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Eugênio Bucci

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

Eugênio Bucci

Professor fala sobre as mudanças no jornalismo, a crise nos modelos de negócio do setor e a circulação das informações na era digital


Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professor na Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade, Eugênio Bucci lecionou também na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), entre 2010 e 2014, onde dirigiu o curso de Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial. Foi presidente da Radiobrás de 2003 a 2007, integrou o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo) de 2007 a 2010 e, na Editora Abril, foi secretário editorial e diretor de redação das revistas Superinteressante e Quatro Rodas. É autor de livros como Em Brasília, 19 Horas (Record, 2008) e O Estado de Narciso (Cia das Letras, 2015). Nesta entrevista, Eugênio analisa o cenário atual da imprensa: “Temos aí um momento de certa riqueza de oportunidades e de mudança de paradigma. Ao assumir que o jornalismo são as empresas, muitas pessoas dizem que o jornalismo está em crise. Porém, o que se mostra em crise é a imprensa como negócio”.


Hoje vivemos um momento em que as tiragens dos jornais e revistas caem, mas ao mesmo tempo os conteúdos nunca foram tão acessados na internet. Como você analisa a situação de mudança na chamada mídia tradicional?
Nunca se leu tanto conteúdo jornalístico e ao mesmo tempo nunca as empresas jornalísticas consolidadas tiveram tantos problemas na sua receita, seja de circulação, seja de publicidade. O primeiro ponto que vejo nesse paradoxo é que a crise é do modelo de negócio. A crise não é do jornalismo. É um paradoxo do nosso tempo. Nunca se leu tanta matéria de jornal, e ao mesmo tempo parece sem fim o declínio de receita de circulação e de publicidade dessas mesmas instituições. O público aumenta e a receita diminui. Eu vejo que temos aí um momento de certa riqueza de oportunidades e de mudança de paradigma. A crise é do modelo de negócio do jornalismo, e não do jornalismo. Existe um crescimento vertiginoso de formas de expressão, de captação de ideias, diálogos. A expressão ganhou novas modalidades, novos alcances. Nas escolas de jornalismo há um fervilhar de novas ideias em todo lugar. Os modelos de negócio da imprensa, porém, estão em uma crise violenta. Ao assumir que o jornalismo são as empresas, muitas pessoas dizem que o jornalismo está em crise. Porém, se separarmos a dimensão do negócio e a linguagem, o debate público, o que se mostra em crise é a imprensa como negócio.

Já existem indicações de saídas?
Uma das soluções pode vir das instituições públicas, como a [inglesa] BBC, a [norte-americana] NPR, a [alemã] Deutsche Welle, a televisão francesa RTF, lembrando que as melhores já lidam muito bem com as tecnologias digitais. Surgem aí formatos novos de comunicação com um modelo novo de financiamento. A NPR, no começo deste século, conseguiu crescer. É uma rede de 900 emissoras públicas sem fins lucrativos que conseguem fazer um jornalismo de rádio impactante, com muita influência. O jornalismo internacional da NPR é certamente o que há de melhor no rádio norte-americana. A BBC cobre a Grã-Bretanha com nove sedes e vários canais. Ela está em várias regiões, produz conteúdo desde os anos 1920 e é uma instituição respeitada no Reino Unido. Esse campo tem soluções para franquear acesso à cultura para as famílias e as pessoas, e são soluções que ainda são válidas. Não são sustentadas pelo mercado, não são beneficiárias de relações de mercado, mas propiciam uma comunicação de alto nível para sociedades livres e democráticas, como é o caso do Reino Unido. Esse é um dos caminhos.

Por que esses modelos públicos seriam soluções interessantes?
Acho particularmente interessante que uma solução antiga apareça agora como algo novo, mas esse é só um dos caminhos. Ali existem soluções que podem servir hoje. A noção de que a imprensa não é apenas o mercado. Podemos comparar à música, por exemplo. Hoje não se fala mais em crise da indústria fonográfica. Ela mudou os seus formatos, os seus paradigmas e se reencontrou como negócio. Muitos estudiosos falam que a indústria jornalística teria que encontrar uma solução na linha do que foi encontrado pela indústria fonográfica.

