considerações críticas quanto aos gastos exorbitantes e às dificuldades de manutenção, oferecem uma rica possibilidade de legado ao se tornarem agentes indutores de melhorias da infraestrutura das cidades-sede, já que impulsionam, modernizam e ampliam a oferta de transporte público; aceleram programas de valorização do meio ambiente; impulsionam a agenda social e educacional – além do potencial de se tornarem poderosa plataforma para divulgação internacional do país. A globalização, em toda a sua complexidade, tem emergido nas últimas duas décadas como a maior força socioeconômica mundial. Em vários sentidos, o esporte tem sido seu principal elemento por causa da realização de grandes eventos e dos agentes associados a esse processo.

Para além do esporte, estima-se que tais megaeventos tenham trazido ao Brasil um potencial impacto para diversos setores, como as melhorias nos aeroportos, portos e transporte terrestre; na mobilidade urbana; na infraestrutura da cidade; na criação de leis de sustentabilidade e acessibilidade; na inteligência da segurança do país; na ampliação da rede hoteleira e qualificação de seus recursos humanos; na maximização do Brasil como destino turístico; nos serviços médicos e aquisição de novas ambulâncias; nas áreas de energia, telecomunicação e tecnologia da informação – além dos benefícios para os recursos humanos implicados em tais eventos, com a aprendizagem de línguas estrangeiras, capacitação profissional, entre outros exemplos. Os gastos dos visitantes com hospedagem, gastronomia, transporte local, entretenimento e compras expressam um importante componente para a economia de muitos destinos, criando diversas oportunidades de emprego, negócios e desenvolvimento.

Devemos, assim, estar atentos ao monitoramento dos megaeventos esportivos realizados no Brasil na comentada década, realizando intenso debate com a sociedade sobre os reais legados em termos de oportunidades para as populações nas mais distintas realidades socioculturais do nosso país.

 

Ricardo Ricci Uvinha é professor livre-docente do Programa de Pós-Graduação em Turismo e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Atividade Física da Universidade de São Paulo. Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Lazer GIEL/USP/CNPq, possui diversas produções nacionais e internacionais sobre o tema dos megaeventos esportivos, como conferências, publicações e orientações de trabalhos acadêmicos.


Copa e Olimpíadas: o Brasil passou a vez

por Billy Graeff

O leitor mais distraído pode ter tido a impressão de que a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas que aconteceram recentemente no país foram eventos concedidos por suas organizações porque era a “vez do Brasil”. De certa forma, esse argumento não é mentiroso, mas acreditar nele de maneira isolada seria ingenuidade. O Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Fédération Internationale de Football Association (Fifa) vêm desenvolvendo uma política de realizar seus principais eventos em países fora do eixo econômico (América do Norte, Europa, Japão, Coreia do Sul e Austrália/Nova Zelândia) desde pelo menos o início do século 21, seguindo a tradição inaugurada pelas grandes corporações transnacionais no final do século 20, sob os auspícios do incremento acelerado do neoliberalismo. Praticamente todas as grandes empresas, já há algum tempo, enviaram partes de seus processos produtivos para países periféricos da economia, onde leis trabalhistas são mais flexíveis e seu controle menos efetivo, onde leis ambientais são inexistentes e/ou não há inspeção ambiental, onde elites podem realizar lucros inimagináveis à custa das massas trabalhadoras. Por que COI e Fifa não fariam o mesmo?

No entanto, tudo que esses países que recebem megaeventos podem fazer é sonhar aproveitar a oportunidade para resolver problemas históricos e realizar avanços em áreas deficientes. Então, chegou a vez do Brasil. E, embora o esporte tenha sido uma presença tímida no discurso dos promotores locais dos eventos (governo federal, governos estaduais e municipais), que mais focaram em aspectos do desenvolvimento socioeconômico, pelo menos alguma esperança se pôde vislumbrar.

Falou-se em enfrentar diferenças históricas e em contribuir para o desenvolvimento do continente latino-americano e que a Copa e as Olimpíadas seriam eventos organizados para o desenvolvimento do povo brasileiro. Longe disso. Infelizmente, praticamente nenhuma das promessas dos Jogos se materializou, e o Brasil parece ter passado a vez.

