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Cinema Vivo

“Nasci em Curitiba e minha família era de Tatuí, no interior de São Paulo. A gente mudava muito de cidade, mas eu sabia que sempre encontraria salas de cinema”. Foi assim que Marco Del Fiol desenvolveu o gosto por filmes. Desde menino, o que mais gostava de fazer era ver os cartazes dos filmes que anunciavam suas estreias. Perto deles havia sempre uma sequência de fotos das cenas. Olhava as imagens e imaginava como uma iria se conectar a outra. O garoto gostava de ligar os pontos. A sala de cinema era seu lugar de acolhimento. Mais tarde, quando se mudou para São Paulo, começou a frequentar a Cinemateca, as mostras de cinema e outros eventos e espaços para ver os filmes alternativos. Com uma formação diversificada, tornou-se editor, roteirista e diretor. Codirigiu Mau Wal: Encontros Traduzidos (2002), dirigiu Emoção Art.ficial 2.0 (2004) e Marepe (2005), este último para o Centro Pompidou, de Paris. Desde 2011, colabora com o Festival Videobrasil. Em 2016, estreou o documentário Espaço Além¿—¿Marina Abramovic e o Brasil. Atualmente, se prepara para lançar Os Cravos, um registro sobre a arte e complexidade das relações da família de Mário Cravo Júnior, escultor e um dos maiores nomes do modernismo brasileiro.

 

 

Como você avalia seu trabalho e sua trajetória?

Eu sempre me senti um pouco clandestino no mundo do cinema, minha produtora é na garagem de casa. Além disso, tudo aquilo que dizem para eu não faça eu faço. Por exemplo, eu não tenho repertório. Acredito que um trabalho chama o outro, um condensado de dois minutos do que eu fiz não vai mostrar quem eu sou, meu ofício. Só o trabalho que vai me projetar, e nenhum outro motivo.

Qual foi sua primeira produção?

Quando eu fiz 40 anos, me lembrei do primeiro vídeo que eu fiz, aos 15. Chamava Eu Giordano. Foi na escola em que eu estudava, como parte de um trabalho de química e história. O filme contava a história do Giordano Bruno e se passava na idade média. Eu só tinha uma câmera VHS, e alguns amigos que queriam gravar junto comigo. Tive que acreditar e arriscar. Hoje, tenho uma equipe e já gravei dois longas-metragens.

Como você escolhe os temas de seus trabalhos?

Eu me interesso muito pela arte contemporânea, uma coisa que eu não tinha proximidade; achava hermético. Mas, à medida que comecei a trabalhar com esse tema, eu me encantei. O mundo da arte é muito mais elástico do que o do cinema, que às vezes tem regras muito rígidas. Nas artes visuais, você tem muito mais espaço para experimentação de linguagem. Fiquei encantado em ver como cada artista cria seus universos e regras, assim como os grandes diretores e autores de cinema, mas nas artes contemporâneas há o envolvimento de mais elementos.

De que forma os trabalhos de artistas visuais dos anos 1980 influenciam o audiovisual contemporâneo?

Os grandes saltos na linguagem audiovisual brasileira, de uma forma ou de outra, estão ligados aos videoartistas e ao festival que reunia seus trabalhos, o Videobrasil. Ele teve um papel fundamental porque foi o ponto de encontro dessa produção que no começo dos anos 1980 não tinha onde ser exibida, ficava num limbo. Não ia para o cubo branco, que é o espaço da galeria, e nem para o cinema. Os lugares de exposição e troca eram os festivais. Neles, pudemos ver os primeiros trabalhos de, Fernando Meirelles, Marcelo Tas e Marcelo Machado, entre outros. Muitos deles foram depois para a TV Gazeta, fizeram o TV Mix, ou foram para a MTV, e hoje, são referência em cinema e televisão.

Qual a sua relação com o Videobrasil?

É uma relação de família. Eu trabalho com a Solange Farkas, diretora do festival e da associação, desde 1999. O Videobrasil me possibilitou experimentar, ter contato com artistas e obras. Foi uma relação de muita troca. Tenho carinho e cuidado pelo festival, porque ele é uma plataforma de pesquisa de arte sem igual. No começo, era a novidade do vídeo, mas nos últimos 10 anos, a pesquisa da Solange voltou-se à produção feita no eixo Sul, em países em que não há museus, em busca dos artistas que estão produzindo.

Diante do cenário de produção de videoarte atual, quais trabalhos chamam sua atenção?

Sempre me chamam atenção os artistas que fazem a transição para o cinema, como o Carlinhos Nader, que fez O homem comum, Cao Guiamarães, com O homem das multidões, Gabriel Mascaro, com Boi Neon e Isaac Julien, cujo trabalho possui uma carga política que abordas as questões raciais, de imigração e de território, de maneira extremamente elaborada. Todos elespassaram pelo Videobrasil e percorrem o circuito galeria de arte e sala de cinema. O trabalho deles tem proximidade com o que eu faço.

