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De que é feito um romance?

Foto: Divulgação
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De que é feito um romance?

Para além da forma, do estilo, da extensão e do envolvimento com a realidade, há a necessária liberdade para criar e o desejo de entender a alma humana

Romancista, jornalista e autor de roteiros para cinema, o cubano Leonardo Padura segue em diálogo com os leitores brasileiros. Nascido em Havana em 1955, é autor de 19 livros, entre eles O Homem que Amava os Cachorros (Boitempo, 2013) e Hereges (Boitempo, 2015), mais conhecidos pelo público brasileiro. Também é colunista do jornal Folha de S.Paulo e colaborador do espanhol El País.
Neste depoimento, Padura avalia o ofício de escritor e analisa a história dos gêneros literários para salientar as incertezas encontradas na busca por uma definição do romance. “Temos mais indefinições do que definições sobre o romance. Há possibilidades, variantes e generalizações relacionadas a um elemento metafísico que diferencia o romance de outras manifestações literárias, como a poesia ou o teatro”, analisa. Acompanhe os principais trechos.


 

Elementos fundamentais

Como e por que um autor escreveu determinado livro são perguntas recorrentes. Questionam-me sempre sobre a realização de O Homem que Amava os Cachorros, pois nele há um processo de investigação histórica paralelo a partes ficcionais somadas a personagens conhecidos e desconhecidos.

Mas há uma pergunta que me parece ir além e estar relacionada com a intenção e as motivações do escritor. A cada novo livro pesquiso como outros autores passaram por esse processo e os elementos fundamentais do romance.

Se quisermos saber o que é um romance, podemos recorrer aos dicionários, que resolvem essa questão rapidamente, indicando que o romance é uma ficção e esta palavra que vem na sequência é importante: é uma ficção ou uma mentira sobre qualquer tema.

Para os escritores de ficção há, por exemplo, o dicionário da Academia Espanhola com a seguinte definição: romance é uma obra literária em prosa na qual se narra uma ação fingida (no todo ou em partes) e cujo fim é causar prazer estético aos leitores.

Para os teóricos, especialistas e leitores interessados, essa questão pode ter consequências mais complicadas, porque poucas coisas são tão fáceis e ao mesmo tempo tão difíceis de definir como um romance. Nesse território há uma definição distinta das citadas acima, apresentando o romance como uma narração de eixo fictício que transcorre num certo número de páginas e por meio de personagens e situações. Essa considero uma definição geral. Mas podemos perguntar quantos dos melhores romances já escritos não superam ou contradizem essas afirmações.

Romance é forma ou conteúdo? Uma definição mais completa e menos quantitativa seria aceitar como romance todo relato extenso que é capaz de criar um mundo – ou a ilusão de um mundo –, e por meio dele e dos seres que o habitam tratar de entender ou explicar comportamentos da condição humana. Para cumprir esse propósito, o romancista escolhe – com liberdade relativa – a forma mais apropriada para expressar suas intenções. Desse modo, cria uma estrutura que é comum a muitos romances. O caso de uma estrutura comum pode ser a do relato policial tradicional, com elementos narrativos parecidos. Há muitos anos se escreveu um decálogo para definir o que era um romance policial e como escrever um.

Metafísica do romance

Temos mais indefinições do que definições sobre o romance. Existem possibilidades, variantes e generalizações relacionadas com um elemento metafísico que também distinguem o romance de outras manifestações literárias, como a poesia ou o teatro. Esse elemento metafísico é responsável pela liberdade de que o romance desfruta como forma e o escritor, como criador. Por exemplo, na poesia muitas das grandes obras foram escritas sob formas e conceitos já estabelecidos previamente (soneto) ou por meio de imagens metafóricas. No teatro há tanto a unidade do tempo, representação e unidade de ação.

A forma romance não foi fixada, ao contrário do teatro e da poesia, já que uma das condições de sua vitalidade é a constante evolução formal. De acordo com Milan Kundera, a arte do romance se evidencia na tentativa de compreensão da vida. Esse conceito aparece nas obras mais transcendentes do gênero. Está nas páginas de O Estrangeiro (de Albert Camus) e nas de Dom Quixote (de Miguel de Cervantes). Está no mundo alucinado de [Franz] Kafka e no universo de [Ernest] Hemingway.

O romance como exercício literário e procedimento de compreensão do ser humano resulta no reino da absoluta liberdade criadora. Uma liberdade por meio da qual o artista tentará – com maior ou menor êxito e talento – revelar comportamentos e atitudes da alma humana.

De todas essas indefinições, chegamos ao ponto em que temos encontrado algo comum em todos os romances. Isso não está relacionado com a forma, o estilo, a extensão, nem com a proximidade ou o afastamento da realidade. Tem a ver com algo mais essencial e profundo: primeiro, a liberdade do artista para escrever e, segundo, a intenção, o desejo, a necessidade de entender o comportamento e as atitudes da alma humana.


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