No campo do esporte, alguns inconvincentes movimentos foram desencadeados antes do evento. A maior parte deles estava ligada ao esporte de elite, aquele mesmo que costumeiramente já arrecada grandes quantias de recursos. Estão entre tais iniciativas o Plano Brasil Medalhas (potencialmente alocando R$ 1 bilhão) e outras diversas, como o Bolsa Atleta (que patrocinou 77% da delegação olímpica brasileira), que somadas podem ter chegado à marca de R$ 2,5 bilhões.

O objetivo do governo federal era colocar o país entre as dez principais nações olímpicas e entre as cinco paralímpicas. Em termos de participação popular, apostou-se no conhecido “efeito demonstração”, uma suposta força motriz que levaria as pessoas a praticar esportes e atividades físicas a partir da exposição do esporte em seu país, em função dos Jogos.

Londres 2012 foi um bom exemplo de como não se deve confiar em tal efeito. Inicialmente, os organizadores daqueles Jogos previram acréscimo de 2 milhões de pessoas ativas no país após as Olimpíadas. Em 2011, quando as projeções deveriam ter alcançado 1 milhão de pessoas, pesquisa realizada evidenciou que este número havia chegado a meras 111 mil pessoas. Posteriores levantamentos revelam que os índices pós-Olimpíadas são ainda piores que aqueles que antecederam os Jogos.

No Brasil, casos de corrupção, como o Dossiê Vôlei (2014), e a falta de interesse em esportes menos populares contribuíram para que as metas colocadas ficassem ainda mais distantes. Sabe-se que 90% dos atletas olímpicos brasileiros receberam algum tipo de incentivo com recursos públicos, enquanto menos de 50% contaram também com recursos da iniciativa privada. Existe muita desconfiança por parte das empresas acerca do destino de seus possíveis investimentos em esporte, uma vez que as federações esportivas no Brasil são verdadeiras caixas-pretas e os escândalos se empilham nas notícias do dia a dia. O futebol, por exemplo, esporte que mais arrecada no país, teve recentes presidentes presos ou afastados devido à corrupção ativa, evidenciando também que há muita contradição na área.

Pesquisa divulgada em 2015 revelou que quase 46% dos brasileiros entre 14 e 75 anos não praticam nenhuma atividade física (www.brasil.gov.br/esporte/2015/06/diagnostico-nacional-do-esporte-mapeia-atividade-fisica-no-pais). A debandada de patrocinadores no âmbito das empresas públicas e privadas já é esperada. Correios, Caixa e Banco do Brasil, algumas das mais importantes subsidiadoras do esporte de competição no Brasil, anunciaram ter dificuldades, e esportes como natação e tênis podem ser inviabilizados.
Décimo terceiro nas Olimpíadas e oitavo nas Paralimpíadas, o Brasil esteve aquém de quaisquer expectativas. A “magia” do esporte agregou momentos que farão parte do imaginário popular, possivelmente por décadas. O Mineiraço (7 a 1), a tão esperada medalha de ouro no futebol masculino, o desespero das meninas do futebol feminino, a medalha de Rafaela Silva no Judô, as medalhas do vôlei de praia são provavelmente imagens que vão ficar marcadas na memória dos brasileiros. Isso sem falar na presença ilustre de atletas que marcaram época, como Phelps e Bolt. Entretanto, lamentavelmente, a Copa e as Olimpíadas pouco puderam contribuir para o desenvolvimento do esporte brasileiro.

Em minha opinião, um dos poucos elementos que podem ter contribuído para o esporte no país foi a inserção do esporte na pauta de discussões de um sem-número de pessoas e instituições. Por exemplo, vale a pena conhecer o projeto da Escola Nacional Florestan Fernandes e de seu campo de futebol batizado de Dr. Sócrates Brasileiro (www.mst.org.br/2016/06/22/escola-florestan-fernandeslanca-campanha-para-financiar-campo-de-futebol.html). Obviamente, a escolha do nome não poderia ser mais apropriada; Sócrates foi um lutador social e um democrata de maior envergadura. Que, de onde quer que esteja, ele possa nos inspirar a sonhar com o desenvolvimento de um esporte distante das mazelas da corrupção e da violência.

 

Billy Graeff é docente do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande – Curso de Educação Física, no qual leciona as disciplinas de Sociologia do Esporte, Futebol, Estágios I e II, História e organização da Educação Física Brasileira, Esportes, Relações de Trabalho e Futebol de Sete. Nos anos de 2014, 2015 e 2016 lecionou as disciplinas Olympic Studies e Introduction to Sociology of Sports na Loughborough University, no Reino Unido.


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