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Gênero, arte e transgressão


Foto: Alexandre Nunis

 

Sem medos, Laerte prende a atenção quando fala. Coerente em seu pensamento, defende suas ideias de maneira articulada, com a experiência de quem está, desde sempre, atenta ao cenário político e social do país. Quando jovem, tentou estudar música, teatro e cinema, até entender que o desenho era sua principal forma de expressão. Começou sua carreira com ilustrações, quadrinhos e charges nos anos 1970. Seus primeiros traços foram publicados no jornal do Centro Acadêmico da ECA – Escola de Comunicação e Arte da USP – Universidade de São Paulo, que não concluiu. De lá, foi trabalhar na revista de economia Banas, e não parou mais. Ajudou na fundação da revista Balão, criou charges para o sindicato dos metalúrgicos e lançou a revista Piratas do Tietê, em 1990.

Desde 1991, publica tirinhas diárias no jornal Folha de S.Paulo, criando personagens famosos como Capitão Jack, Hugo, Gato e Gata e Laerton. Sem falar de sua experiência como roteirista de programas de televisão consagrados, como TV Pirata, Sai de Baixo e TV Colosso. Escreveu livros com os quais foi premiado, como Laertevisão e Piratas do Tietê - A Saga Completa. Recebeu mais de seis troféus HQ Mix, considerado o Oscar brasileiro dos quadrinhos, e um Prêmio Ângelo Agostini, na categoria Mestre do Quadrinho Nacional. Ao assumir sua identidade feminina na maturidade, Laerte, hoje aos 65 anos, traz para o debate discussões em torno da transexualidade. Os questionamentos que faz sobre vida e política em seus quadrinhos, sua postura pública sobre questões de gênero, felicidade, preconceito, militância e arte são temas que o inspiram até hoje.

 

Você enfrentou algum tipo de dificuldade no início de carreira?
Não. Foi um começo bastante acolchoado. Minha família sempre me apoiou. Minha intenção acadêmica era me dedicar ao cinema ou teatro. Acabei fazendo música até o terceiro ano, mas não fui em frente porque reconheci que o que eu queria mesmo era desenhar. O desenho é meu canal de expressão principal. Comecei publicando no jornal do centro acadêmico, onde trabalhei, e ilustrei para uma revista que se chamava Banas. E aí foram aparecendo uma sucessão de trabalhos que me ajudaram bastante. Havia um espaço a ser ocupado na mídia que hoje já não existe mais.

 

Que conselho você dá aos cartunistas de hoje?
Sei lá! Eu ficaria absolutamente em pânico se tivesse que começar hoje. Naquela época, tínhamos que fazer um portfólio, físico mesmo, uma pasta grande com desenhos grandes e íamos pessoalmente às redações apresentar o material e encher o saco dos editores de arte. Hoje, qualquer pessoa que abre um blog tem potencialmente, em uma semana, todos os seguidores que eu demorei 10 anos para ter.

 

Qual foi a primeira tirinha que fez com a temática trans?
Não me lembro. Provavelmente, como toda autora de quadrinhos, de roteiro, já usei essa coisa de travesti como recurso narrativo em alguma situação. Os primeiros usos mais frequentes eram com travestimento, com uma questão cômica. Aos poucos, comecei a usar de forma menos cômica, menos caricata. Até que teve a primeira tira do Hugo, em que ele se travestia sem nenhuma desculpa, sem nenhum pretexto. E a fala era uma só: “às vezes o cara tem que se montar”, uma gíria de crossdresser.

 

“Estamos em uma época em que não podemos deixar de lado nenhuma questão em nome de uma formalidade artística ou movimento. É tudo uma questão de bom senso, e respeito às lutas das pessoas e respeito aos movimentos sociais que passaram por poucas e boas para chegar onde estão” 

 

Quando você começou a falar sobre a transgeneridade em seu trabalho?
Não existiu uma estaca inicial para eu tratar desse assunto. Essa questão transgênera se apresentou de forma gradual. Primeiro apareceu na minha orientação sexual, a minha homossexualidade que eu demorei 30 anos renegando. Quando eu resolvi aceitar, uma das coisas que veio de brinde foi essa, que além de curtir homem eu gosto de ser mulher. Depois eu comecei a me vestir e me maquiar, adotar uma persona. A feminilidade surgiu em encontros específicos e aos poucos percebi que gostava de ser mulher.

