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Sobre as nossas finitudes

Lucy Franco (*)

Para refletir sobre as questões que dão sentido à vida e ao mesmo tempo sobre as condições que podem levar um sujeito a desejar acelerar sua morte, vou apresentar alguns aspectos de duas produções cinematográficas que considero significativas sobre o tema. 

Trata-se do filme francês Amor, de Michael Haneke, e do israelense A festa de despedida, de Maymon e Granit, nos quais cada um a seu modo aborda de maneira delicada e singela o tema da eutanásia (1) ou, mais precisamente, os difíceis processos que levam à finitude e o direito de cada um escolher o momento da sua morte para vivê-la de maneira digna. 

Então, vamos ao primeiro filme, o sombrio Amor, que apresenta a vida de um casal de velhos, de classe média, bastante cultos, casados há muitos anos, que aproveitam a vida, frequentando concertos de música clássica, que adoram. 

O convívio entre eles é amoroso, têm uma filha musicista que vive viajando e os visita pouco. Tudo parece tranquilo, até o momento em que a mulher sofre um acidente vascular que deixa graves sequelas no que tange à mobilidade e à fala, comprometendo completamente sua antiga autonomia e a qualidade de vida. 

Seu marido passa a cuidar dela, com extrema dedicação e carinho, sem esconder a tristeza profunda por ver sua companheira da vida toda em situação tão delicada e esmorecendo a cada dia. A situação se complica tornando necessária a contratação de uma enfermeira que o auxilie na lida diária dos cuidados com a casa e a mulher. 

O público e os personagens vão sendo tomados por um clima de nostalgia, de algo que se perdeu nessa trajetória, talvez o próprio sentido da vida. O que se prenuncia, então, é a grande solidão que marca esse período da vida do casal, a filha não suporta ver a mãe naquele estado, mal consegue visitá-la e, quando o faz, preocupa-se apenas com o futuro econômico da família e critica o tratamento dedicado à mãe, pois considera que ela deveria receber cuidados especializados em uma clínica, ideia essa totalmente refutada por seu pai. 

O filme prossegue, demonstrando a coragem e o sofrimento do casal que a cada dia se depara com a decrepitude crescente e a impotência em reverter uma situação que só se agrava; a mulher sente-se envergonhada e humilhada por se ver presa numa relação de dependência do companheiro e da enfermeira. 

Nesse momento há uma cena emblemática, quando ela pede ao marido que pegue o álbum de fotografias, pois gostaria de rever algumas situações da história familiar passada. O que ela procura afinal, senão cenas que provavelmente foram muito significativas e que permitem rememorar, pelo menos por um instante, o prazer de ter construído experiências importantes junto aos seus? 

Ao longo do filme, a situação torna-se ainda mais sombria, o sentimento é de limite e impotência, a mulher continua acamada, pronunciando repetidamente a palavra “dói”, ao que o marido prontamente responde, oferecendo seu carinho e cuidado. 

Mas, nessa situação, valeria a pena perguntar o que de fato dói tão insistentemente? Para além da dor física, parece machucar ainda mais a ausência de sentido, a consciência dos limites impostos pela doença, a característica irreversível da situação e, por que não dizer, a imposição contundente da própria finitude. 

Então, nesse clima de sofrimento, ao se confrontar com o “sem-sentido” do sofrimento da esposa que continua a gritar exaustivamente “dói, dói, dói”, o velho decide intervir na situação com o propósito de diminuir o sofrimento da companheira, deixá-la descansar em paz e encerrar sua trajetória dignamente.

Para isso, depois de lhe contar uma breve história sobre seu passado longínquo, joga o travesseiro sobre ela e com o peso do próprio corpo provoca sua morte por asfixia.

A mulher resiste por alguns segundos, trata-se de uma atitude repentina, violenta, dura e quase cruel, que, no entanto, revela-se libertadora para ambos, na medida em que põe fim ao sofrimento e marca o início do luto definitivo pela perda da companheira e, sobretudo, pelo fim de um convívio que atribuía forte sentido à sua existência. Um luto que provavelmente ressignificará toda uma vida em comum, redimensionando a questão da morte e do processo de morrer.

