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Escuta sensível

Nem jornalista, nem escritora ou documentarista; Eliane Brum define-se mesmo como uma “escutadora”. As histórias que conta carregam uma escolha política: têm como foco aqueles que não costumam ser protagonistas, como indígenas, moradores de rua e sem-teto. Colunista do jornal El País desde 2013, Eliane já trabalhou também no jornal Zero Hora e na revista Época. Desde 2004, acompanha histórias de pessoas atingidas pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, na região do Xingu, na Amazônia. Entre seus livros de não ficção, estão A Vida que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, 2006), O Olho da Rua (Globo, 2008) e Meus Desacontecimentos (Leya Casa da Palavra, 2014). Além disso, codirigiu os documentários Uma História Severina (2005), Gretchen Filme Estrada (2010) e Laerte-se (2017). A seguir, trechos do depoimento da jornalista, no qual ela fala sobre jornalismo e a sensibilidade por trás de um trabalho de reportagem.



Eliane Brum esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E  no dia 12 de abril de 2017

 

Escolhas

A minha escolha mais profunda, que está em toda a minha expressão, é o compromisso com aqueles que estão à margem da narrativa, porque acho que não existe nada mais brutal do que não ser contado na história. Foi isso que sempre me moveu.

Hoje, em que é possível medir a audiência, vejo que o que escrevo sobre Belo Monte tem menos audiência do que o que outras coisas que escrevo, assim como temas sobre moradores de rua, sem-teto, indígenas. Esse, para mim, é o motivo de escrever mais e não menos. Essa é uma escolha política que não se baseia na audiência.

Pacto de confiança

Antes de sair de casa, sempre me faço uma pergunta: se eu estivesse no lugar dessa outra pessoa, abriria a porta para uma repórter? Se a minha resposta for não, eu não saio de casa, e se alguém me diz que não quer falar comigo, eu não insisto, porque acho que ninguém é obrigado a falar com ninguém.

Quando alguém abre a porta da casa para te contar uma história, tem ali um pacto muito profundo. Não posso trair essa pessoa. Um entrevistado meu jamais ouviu que algo saiu de um jeito porque o editor mexeu e não pude fazer nada. A responsabilidade é minha, porque esse pacto é comigo e eu é que vou lutar pela voz dessa pessoa para levar aos leitores uma reportagem que contemple a complexidade da realidade.

Há um pacto de confiança nesse tipo de reportagem, é muito grande alguém se contar para o outro, e por isso tenho que ter esse respeito pela palavra do outro. Pela palavra exata, não pelo sinônimo, e por essa escuta, que é o grande instrumento da reportagem.
Por exemplo, acompanhei os últimos 115 dias de uma mulher que morreu de um câncer incurável, e durante esse tempo falei com ela praticamente todos os dias. Em nenhum momento ela pronunciou a palavra câncer. Se eu tivesse perguntado como ela lidava com o câncer, não saberia disso e não entenderia o que foi para ela viver a morte.

Entrevistas

Às vezes me perguntam como arranco as coisas das pessoas, mas não arranco nada. Para mim, arrancar é o contrário do que um repórter deve fazer. As pessoas me contam ou não me contam. Para o tipo de reportagens que faço, em geral bato na porta das pessoas e, sempre que possível, não faço a primeira pergunta.

Acho que a primeira pergunta fala mais de mim do que das pessoas, fala mais do que quero saber, e talvez não do que elas iriam me contar. A primeira pergunta é também uma forma de controle, e ser repórter é perder o controle em um certo momento, para poder alcançar o outro. Então, sempre que posso, eu digo apenas “me conta”, e é muito surpreendente por onde as pessoas começam a contar uma história.

Desabitar-se

Sempre descrevo a reportagem como se desabitar para ser habitado pelo outro. É um movimento de se despir de si, de seus preconceitos, da sua visão de mundo, do seu julgamento, para alcançar o mundo do outro e o mundo que é o outro, para depois empreender o caminho de volta, o que não é nada fácil. Você não volta dessa experiência impunemente, é profundo. Sempre que volto de uma reportagem, não consigo falar sobre isso, só consigo falar depois que ela vira palavra fora de mim, que é outro processo.

O que assegura que vou ser habitada pelo outro, o que é sempre uma busca e jamais por completo, é a escuta que se faz com todos os sentidos. Eu me apresento como uma escutadora, acho que é o que melhor me define como repórter. É uma escuta do dito, do não dito, do silêncio, da hesitação, dos quadros na parede, dos móveis, das texturas, das cores, dos sons, que não são palavras. É uma escuta ampla. Interfiro muito pouco nas minhas entrevistas, gravo e vou anotando tudo o que vai acontecendo no ambiente, de modo que eu consiga reconstituir aquilo que vivi e que escutei. Não conheço instrumento melhor para alcançar o outro ou para chegar o mais perto possível do que a escuta.

 

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