Dá para viver de produção independente no Brasil?

Eu sou muito dependente, dependo da boa vontade dos parceiros, da equipe, de onde vem o dinheiro para se produzir. Por exemplo, o filme da Marina aconteceu no susto. Me ligaram em dezembro com a proposta para dirigir, e avisando que ela chegaria em 5 dias. Viajamos 40 dias financiando o filme, o dinheiro foi aparecer somente dois anos depois. Dei um jeito, mas não quero mais gravar assim. Do dinheiro aplicado retorna muito pouco. Fui aprendendo a fazer as coisas dentro dos esquemas dos editais, com um texto que tenha a intensidade dramática e poética do filme.

O que o levou a dirigir Espaço Além - Marina Abramovic e o Brasil?

Quando eu era criança, meu pai tinha uns livros de arte bonitos e minha vó tinha uma bíblia daquelas edições de luxo, com pinturas renascentistas e bordas douradas. Eu achava aquilo um objeto com valor maior, que misturava arte com religião. Então, quando comecei a fazer documentários sobre arte, achava que eles tinham que ser como os livros de arte, feitos com um pensamento e um cuidado diferentes. Quando uma amiga performer, a Paula Garcia, me contou do projeto e fez o convite para dirigir o filme da Marina, aceitei porque arte e religião são temas que sempre me interessaram.

Como foi dirigir Marina Abramovic?

A Marina é indirigível. Ela diz que gosta de receber ordens, mas também dá, ela é militar. Não sei se a dirijo, porque esse tipo de filme é baseado em confiança e generosidade. Houve uma empatia entre nós. Ela viu meu trabalho e confiou em mim para me deixar registrar sua experiência, sua vida. Isso inclui as suas sombras, a parte que a gente não quer mostrar. Não foi fácil, ela é muito controladora, mas entrou na proposta. Quando se fala em direção de documentário, nesse caso é muito mais um caminho de convívio.

O filme trouxe mais visibilidade para o seu trabalho?

Sim, sem dúvida, porque a Marina é muito midiática. Às vezes as pessoas questionam quem é esse cara que saiu do nada¿—¿porque há certas hierarquias no cinema nacional. Mas a resposta sobre o questionamento vai ser dada no meu próximo filme. As pessoas vão entender que tipo de cinema me interessa e que pretendo fazer.

Que tipo de cinema lhe interessa?

Eu me interesso por um cinema vivo. É isso que quero fazer. Eu gosto de fazer documentários porque eles acompanham a vida das pessoas. Fico alguns anos trabalhando neles e suas narrativas se constroem nessas janelas de tempo. O grande tema do meu trabalho é a vida.

Como o documentário tem sido recebido lá fora?

Em termos de mercado, o filme foi para mais de 30 festivais internacionais, entrou no site de compartilhamento Vimeo, que disponibilizou o conteúdo para 87 países, além de estar em várias plataformas de vídeos on demand. Com relação à crítica, as reações são variadas. Tem gente que entra na viagem do documentário, mas há quem diga que o filme é uma loucura, que mostra o João de Deus fazendo cirurgia sem anestesia, sem esterilização. É um diário de viagem da Marina. Eu não quis em nenhum momento trazer depoimentos científicos, não é um filme para explicar é para sentir. Ele divide opiniões, mas as repercussões foram muito boas, porque o filme mexe com as pessoas.

Você esperava tanta repercussão?

Aqui no Brasil o filme ficou cinco meses em cartaz nos cinemas e agora vai ser exibido pelo SescTV. Eu achava que por causa da Marina ele teria certo destaque. Mas o roteiro é arriscado e diferente do convencional. Eu queria que fosse assim, algo que mexesse com o corpo físico e mental das pessoas, que fizesse com que elas repensassem coisas. É o filme que eu não sabia, mas que sempre quis fazer.

O que vem depois de Espaço Além?

Estou finalizando um documentário sobre a história dos Cravo, uma família de artistas talentosos que eu acompanhei por quatro anos. Mario Cravo Júnior, escultor, fez parte da geração do modernismo brasileiro ao lado de Caribé e Jorge Amando, e hoje aos 94 anos ainda produz suas obras; Mário Cravo Neto, seu filho, falecido, foi uns dos grandes fotógrafos de arte brasileiro; e o filho de Mário, Cristian Cravo, também fotógrafo. O filme trata da complexidade das relações familiares, de como a perda de qualquer membro desse grupo desestrutura e transforma as relações; além de fazer uma revisão do papel do homem na sociedade.