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Do acaso ao roteiro

Elena Soarez (Foto: Alexandre Nunis)
Elena Soarez (Foto: Alexandre Nunis)

Elena Soarez nunca teve uma relação muito forte com o cinema e a televisão. Seu negócio era a literatura. Desde pequena, lia bastante. Nunca foi cinéfila, tampouco era apaixonada por televisão. Aos 29 anos, formada em Economia e com mestrado em Antropologia Social, se viu sem trabalho e profissão definida. Começou a escrever vídeos institucionais e recebeu convites de amigos para desenvolver roteiros de filmes e séries. E assim, assinou trabalhos premiados como os Eu, Tu, Eles, Cidade dos Homens, Casa de Areia, Filhos do Carnaval, Nome Próprio e Xingú, prepara o roteiro de uma série sobre a operação Lava-Jato para a Netflix internacional, e hoje é uma das roteiristas brasileiras mais produtivas do mercado audiovisual.

O que a levou a trabalhar com roteiro?
Durante a graduação, trabalhei como pesquisadora no departamento de economia. Depois, fui fazer mestrado. Sempre considerei uma carreira acadêmica para mim, mas o tempo todo eu dava uma esbarrada no cinema. Fazia uns bicos em produção, ou produzia sozinha. Quando estava na produção, sentia falta da pesquisa. Então, eu me encontrei no roteiro, que fica no meio disso. Foi um nicho em que me senti confortável, na medida certa para mim que gosto e tenho disciplina para ficar sozinha escrevendo.

Como é seu processo de produção?
Cada caso é um caso, pois as histórias chegam de formas muito diferentes. Tem gente que chega e pede para adaptar um livro – o que é raro. Uns chegam apenas com uma ideia, em geral, muito incipiente. Hoje, as coisas estão mudando, tem uma indústria nascendo, mais robusta e tal. Antes eram caras isolados que vinham com desejos difusos de fazer um filme sobre alguma coisa. Era um suplício até chegar ao argumento. Durante 20 anos, trabalhei sob encomenda. Antigamente, os diretores começavam o processo, não o produtor. Esse era o modelo no Brasil, com um cinema mais de autor: o diretor encasqueta que vai fazer um filme, escolhe um roteirista e começa a desenvolver. Hoje, já existem os filmes de produtor – eu mesma já fui procurada por alguns, mas é algo recente e limitado.

 

“A arte é a resposta possível diante da não resposta. Posto que não tenha resposta, a gente se enrola inventando respostas parciais por meio da arte, pois a grande resposta para as nossas questões a gente não tem.”

 

Você escolhe seus temas ou os temas lhe escolhem?
Comecei a escrever roteiros para a Conspiração Filmes. Emendei vários trabalhos com eles e a parceria seguiu por dez anos. Agora, estou há 15 anos com a O2 Filmes. Durante esse tempo, trabalhei atendendo desejos alheios. O que foi ótimo, porque, na verdade, era só um pretexto para escrever. Recentemente, voltei a trabalhar com meu marido, o diretor Luciano Moura, que fazia publicidade e estava muito a fim de fazer ficção. Ele precisava de um roteirista, e não tinha como não ser eu. Ele me deu algumas opções e escolhi três temas para desenvolver um roteiro. Lançamos o filme A Busca, em 2012, com o Wagner Moura no papel principal. Foi tão legal que a gente não parou mais de trabalhar juntos. Cada um com sua carreira, mas com vários projetos juntos.

Como conseguem emplacar seus projetos?
Muitos deles fazemos pela O2, que funciona com um portal. Alguns canais de televisão, como HBO e Globo, batem lá à procura de projetos. Assim, através da produtora, a gente consegue apresentar nossas propostas para diversas pessoas. No ano passado, a Globo escolheu um projeto nosso, a série 13 dias longe do Sol, que tem direção geral do Luciano, roteiro meu e previsão de estreia em 2017.

Como é a relação entre roteirista e diretor?
A relação tem que ser saudável para funcionar. Como no Brasil, quem escolhe roteirista é o diretor, ele procura por afinidade. Tive muita sorte. Me dei muito bem com o Andrucha e fiz 3 filmes com ele. A gente é louco para voltar a trabalhar juntos, mas não consigo, porque também me dei muito bem com o Cao Hamburguer, fazendo filmes e séries, como Filhos do Carnaval. Foi uma maravilha, adorava trabalhar com ele. E dei muito certo com o Luciano também.

