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A reinvenção do teatro infantil

injustiças sociais, morte e exílios sobem ao palco como novos temas abordados em espetáculos para as crianças


Refugo Urbano | Foto: Divulgação
 

Era uma vez dois amigos – João e José – em uma ardilosa missão: costurar depressa um casaco para o rei. Só que eles não imaginavam que a intervenção surpresa de um mágico fosse capaz de mudar o rumo e os ponteiros dessa história. A partir daí, desenrola-se o enredo de O Casaco Encantado, da dramaturga Lucia Benedetti, peça de 1948 que se tornou um marco da história do teatro para crianças no Brasil. De lá para cá, temas, personagens e cenários ajustaram-se a diferentes contextos socioculturais para subir ao tablado. Mas apenas nos últimos anos é que reflexões sobre diversidades, afetividades, injustiças sociais, preconceitos, adoção, alteridade e outras questões que já foram classificadas como “coisa de adulto” ganharam mais visibilidade.

Esse é o caso de A Princesa e a Costureira, montagem do Grupo de Teatro Conspiração, da dramaturga Solange Dias, que ganhou seis prêmios entre 2015 e 2016. Entre esses, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de Melhor Espetáculo Infantojuvenil sobre a Diversidade. A peça é uma adaptação do livro homônimo escrito pela psicóloga Janaína Leslão, publicado pela Metanoia Editora, que conta a história de amor entre duas mulheres.

Segundo a autora, a montagem aguça a reflexão de crianças e adultos sobre as diferenças. “Na atuação, há mudanças constantes de personagens em forma de jogo, sugerindo a necessidade de nos colocarmos no lugar do outro para entendermos diferentes formas do ser”, explica a psicóloga, que teve a ideia de abordar esse tema em 2007, enquanto trabalhava questões de sexualidade e de gênero com um grupo de adolescentes, acompanhada por dois arte-educadores. “As histórias que estavam presentes na imaginação do grupo como ‘representativas de final feliz’ eram os contos de fadas mais conhecidos. Mas, quando falavam de amor entre duas pessoas do mesmo sexo ou de travestilidade e transexualidade, as referências eram os noticiários que traziam os casos de violência contra essas populações, não havendo espaço para pensar que uma história feliz seria possível”, lembra. “Na época, busquei contos de fadas alternativos aos convencionais e não achei. Então pensei ‘um dia vou escrevê-los’. E foi assim que aconteceu.”
 

Espaço para reflexão

Para o crítico de teatro, dramaturgo e criador do site Pecinha é a Vovozinha, Dib Carneiro Neto, esses novos temas sintonizados com a atualidade ampliaram o repertório nos últimos dois anos. “Esse sempre foi um processo bem lento e gradual, afinal foram muitas décadas de preconceitos e temas considerados tabus. A transição veio aos poucos”, defende. “Tudo tinha de ser feito com calma e com responsabilidade, para não haver rejeição do público. É claro que é preciso ser responsável e delicado nas abordagens, mas temas proibidos não deveriam mais existir.”

Por isso, outra característica defendida pelo crítico e outros estudiosos é a de que as peças voltadas ao público infantil passem à margem de lições de moral ou pretensões didáticas, “que mais afastam do que aproximam o público”, reforça. Há mais de quatro décadas, quem já havia levantado essa bandeira foi a carioca Bárbara Heliodora (1923-2015), um dos mais importantes nomes da crítica teatral no país.

“Que o teatro [para as crianças] educa, não há dúvida, ou, melhor dizendo, pode educar, mas deve educar pelos seus próprios meios, pelo aprimoramento de conceitos estéticos, pela ampliação da experiência de conhecimento humano, e nunca pela lição de moral impingida, soletrada e empurrada goela abaixo a qualquer preço”, escreveu Heliodora no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1961.