Uma das cenas finais traduz generosamente com uma bela metáfora a atitude do velho em relação à esposa: trata-se do momento em que uma pomba adentra o apartamento e ele a aprisiona com um cobertor, acariciando lentamente a ave, libertando-a em seguida no jardim. Impossível não associar que, ao asfixiar a mulher, ele também procurou libertá-la da prisão na qual estava enclausurada e sem nenhuma perspectiva de saída.

Nesse caso, ao interromper uma situação trágica e irreversível o personagem retoma as rédeas da sua própria história ao respeitar e reconhecer a legitimidade de uma morte digna para alguém que ele tanto amou ao longo da vida.

Já no filme A festa de despedida o tema da eutanásia (2) também é tratado de maneira séria e relevante pelas problematizações que propõe, mas mantém um clima mais leve em sua abordagem. 

Trata-se de um grupo de bons e velhos amigos bastante divertidos, que convivem em um residencial para idosos em Jerusalém, e se deparam com as doenças que acometem gradativamente cada um deles.

Sendo assim, o grupo de idosos passa a questionar o sentido da vida, do ponto de vista de quem acredita estar chegando ao fim dela, principalmente quando isso inclui ter de enfrentar doenças degenerativas que muitas vezes colocam os pacientes em situação de descontrole, humilhação e vergonha.

Os personagens passam a assistir ao sofrimento crescente daqueles com quem compartilharam boas histórias e que participaram ativamente de momentos importantes de suas vidas, o que se caracteriza como uma dor sem precedentes, pois significa presenciar a debilidade e a perda gradativa da autonomia que era essencial para garantir a qualidade de vida desses sujeitos, na qualidade de seres desejantes. 

Morrer é inevitável, nossa única certeza ao longo da vida, mas padecer lentamente numa cama de hospital não é fácil, envolve dor, consciência das inúmeras perdas e o enorme sentimento de impotência, além da vontade de acelerar o processo doloroso da morte, pois, conforme nos diz um dos personagens do filme, “posso simplesmente morrer ou sofrer e morrer”.

Diante de tais inquietações, o grupo de idosos constrói uma máquina para acelerar a morte daqueles que optam por morrer antes de estarem completamente inconscientes de sua situação e debilidade. 

Trata-se de um equipamento singelo, produzido de forma artesanal e doméstica, que com intenção altruísta dos criadores auxilia o processo da morte, desde que justificadamente solicitado pelo paciente e contando com sua participação ativa. 

Ou seja, o grupo grava uma videodeclaração com cada pessoa, que reafirma diante da câmera sua decisão de antecipar a morte, e depois disso a própria pessoa aciona o botão que fará a descarga da substância que provocará a chamada “doce morte”. 

Essa situação não é tranquila no filme, pois gera muitos debates, inquietações, dúvidas e inclusive acusações de assassinato por parte dos personagens. Enquanto alguns condenam a utilização do equipamento, outros passam a se beneficiar com esse “serviço prestado”, atribuindo um valor financeiro para cada solicitação, numa atitude antiética que gera certa desestabilização do grupo como um todo. 

Já os doentes solicitantes dessa “ajuda” se sentem aliviados com a possibilidade de exercer conscientemente seu direito de usufruir um equipamento que os libertará do aprisionamento que uma doença terminal poderá provocar. 

O principal ponto comum entre as duas produções está na ideia de uma morte que liberta. Ambos os filmes questionam o sentido da vida e reconhecem que estar vivo vai além de apenas prolongar a sobrevivência do paciente em sofrimento, a todo custo, por egoísmo ou capricho; seria um benefício para quem afinal? 

Os dois filmes nos dizem que a vida só vale a pena ser vivida quando cada um reconhece suas potencialidades, exerce seus desejos, alimenta projetos e principalmente quando as relações levam os sujeitos a compartilhar “a dor e a delícia de ser o que é”.

Afora isso, pensando nas situações vividas pelos personagens, parecia restar apenas a dor de estar “vivo” e o desejo real de abreviar o processo lento e doloroso da morte, perante a impossibilidade de continuar existindo como sujeito pleno de sua própria história. 