O trabalho do roteirista é sempre um ofício individual?
Sempre escrevi sozinha, mesmo quando não sabia o que estava fazendo. Hoje, tenho uma assistente que me ajuda a estruturar todo o trabalho. Quando escrevi pela primeira vez, a convite do Andrucha Waddington, não tinha a menor ideia do que era um roteiro. Nunca tinha visto um na minha frente. Fiz centenas de versões para Eu, Tu Eles. Uma delas foi selecionada para o laboratório do Sundance Film Festival, no Brasil. Foi então que roteiristas consagrados me deram consultoria, me deram um norte. Leram meu roteiro e me ensinaram. Laboratórios como esse são superimportantes. Você fica ali lutando na história e vai vendo todas as coisas erradas que faz.

Como foi a transição do cinema para a televisão?
Foi ótima. Nunca tinha escrito para TV. Filhos do Carnaval foi minha primeira série, e também a primeira da HBO no Brasil. Escrevi num conforto danado, porque foram dois anos para desenvolver. Tinha um orçamento bastante confortável. Ou seja, uma circunstância que não é comum na TV aberta, onde o negócio é muito mais industrial e acelerado. Mas isso também está mudando. Alguns canais já financiam projetos, a partir da aprovação dos pilotos. Mas é um esquema muito recente.

 

“O roteirista tem mais poder na TV do que no cinema. O roteirista de cinema não escolhe elenco, não escolhe nada. Eu não procuro isso, mas é fato. Na televisão, em especial nas novelas, o autor é sempre o destaque”

 

A que você atribui estas transformações no cenário audiovisual?
Atribuo à concorrência. Hoje, você tem vários canais pagos e mil plataformas disputando audiência. Meus filhos não têm mais TV. Quando eu era pequena, as TVs eram paradas no botão 4, a Globo, no Rio de Janeiro. Ninguém trocava de canal. Agora, 30 anos depois, não tem mais televisão. As crianças assistem a tudo pelo celular. Os canais de televisão tiveram que correr atrás. Acho uma maravilha porque isso gera mais emprego.

Os roteiristas se profissionalizaram?
Isso é muito palpável. Antes, era muito artesanal. Agora, deve ter umas cinco ou seis equipes de profissionais prime no Brasil, que estão fazendo séries aqui e lá fora. Dois fotógrafos com quem meu marido trabalhava estão fazendo séries internacionais: Adriano Goldman assinou a fotografia de The Crown, e Adrian Teijido de Narcos. Tem equipes que circulam pelo mundo. Tivemos que nos especializar por causa da concorrência, o que foi muito bom. Você aprende na marra, pois tem que trabalhar.

Quais as diferenças entre escrever um filme e uma série?
O roteiro de um filme requer mais profundidade e assertividade. É como um tiro: você levanta, atira e acabou. Já o de uma série tem mais desdobramentos, você pode ir pra lá e pra cá, pode trabalhar melhor os personagens. O roteirista tem mais poder na TV do que no cinema. O roteirista de cinema não escolhe elenco, não escolhe nada. Eu não procuro isso, mas é fato. Na televisão, em especial nas novelas, o autor é sempre o destaque: uma novela de Manuel Carlos, ou de Gilberto Braga, etc. A novela é do autor, não do diretor. A gente sabe quem dirige, mas é o escritor que prevalece. Criador de serie também tem muito prestigio. Para o roteirista, isso é uma expansão de seu trabalho, são mais portas que se abrem.

Como foi trabalhar a temática do carnaval em uma série de TV?
Quando a HBO chegou com a palavra “carnaval” e pediu uma série sobre o tema, eu e o Cao ficamos apavorados. Pensava na porta-bandeira e no mestre-sala, e não queria isso porque toda produção sobre carnaval era estereotipada. Muito difícil de escapar. Refleti com o Cao sobre como a gente poderia fugir do clichê e me lembrei da minha dissertação de mestrado sobre o jogo do bicho. No Rio de Janeiro, os bicheiros são donos das escolas de samba. Então, propus fazermos um roteiro sobre uma família de bicheiro, algo que abordasse mais a máfia do que propriamente o carnaval. Uma versão brasileira da série Os Sopranos, com família, com chefão. Deu certo. Fizemos por quatro anos.

Por que você escreve?
Escrevo para me manter viva. Escrevo porque é a única coisa que eu faço. Se não fizesse isso, eu me desligava. Tchau. Eu encontro no meu trabalho a única resposta possível para tudo o que não tem resposta. A arte é a resposta possível diante da não resposta. Posto que não tenha resposta, a gente se enrola inventando respostas parciais por meio da arte, pois a grande resposta para as nossas questões a gente não tem.