 


1,2,3…. Quando Acaba Começa Tudo Outra Vez, espetáculo infantil do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos | Foto: Tide Gugliano


Conversa aberta

Com cuidado e sensibilidade, montagens como Salve, Malala!, da Cia. La Leche, inspirada na história da garota paquistanesa Malala Yousafzai, que sobreviveu aos horrores de uma guerra, ou Refugo Urbano, da Trupe Dunavô, sobre a amizade e o amor entre dois catadores de lixo, conseguem trabalhar, segundo Janaína Leslão, situações ora observadas pela garotada em sites de notícias e programas de televisão, ora vividas na escola ou em casa.

O tema do respeito às diferenças e diminuição das desigualdades pode estar presente no dia a dia da família. Se o adulto se sentir confortável, ele pode comunicar à criança que vão assistir a um espetáculo em que a princesa se apaixona pela costureira e conversar sobre a temática antes, resgatando as vezes em que o assunto já veio à tona”, explica a psicóloga. “Mas também pode aguardar a criança assistir e ter a história como um disparador para um diálogo, usando os elementos das cenas para a conversa. O melhor método é aquele em que o adulto responsável pela criança se sinta mais tranquilo.”

Enquanto o livro Joana, a Princesa, sobre uma menina trans, prepara-se para sair do papel para os palcos, Leslão celebra o fato de que os adultos já reconhecem a importância da abordagem de novos temas. “[Eles] Nos dizem o quanto seria bom se tivessem tido contato com esse material em sua própria infância ou adolescência, o que nos indica que estamos trilhando um caminho que faz sentido para as pessoas e suas vivências”, declara.

Dessa forma, o teatro para crianças torna-se cada vez mais um teatro para toda a família, capaz de abraçar diferentes gerações de espectadores. Até mesmo porque “os temas se multiplicam a partir das vidas que também se transformam”, destaca Sérgio Luis de Oliveira, assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, que participou do bate-papo Do Teatro Infantil ao Teatro para Todo Público, no Sesc Ipiranga, em setembro.

“O teatro para crianças tem que ser um teatro que expande o horizonte, que abre frentes e espaços de conhecimento, de reflexões, de bons incômodos, abre para a transgressão crítica, para  novas possibilidades de vida. O bom teatro constrói autonomias e responsabilidades frente à liberdade humana”, destaca Oliveira.

Pela arte, as crianças podem experimentar uma nova visão de mundo, se colocar em outros papéis e viver outras emoções. “Sobre a quebra de tabus, dizemos no espetáculo [A Princesa e a Costureira]: ‘Não adianta cortar o nó da intolerância com tesoura, para fazer de conta que ele não existe. Também não adianta puxar os fios com força, porque os nós ficam mais fortes. Nó se desata afrouxando um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Nó se desata afrouxando os fios da alma e do coração’”, arremata Janaína Leslão.

 

Outros olhares, outras reflexões



Dar espaço para a realização de peças infantis que abordem assuntos em sintonia com questões contemporâneas é um modo de promover o contato de crianças com outras perspectivas de vida e sociedade. “Buscamos com as ações provocar e ampliar as referências simbólicas culturais, que são fruto de construções sociais, de valores, hierarquias e estruturas de poder, que legitimam ou afastam algumas experiências humanas. Portanto trata-se de acolhimento à diversidade já existente, de educação no sentido ampliado, para si e para o outro”, explica Emília Carmineti, assistente da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo. Confira alguns exemplos dessa pluralidade de abordagens do teatro para crianças.


Direitos Humanos


Salve, Malala!  |  Cia. La Leche
Livremente inspirado na história da garota paquistanesa Malala Yousafzai, o espetáculo se passa numa aldeia em algum lugar do mundo, onde um rei promove uma guerra contra escolas para meninas e outros direitos das pessoas que lá vivem.