Outra solução poderia vir de organizações baseadas em outro tipo de financiamento que não a venda de conteúdo e do espaço publicitário, por exemplo?
Modelos como o ProPublica, nos Estados Unidos, por exemplo, têm apostado nisso. Há vários outros, mas esse é bastante conhecido. O ProPublica começou com grandes reportagens, depois passou a trabalhar em associação com grandes jornais, como The New York Times, e ganhou o prêmio Pulitzer por alguns trabalhos. É financiado por doações e um tipo de captação de recursos que pode até envolver publicidade ou crowdfunding, mas ainda estamos falando de coisas não comerciais. Do ponto de vista do negócio comercial, e aí o paralelo com a crise da indústria fonográfica pode ser interessante, vamos caminhar provavelmente na direção de o leitor ou a sociedade financiar um serviço considerado relevante através de assinaturas ou compra de conteúdo. O paywall [espécie de limitação do acesso do conteúdo apenas a assinantes] do New York Times é um exemplo, e vários outros veículos vão remarcando pactos diferentes com o público. O leitor paga para usar, vira assinante, e já se comemora que o número de assinantes no online é maior do que nas versões impressas. Ou seja, existe uma saída para um modelo de negócio comercial buscando financiamento com quem consome, que é o leitor, o usuário. Então, o apoio político não partidário, mas sim de engajamento, se traduziria em apoio financeiro. A mercadoria informação, a mercadoria jornalismo, notícia, é uma mercadoria diferente. Pode ter uma dimensão de mercadoria, mas é diferente. Os grandes empresários do jornalismo sempre souberam disso e tenho certeza de que haverá uma saída para isso.

Onde ficam os blogs em meio a esses novos modelos?
Nessa transição, vários blogs viraram negócios, mas isso também é uma fórmula transitória. Vai haver um reagrupamento, no sentido de que teremos uma espécie de aglutinação de várias vozes diferentes. Jornais tradicionais tenderão a fazer essa aglutinação por conta própria. O Huffington Post é um sintoma disso que estou falando, com diversos colaboradores. Vale lembrar que na Revolução Francesa, quando acontece a explosão do que chamaríamos de imprensa, existiam centenas de pequenos jornais, e eles saíam muito esporadicamente. Eram poucas as pessoas letradas. É só no século 19 que esses jornais começaram a adquirir uma forma comercial. Para isso foi necessária a invenção da indústria gráfica, a assimilação das redes ferroviárias, que faziam a distribuição, e a entrada da publicidade nos jornais, que permitiu a redução do custo. Talvez seja uma analogia possível. Estamos vivendo uma revolução, mas as coisas não se acomodaram. Vai haver uma reacomodação do negócio da imprensa, não sabemos ainda direito como, mas o jornalismo não se resume ao modelo de negócio. Ele terá soluções em rede, soluções colaborativas importantíssimas, que não são comerciais. Por exemplo, o Panama Papers, caso desvendado por um consórcio de jornalismo investigativo [Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos – ICIJ, na sigla em inglês], que organiza centenas de jornalistas de mais de 70 países em uma apuração que checa em cada país a relação entre pessoas dali e o que foi descoberto [levantamento que identificou dezenas de offshores criadas ou operadas pelo escritório de advocacia Mossack Fonseca e que já foram mencionadas em investigações e processos judiciais], produzindo reportagens que não seriam possíveis nas redações convencionais, já que dependem da prática colaborativa.

Você acredita que na verdade este é um período de exuberância do jornalismo?
Sim. O caso Snowden, por exemplo. É um sujeito [o ex-analista de sistemas da CIA e da NSA Edward Snowden, que revelou detalhes sobre programas de vigilância que os Estados Unidos usam para espionar a população local e de outros países, como o Brasil] que foge, vaza documentos. Um jornalista do The Guardian, o Glenn Greenwald, instalado no Brasil, consegue revelações da mais alta importância e aquilo começa a ser publicado, com muito critério. Se for olhar em perspectiva, diria que temos um momento de big bang da imprensa no século 18, nos Estados Unidos e na França. O século 19 tem coisas grandiosas, como J’Accuse, de Émile Zola, que é o modelo do intelectual, o estudioso que deixa a biblioteca para ir à cena pública [no artigo, Zola ataca nominalmente os generais e outros oficiais responsáveis pelo erro judicial que levou ao processo e à condenação do capitão do exército francês Alfred Dreyfus – que, em 1894, foi acusado pelos monarquistas de ter vendido segredos militares aos alemães]. O caso Watergate [escândalo político ocorrido nos Estados Unidos que, ao vir à tona, levou à renúncia o presidente Richard Nixon, eleito pelo Partido Republicano], já na década de 1970, é outro momento glorioso da imprensa, mas que põe em cena o repórter que vai como um mineiro, trabalhando muitas horas por dia para levantar as informações. Era outro modelo de imprensa, já com uma apuração de linha de montagem, difícil, extenuante, mas é também um momento glorioso. Atualmente, existe essa figura das grandes coberturas em rede, que é algo que não cabe no velho modelo de negócio. Sou, nesse sentido, entusiasta. Nunca foi tão fascinante ser jornalista como agora.