Então, pelo menos duas perguntas vêm à tona para nossa reflexão: Qual o sentido de encerrar uma vida de maneira pouco digna, numa situação de sofrimento, tristeza e falta de consciência, vivendo situações constrangedoras e de impotência? Reconhecer que é chegado o fim da jornada e morrer tranquilamente não seria algo desejável para todas as pessoas em situação de extrema vulnerabilidade? 

Para os personagens, a decisão de antecipar a morte vem do medo de ter de enfrentar um futuroainda pior em função da doença, sem autonomia e sem projetos. Todos reconhecem o valor da vida vivida e veem se aproximar o fim, então, talvez, como última oportunidade de fazer uma escolha importante e consciente, decidem ser os autores de sua própria morte. 

Essas reflexões deixam entrever o quanto a questão da eutanásia é polêmica. Trata-se de um tema espinhoso que envolve questões éticas, religiosas e ideológicas, e, portanto, demanda muito debate e reflexão em diferentes fóruns, que possam auxiliar na proposição de leis que considerem a questão dos direitos civis, a diversidade de opiniões, o respeito às escolhas e à liberdade que cada ser humano deveria ter, para tomar as rédeas de sua existência.

Depois de analisar os filmes, é importante considerar que não existe uma receita certa para viver a finitude, a impotência e as limitações com as quais nos depararemos ao longo da vida, pois cada ser humano é único e construirá de maneira muito particular sua história, então tudo que vier pela frente dependerá dos contextos, das escolhas e dos posicionamentos desses sujeitos diante da complexidade que é viver.

Vale lembrar também que há uma tendência social de pensar as questões da doença e da morte de forma reducionista, quase sempre associadas unicamente àqueles que tiveram uma vida mais longa, mas o que temos visto é que essa relação de causa e efeito nem sempre se confirma. 

Portanto, é essencial que o debate sobre a prática da eutanásia se dê com respeito à ética e que seja pensado de forma abrangente, para além da velhice, pois todos estamos sujeitos a enfrentar a finitude, à nossa própria maneira, em qualquer fase da vida.

Sendo assim, deixo aqui a sugestão de outros filmes que poderão aquecer ainda mais a reflexão, a partir desse outro olhar; são eles: A menina de ouro, de Clint Eastwood (2004); Mar adentro, de Alejandro Amenábar (2004); e Como eu era antes de você, de Thea Sharrock (2016). Esses filmes, assim como vimos em Amor e A festa de despedida, também discutem a questão do direito à morte digna, porém na perspectiva de que estar vivo de fato, para velhos ou jovens, está diretamente relacionado ao desejo e aos diversos sentidos que produzimos na relação com o outro. 

 

(1) Segundo o professor de filosofia Faustino Vaz, no artigo O problema ético da eutanásia: “O termo ‘eutanásia’ significa literalmente ‘morte boa’ ou ‘morte feliz’. É verdade que os casos reais envolvem dor e angústia. Mas o significado literal do termo capta um importante aspecto da eutanásia: a morte que dela resulta é para benefício do paciente. Podemos então dizer que a eutanásia consiste em produzir ou acelerar intencionalmente a morte de alguém para seu benefício. Parece haver uma diferença entre produzir e acelerar. Produzir, neste caso, implica matar; acelerar implica deixar morrer”. Disponível em: <http://criticanarede.com/eticaeutanasia.html>. Acesso em: 4 jul. 2009.

(2) Sugiro a leitura do artigo publicado no jornal El País – Caderno Ciência. “Eutanásia: Quem decide como devemos morrer?”, de Milagro Perez Oliva. Edição: 1 de abril de 2017. 19h24 BRT. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/31/ciencia/1490960180_147265.html>.


(*) Psicóloga, pós-graduada em Crítica de Cinema pela FAAP, com mestrado em Comunicação Visual pela Universidade Anhembi Morumbi. Atualmente trabalha na área socioeducativa do SESC 24 de Maio. Email: lucy@24demaio.sescsp.org.br