(Em Cartaz no Belenzinho até 8 de outubro)



Foto: Felipe Stucchi

 

Morte


A pequena semente do amanhã  |  Cia. Navega Jangada de Teatro
Julieta é uma menina de sete anos, brincalhona, arteira e curiosa como qualquer criança de sua idade. Seu avô Nono é um senhor sábio, contador de histórias e grande amigo do Tempo. Os dois têm algo em comum: aproveitam esse tal tempo, mesmo que de formas diferentes.

(Esteve em cartaz no Sesc Santo André em julho de 2017.)



Foto: Divulgação
 

Skellig  |  Cia. Simples
Narra as aventuras de Michael, um menino curioso e sensível, em seus encontros com um estranho ser alado que habita a garagem de sua casa nova. Em Skellig, referências poéticas e mitológicas dão o tom de mistério e revelação, onde as aves e seus voos são metáforas para tratar de vida e morte, amizade e amadurecimento.

(Em cartaz no Sesc Pompeia, de 12 a 29 de outubro.)

 

Novos arranjos familiares


Família Formigueiro Casa Condomínio  |  Grupo Poleiro do Bando


Dedé e Bica têm nove anos e são colegas de escola e vizinhos de condomínio. Impulsionados por uma pesquisa escolar, as crianças iniciam uma jornada que as conduzirá à descoberta da pluralidade de arranjos, combinações e formatos que cabem dentro da palavra “família”.



Foto: Cacá Bernardes

 


Desigualdade Social


Era uma vez um Rei  |  Grupo Pombas Urbanas


Um grupo de mendigos se encontra em uma praça da cidade. Latas, plásticos, garrafas e papelões criam o espaço onde vivem, descansam e fazem festa. De suas relações, nasce uma brincadeira na qual um deles propõe ser rei. A partir disso, tem início um intenso jogo humano e imaginativo e esses mendigos saem da realidade em que vivem para representar as relações de poder da sociedade que os marginaliza.

(Em cartaz no Sesc Bom Retiro, dia 22 de outubro.)



Foto: Divulgação

 

Refugo Urbano  |  Trupe Dunavô


Uma dupla de palhaços consegue construir uma história de amor enquanto recolhe os restos de objetos e sacos de lixo abandonados na cidade. A palhaça junta tudo o que encontra no lixo para enfeitar sua casinha feita de sucata. O palhaço se perfuma e faz truques de ilusionismo.

(Esteve em cartaz no Sesc Belenzinho em setembro de 2017.)
 

Uma jornada de João e Maria  |  Cia. de Teatro Nóis na Mala

Duas crianças de uma pequena vila do sertão, João e Maria, um dia ouvem uma conversa dos pais sobre abandoná-los por conta da seca e da fome. A decisão dos pais leva João e Maria a entrar em uma jornada cheia de desafios, inimigos e aliados, que os obrigará a fazer suas próprias escolhas.

(Em cartaz no Sesc Bom Retiro, até dia 8 de outubro.)



Foto: Alberto Akel

 


Afetividades


A Princesa e a Costureira  |  Grupo de Teatro Conspiração


Cíntia é uma princesa prometida desde a infância para se casar com Febo. Devido a um encantamento da Fada Madrinha, a princesa só poderia casar-se com seu amor verdadeiro, que seria revelado assim que essa pessoa tocasse em suas costas. Qual não é a surpresa, na idade adulta, ao descobrir que se apaixonou por Isthar, a costureira que faria seu vestido de casamento.

(Esteve em cartaz no Sesc Santo André em setembro.)



Foto: Alexandre Krug
 

A Princesa Errante e o Príncipe Errado  |  Cia. Auspiciosa


Musical infantil que trata de assuntos como identidade de gênero, aceitação da diversidade e de si mesmo. Para isso, transita pelo mundo conhecido dos contos de fada, apropriando-se livremente dos signos já conhecidos e ressaltando a rigidez de certos conflitos

(no Sesc Santo Amaro, dia 1º de outubro, e no Sesc Jundiaí, dia 22 de outubro.)



Foto: Divulgação
 

 

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