A imprensa pode existir sem ser um negócio?
Pode, e as instituições públicas mostraram isso, e elas continuam necessárias, são muito alinhadas com as tecnologias digitais. É conhecida, por exemplo, a relação do jornalismo da NPR com o levante da primavera árabe, cujo meio de comunicação eram as redes sociais das tecnologias digitais envolvendo o telefone celular.

Falta esse modelo adequado às novas gerações, que não dão mais atenção aos moldes de mídia e imprensa tradicional, como jornais e telejornais?
Como professor, dou aula para pessoas que muitas vezes têm 19, 20 anos, e definitivamente não concordo com quem diz que essa geração não lê. Eles leem muito, mas leem de maneira diferente. Eles não pegam um livro e vão do começo ao fim. Alguns, sim, mas a maioria lê, vê imagens, interage de um modo diferente. Talvez eles sejam muito mais informados do que nós éramos na idade deles e muito mais informados do que nós somos hoje. Para eles, o mundo é mais amplo. A juventude tem muito mais interligação com a juventude de outros países do que nós tínhamos no passado. Vejo, nas universidades, com programas para alunos estrangeiros, uma abertura para o mundo que não existia antes. É comum um aluno passar um ano estudando fora, e tenho vários alunos de fora do Brasil, gente do México, Colômbia, Finlândia. As fronteiras nacionais, para eles, são menos restritivas, menos opressoras. Eles não se identificam pela nacionalidade, e sim como seres humanos. Eles não se informam pela televisão, não leem jornal, mas sinto que as novas gerações se informam mais. Aprendo muito com os meus alunos. Isso é uma coisa fascinante da universidade. Dando aula, você está aprendendo, pesquisando, o tempo todo.

Quanto à opinião pública que ganhou espaço nas redes digitais, fala-se muito em como isso pode estar contribuindo para as chamadas “bolhas”, em que as pessoas só conviveriam com opiniões similares. O que você acha disso?
O advento das redes sociais, com algoritmos como o do Facebook, trouxe para a esfera pública a construção das chamadas bolhas de opinião. O sujeito vive dentro de uma bolha de pessoas que mais ou menos concordam com ele e sente que aquilo é do tamanho do mundo. Isso vem exacerbando o sentimento que sempre esteve aí, mas nunca nessa proporção, de autossuficiência em relação à própria visão de mundo, ao lado de um sentimento de impaciência, às vezes de intolerância e às vezes de ódio com o que é diferente. Assim, criam-se comunidades autoritárias, que podem ser de quaisquer tipos de pessoa. Isso é um dado muito preocupante dos algoritmos e da conformação dessas bolhas nas redes sociais, a fabricação de uma ilusão de que a felicidade é feita na concordância, de que o futuro ideal é um futuro de figurantes da minha história pessoal, que é uma história narcísica e que todos vão estar lá para bater palma para mim. Isso dá lastro para projetos autoritários, prepotentes, tirânicos, é um grande risco posto no nosso tempo.

Por que você acha que há hoje um ódio tão grande à imprensa?
O ódio à imprensa é um traço do nosso tempo e não é um traço do Brasil, mas existe também no Brasil. Esse ódio à imprensa tem então a componente de um preconceito e também uma componente que deriva de erros cometidos por grandes meios de comunicação e veículos de imprensa. Isso, em parte, é preconceito, porque existe uma intolerância autoritária contra a verificação dos fatos e contra a apuração da verdade factual. As tiranias convivem mal com a liberdade de noticiar os acontecimentos. Convivem mal com o registro dos fatos. Uma tirania precisa controlar o que as pessoas sabem de verdade factual e o que elas não poderão saber de verdade factual. Existe, nesse ideário conservador que pode ser de direita ou de esquerda, certa intolerância com aquilo que verifica fatos e contesta o poder. Ora, a imprensa nos Estados Unidos faz muito isso. Alguns jornais de lá são exemplos. Os Estados Unidos, nesse sentido, são um celeiro de centros de excelência de tudo que o jornalismo pode almejar de melhor. Contudo, há um compadrio, uma promiscuidade, que gera um conflito de interesses, um colaboracionismo indevido e muito difundido entre imprensa, meios de comunicação e poder. Isso acontece à esquerda e à direita.

 

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