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A palavra flor

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

A PALAVRA FLOR
Era madrugada ainda
A casa dormia, a rua dormia, o bairro dormia
A cidade dormia
Ela descia as escadas com seus pés descalços com leveza feminina
Como se flutuasse a poucos centímetros do chão
Como um sonâmbulo
Ou melhor
Como se ela mesma fosse o seu próprio sonho

Ganhou o jardim a tempo de ouvir o primeiro canto do sabiá que despertou a cambaxirra, o canário, o coleiro, o tucano
O galo com seu canto claro solava anunciando a manhã

Ela trazia nas mãos folhas de papel que pendurava nas árvores uma a uma à moda das flores ou dos frutos
E aquelas folhas brancas pendiam ao vento em movimentos leves e harmoniosos que lhe provocavam sorrisos de satisfação
Eram flores e frutos que não respeitavam a cronologia exata do universo, a sazonalidade das estações
Respeitavam tão somente os desejos de Cecília
Aquela ideia maluca que se repetia de tempos em tempos de exibir uma nova safra de poemas em seu próprio jardim

As crianças acordavam e ficavam encantadas e iam de árvore em árvore colhendo versos, palavras, poemas que a mãe delicadamente a elas oferecia

Cecília Meireles era assim
A sacerdotisa desse ritual queria versos como flores, como frutos para enfeitar, alimentar, colorir a paisagem desenhada pela memória
Buscando na música entoada pelo canto livre dos pássaros a melodia mais que perfeita para o poema
E na dança proposta pelos ventos a mudança de ritmos numa coreografia enlouquecida pelos sentimentos libertos de qualquer censura

Como pintores que buscam na natureza a verdadeira cor de cada emoção
E cavam na terra à procura do pigmento preciso
Ainda intacto
Guardado pelos séculos
Isentos de catálogos
Virgens de olhares

Mas, de fato, a olhar por essa lente da crítica, exigese mais rigor
E aquelas folhas de papel nascendo de árvores de diferentes espécies como se fossem folhas, frutas, flores do papiro semelham-se mais às artes conceituais e suas instalações
Antecipando-se em 50 anos a esses artistas que quebraram a rigidez da moldura e sequestraram sua arte de museus e galerias e fugiram para os espaços públicos, para as ruas das cidades

Os poemas expostos à explosão do sol a lhes dizer bom-dia pareciam metáforas de uma libertação
Seja das estantes, das livrarias, das bibliotecas, ou, quem sabe, dos livros
Poderia ser talvez uma libertação das metáforas
Não mais poemas sobre rosas, hortênsias, margaridas
Seriam poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Não mais a flor do lácio, rosas que falam, rosas roubadas
Seriam poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Nem Maria Flor, Florípedes,
Florence ou Nega Fulô
Seriam poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Nem mesmo as flores do mal, a flor do futuro, a flor da vida, a flor da idade, a flor da pele, a flor do sal

Seriam poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Flor do Campo, Flor de Maio, Flor do Pântano,
Flor do Cerrado?
Não! Seriam poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Cecília estava além das imagens dos românticos ingleses
Nem Byron, nem Blake, nem Yeats, nem Shelley
Queria poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Nada de modernistas brasileiros com seu manifesto pau-brasil
Só poemas transmutados
Poemas propriamente flor
Ela não queria saber de flores mortas de Poe,
Baudelaire, Augusto dos Anjos
Ela só queria poemas transmutados
Poemas propriamente flor
E para ter um gran finale como na ópera, nas sinfonias, nos musicais
Após a morte de Cecília seus amigos prepararam uma antologia
E o título não poderia ser mais apropriado
Flor de Poemas


ESPAÇOPOEMA
Eu percorro o espaço físico proposto pelo poema
O espaço implícito
Texturas variadas se sobrepõem à leitura paredes, muros, chão, céu, tudo nuvens, mares, rios, líquidos diversos envasilhados escorridos, derramados, libertos de conformidades
É de todo incerto que a época evocada dê o tom que ilustra o poema funciona mais à guisa de cenário inconstante ao se modificar em
demonstrações de maleabilidade até se transformar em espaço onírico
O poema estabelece sua cor, cria desníveis, altera e alterna as horas e se declara atemporal condições climáticas desafiam a previsibilidade afastam as noções mais simplórias de claro e escuro

O poema captura o olhar interno do leitor penetra em regiões abissais busca a propriedade daquele momento vivo, liberto, anárquico o poema e sua trajetória o poema e sua memória todas as memórias o poema e sua história pleno de liberdade


SALADA PAULISTA
Salada paulista
Macabra caipira
Mulata sem cabeça
Das histórias sem fim
Das histórias sem pé
Nem orelha e uma pá virada
De crianças correndo
Inocentes com medo do escuro
Com medo do furo preto do tempo
Do tempo em que a gente vive
Do jeito que a gente não sabe
Do jeito que a gente não cabe
Nos cabos telefônicos
Nos projetos faraônicos
Em estilo mediterrâneo
No centro desta cidade suja
No centro desta cidade morta
Neste domingo de verão
Ensolarado
Uns gatos pingando nos botequins
Traçando a caipira
Salada de sangue
Raças e países
Mistura geral
Grana a granel
Greve bagunça
Breve vingança
Capital do capital
Capital progresso
Salada paulista
Eu te saúdo
Inventora do bauru
Sanduíche do meu país
 

LONGE PERTO
Eu não escrevo pra mudar as pessoas
E, talvez, nem mesmo para entretê-las
Escrevo para tê-las comigo nesse espaço imprevisto para que juntos possamos passear entre os segredos guardados pelo momento

Vamos imaginar o vasto e inabitado território das estrelas
Lá, livre do alcance das lentes mais poderosas e dos olhos ansiosos por entender o mecanismo celeste
Vamos nos deixar levar pra bem longe de nós mesmos
Onde nenhum sentimento possa nos habitar
E de lá observar o lento movimento do planeta
Vê-lo girar e mostrar suas variadas faces
Eta! mundinho besta!
 

BERNARDO VILHENA é poeta e compositor, fez parte do coletivo Nuvem Cigana, nos anos 1970, e já escreveu mais de 300 canções.
Entre outros livros, é autor de Vida Bandida e Outras Vidas (Azougue Editorial, 2015) e Rio Iluminado (Arte Ensaio, 2013).

 

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