 

Sua visão feminina sobre as coisas lhe influenciou de alguma forma?
Ah, eu continuo a mesma pessoa. A gente não muda o modo de ver as coisas. Principalmente se você considerar que eu passei cerca de 60 anos me expressando como homem, e sem conflito com isso. O que me incomodava em ser homem era um vago desejo, uma inveja da beleza feminina que eu demorei em identificar. As pessoas tendem a querer resolver isso rapidamente.

 

Porque é tão difícil falar sobre a questão trans em sociedade?
Assusta principalmente o patriarcalismo, que defende a posição do macho predominante e da fêmea dominada. Mas as mulheres, através do feminismo e suas múltiplas formas, conquistaram um espaço de expressão social que os homens nem começaram, nem imaginam como é. Mas se você veste uma sainha ainda é um escândalo. Hoje, eu acho que há espaços em que é possível ver meninos com saia. Essa subversão mal está começando e já é esse escândalo. Imagina que tem gente reclamando de um beijo gay em um cantinho de uma cena em um filme da Disney. Tirem as crianças da sala! Essa gente não tem medida.

 

Para a Laerte, o gênero é somente uma formalidade social?
Tem a ver com o modo como uma determinada cultura se comporta e como ela entende o que é esperado das pessoas segundo o sexo que é atribuído a elas no nascimento. O que os estudos e as questões de gêneros têm levantado nos últimos anos é a volatilidade desses conceitos, a possibilidade dessas ideias serem transformadas e atenderem às novas demandas humanas modernas, libertárias e democráticas. Modos novos de viver o gênero. Então o que a gente está vivendo hoje em dia é uma batalha.

 

Pode-se afirmar que você é um dos ícones do movimento trans no Brasil?
Ah, eu não gosto de ser ícone. Quando comecei a viver a minha transgeneridade, já estava cheio de gente lutando. Tinha a Bruna, a Kika e dezenas de pessoas militantes e ativistas que estavam batalhando há muito tempo. Eu me integrei nessa luta. O que eu tenho feito é procurar fazer das minhas vivências uma coisa interessante para os outros e para mim também. Mas eu fico contente de fazer parte desse contexto de conscientização progressiva e crescente.

 

Sobre a polêmica em relação às escolhas dos atores para representar personagens trans no cinema e TV, qual é a sua opinião
Depende. No caso da Carolina Ferraz (que fará o longa-metragem A Glória e a Graça, em que interpreta uma transexual), acho exagero. Mas, há uns anos atrás, a Vanessa Redgrave interpretou brilhantemente a história do Renne Richards e sua transformação em mulher. Então cada caso é um caso. Estamos em uma época em que não podemos deixar de lado nenhuma questão em nome de uma formalidade artística ou movimento. É tudo uma questão de bom senso, respeito às lutas das pessoas e respeito aos movimentos sociais que passaram por poucas e boas para chegar onde estão.

 

Houve um momento em que decidiu agora vou me vestir de mulher, ser mulher?
Até houve. Foi depois que eu dei uma entrevista para a revista Bravo e o Arnaldo Antenori, jornalista, me perguntou porque eu estava de unhas feitas e brincos. Respondi que eu costumava me vestir de mulher e me apresentar como mulher em algumas situações. Então ele pediu para mencionar isso na matéria. Disse que alguma repercussão ia ter. Como de fato, aconteceu. Mas não foi ruim, eu não me senti envergonhada, mas aliviada por não precisar esconder mais quem eu era.

 

Para você, como é ser mulher?
Essa coisa de ser mulher e se expressar como mulher é algo incrível, um aprendizado interminável. Primeiro porque a quantidade de informações e arranjos possíveis de expressão é quase infinita. Segundo porque nós vamos mudando também. Comecei a me expressar de forma transgênera em 2011. Mesmo assim a gente vai mudando, tenho 65 anos, daqui a pouco faço 70 anos. O corpo muda, as energias mudam, os sentimentos e a roupas também. Hoje, estou mais feliz, plena e me reconheço no que eu sou.