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Hospedeira e Paquiderme

Atores e diretoras falam sobre os monólogos que revelam a nossa fragilidade e ausência de cuidados para com os seres à margem da “normalidade” - em cartaz no Sesc Consolação.

PAQUIDERME
Daniel Farias

“Não, eu não consigo. Me desculpem, eu não sei como contar essa história. Eu não sei como explicar, como as coisas chegaram nesse ponto. Eu não sei! Se eu pudesse eu escreveria pra vocês, e pra mim, esse... relato. É mais difícil mentir pro papel.
Se eu pudesse, eu escreveria, mas minhas mãos... Parecem as presas de um elefante.
Eu confesso que... eu mesmo ainda estou tentando entender. Na verdade essas coisas acontecem há muito tempo... e só quando o tempo começa a acabar é que a gente tenta se dar conta.
Eu nunca soube falar em público, isso tudo é muito difícil pra mim.
Minhas mãos. Presas.
Dizem que a adrenalina anula a dor, não é? Eu acho que o tédio também. ]
Agora elas latejam, elas doem, finalmente. É, acho que eu gosto. Hein? Ah, é preciso encontrar o pulso... a veia central.
Eu vou tentar explicar. Eu sei que esses olhos de vocês em torno de mim estão esperando para ouvir a minha defesa e eu espero que falando eu consiga dormir de uma vez e provavelmente no meu sonho ele vai aparecer pra me dizer que está tudo bem.
E aí vocês me deixam em paz. E eu também não atrapalho mais vocês.
O fato é que essas coisas acontecem há muito tempo e não faria o menor sentido eu contar apenas o que acaba de acontecer comigo pra fazer entender o que realmente aconteceu com ele, o que sempre aconteceu entre a gente e que de um modo ou de outro veio a dar nisso.
Eu ouço o que vocês estão dizendo, embora vocês achem que eu não entendo, eu sei que eu e ele estamos perdendo os últimos minutos de sangue, mas antes que o tempo escorra é preciso que se diga a verdade...”

PAQUIDERME é a história de dois personagens. Ou da persona dividida em um e outro. Da emergência de uma voz que fala por nós, do que pulsa sob nossa pele espessa. De uma agonia que nos atravessa, assim como uma ferida que não cessa de coçar. Do sangue na pele à veia e, finalmente, à carne, ao nervo e ao cerne do que jorra de sua boca. Das palavras que de alguma forma precisam sair. Disso que surge por dentro como a nossa própria cura. Daquilo que nos inquieta. Da nossa crise de consciência. Do conflito em que nos encontramos entre seguirmos pacatos ou assumirmos a força de nossa fúria.

Lá fora algo nos diz que o modo de operação de nossas vidas entrou em colapso e que precisamos agir e encararmos nós mesmos. Aqui começa a caminhada de nosso Paquiderme. Desejo que os nossos passos possam ressoar, mesmo que tenham de emergir através de nossas máscaras.

HOSPEDEIRA
Fernando Aveiro

“Agora,
Já do lado de fora,
Eles mediam seus passos.
Examinavam.
Cochichavam.
Ela,
Vinha com areia grudada nos pés.
Eles,
Sussurravam enquanto ela caminhava.
Depois urravam.
Ela,
Que vinha caminhando,
Não era ela,
Era uma coisa,
Era um crustáceo aos olhos de quem a via.
Mas ela, era pra ela, mulher.
E sendo mulher, que gera vida,
Sentiu-se (se ainda existir a palavra),
Pura.
Pura, como substância.

E ainda,
Indissolúvel.
E sagrada como a prostituta.
Aproximava-se, então, a multidão.
Ela, mulher-crustáceo,
Assustada,
E com dificuldade de respirar,
Cai.
Daí em diante, mais duas e três multidões,
Estava ela condenada.
Estava a areia, tribunal.
Ela, Mulher-crustáceo,
Observa:
Um rosto, outro rosto, mais outro e outros mais.
Quarenta mil rostos a observam.
Ela,
Mulher-crustáceo,
Tem duas lágrimas impedidas.
E eis, seu fim”.

Em tempos nebulosos de julgamento, o cerceamento opera pelas mãos de cidadãos – membros do júri, que gozam ao se perceberem do outro lado, separados daquele ser que se encontra no meio, distinto, e, portanto, merecedor de todos os desafetos. Sob o comando ferrenho de domadores inescrupulosos, apontam agora, sem rodeios, os holofotes na mira de suplicantes cobaias, cultuando um cotidiano que mais se assemelha a uma espécie de “tribunal reality show”.

Carmen é uma das figuras que está no centro dessa ebulição. HOSPEDEIRA de memórias duras, de cicatrizes, ela aparta-se da realidade, outorgando para si viver num simulacro de vida como uma heroína. Devolvê-la para o fundo do mar, imaginando que o inconsciente marítimo das águas possa acolhê-la, e também aos desamparados, num espaço comum de renascimento para uma outra civilização, pode ser uma grande metáfora para acolher a nós todos, neste momento de desamparo em que nos encontramos como nação.
 



HOSPEDEIRA & PAQUIDERME DÍPTICO DE ESTRANHAS E ESQUIZOS DRAMATURGIAS CONTEMPORÂNEAS

é um projeto de dois monólogos que conversam, metaforicamente, sobre as doenças neuronais que marcam a sociedade ocidental do século XXI. Ambos revelam a nossa fragilidade e ausência de cuidados para com os seres à margem da “normalidade” - seja esta manifesta num ser que nos é desconhecido e avesso, ou ainda, a surpreendente e súbita manifestação da nossa própria animalidade.

Em HOSPEDEIRA, o espetáculo -fêmea, surge uma mulher-crustáceo, recém-emergida do fundo do mar, numa areia-presídio-tribunal. Imediatamente demonizada por 40 mil rostos mortais, sedentos de estranheza e castigo, a “mulher-coisa” é submetida a uma cirurgia para extirpar seus indesejáveis tentáculos.

Em PAQUIDERME, a peça-macho, nos deparamos com um homem diante de um outro – que espelha um confronto íntimo e individual, na oscilação frequente entre o sentimento de um paquiderme imenso e poderoso ou, no extremo oposto, um elefantinho indefeso capturado ainda criança.

Ambas as peças são duas metáforas poderosas que abordam o enigma animal a indagar o paradoxo de nossa enferma humanidade. Paradoxalmente, tal esquizo imersão no “eu” pode, em instâncias opostas à doença e à loucura, fazer com que os homens acessem sua genuína e lúcida intimidade.

As encenações propõem, com os espetáculos, um mergulho na ancestralidade, para que algum resgate seja feito, e, para que o regresso traga consigo a quebra dos muros e a legítima aceitação do outro.

Johana Albuquerque e Georgette Fadel

 

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Bom para acompanhar você quando estiver correndo, com saudade do Angeli e do Laerte dos anos 80 e outras cositas más. Chega mais!