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Quadrinhos e gênero

Do papel de coadjuvantes ao posto de protagonistas da nona arte, as mulheres conquistam espaço e diversificam temáticas no cenário das HQs. Apesar de enfrentarem obstáculos motivados, ainda, por preconceitos, as autoras de comics conseguem imprimir voz e estética próprias ao segmento, graças ao espaço de trocas promovido pela internet e ao surgimento de novas editoras e revistas. “Se as mulheres não estão nos espaços institucionalizados das livrarias e das premiações, elas vêm criando seus meios de autopublicação online e conquistando públicos fiéis em blogs, sites, redes sociais e publicações viabilizadas por meio de financiamentos coletivos”, observa a jornalista Gabriela Borges, mestre em Antropologia e criadora da Mina de HQ. Não tão longe do Brasil, essa cena também reverbera na Argentina, onde hoje as quadrinistas publicam em jornais e em revistas especializadas, segundo Mariela Acevedo, pesquisadora da área de comunicação e gênero da Universidad de Buenos Aires e editora da revista Clítoris (em espanhol, o acento fica no i). Para entender melhor essa questão, Borges e Acevedo refletem sobre a representatividade feminina num universo que já foi “clube do Bolinha”.

 

Ilustração: Marcos Garuti


Autoras de quadrinhos: uma breve análise

por Mariela Acevedo


Sempre houve mulheres na cena dos quadrinhos. Aliás, muitas. Fomos necessárias para que eles [os homens] pudessem sobressair: eternas namoradas – doces ou más, estávamos ali para ser testemunhas de suas aventuras, já que o melhor que poderia nos acontecer era esperar, acompanhar e nos permitir ser salvas no momento exato. Isso aconteceu no começo do século 20, quando ser mulher e ser autora de histórias em quadrinhos era uma combinação improvável no cenário.

Até os anos 1980, falar em quadrinhos femininos na Argentina não era falar de autoras, mas de protagonistas desenhadas por homens. Então, para falar da representação das mulheres nas HQs, vale nos perguntarmos: quem narra e de onde narra? As histórias em quadrinhos são uma linguagem de múltiplos fatores: como arte-sequência, elas guardam semelhanças com o cinema; como palavra escrita, são associadas à literatura popular; e como publicação em jornais, converteram-se em produto de consumo de massa, até renascerem – em capa dura – como graphic novel, elas se tornaram “irmãs” da fotografia como fotonovela, associadas ao humor gráfico por se valerem apenas de uma vinheta.

Hoje, as quadrinistas publicam em jornais ou em revistas especializadas. Algumas tiveram seus trabalhos editados e publicados em livros autorais ou foram incluídas em antologias de outras autoras e autores. Mas, como chegamos aqui? Poderíamos listar as pioneiras, o que nos permitiria recuperar parte dessa história esquecida. No entanto, esse ato de justiça pode não alcançar, no final das contas, o objetivo a que aspiramos: o de reconhecer e incorporar à historiografia aquelas que, décadas atrás, abriram caminho para quem hoje está na linha de frente. Antes dessa tarefa arqueológica – sempre necessária e incompleta para demonstrar que existimos –, podemos começar pela reflexão sobre uma maior participação de autoras neste meio nas últimas décadas, e sobre quais são os obstáculos que ainda existem para nós, criadoras.

Paulina Juszko em El Humor de las Argentinas (Editora Biblos, 2000), questionava-se: “Por que existem tão poucas humoristas?”. A autora observava que as entrevistadas para o livro logo se queixavam de discriminação e apontavam: para que “uma mulher pudesse ser aceita nesse meio, ela deveria ter um nível de excelência, enquanto para eles lhes bastava e sobrava a mediocridade”. Quase duas décadas depois, essa frase pode ser corroborada pelo campo do humor gráfico e dos quadrinhos.

Reconhecemos avanços: houve uma proliferação de novas vozes e perspectivas que questionam e apresentam outros tipos de relações entre os gêneros no plano simbólico: espaço de luta por um sentido de práticas e discursos que têm efeito concreto na vida de leitoras e leitores. Além disso, há uma maior quantidade de autoras que disputam reconhecimento nas redes sociais e em publicações profissionais. Mas o fato é que, até hoje, as chances que têm os autores de crescer nesse meio e de melhorar seu estilo com a existência das publicações não é algo que se estende às autoras. Elas só vão chegar lá passando por obstáculos e se demonstrarem ser excepcionais. Dessa forma, os critérios de crítica, que são diferentes em relação ao trabalho de autores, desestimulam a participação da maioria delas.
 

Novas vozes e olhares

Diferentes projetos e espaços tornaram-se ecos da obra de quadrinistas na Argentina nos últimos anos. Isso nos permite perceber uma pluralidade de vozes, olhares e estilos. Entre 2010 e 2013, estive à frente da edição da revista Clítoris, uma publicação que se propunha a imprimir a produção de autoras – mesmo que não fossem exclusivas – que publicavam na internet para gerar uma proposta gráfica seguindo coordenadas feministas.

A revista recuperava a proposta de revistas feministas de comics norte-americanas, como It Ain’t Me, Babe (1970) e Wimmen’s Comix (1972-1992), assim como a experiência recente chilena do Tribuna Feminina Comix (2009-2014), comandada pela autora Melina Rapimán. A revista Clítoris teve quatro edições financiadas por um edital que premiou dez projetos de Nuevas Revistas Culturales (Secretaria de Cultura de la Nación, Argentina, 2010), e, logo depois, se associou à editora independente Hotel de las Ideas, com quem publicou duas antologias em formato de livro: Clítoris. Sex(t)ualidades em Viñetas (2014), e Clítoris. Relatos Gráficos para Femininjas (2017).

Devido à construção desse projeto, em 2016 fui convidada para a segunda edição do evento Lady’s Comics em Belo Horizonte: uma reunião e socialização de estratégias para desenhar, editar e vender nossos trabalhos, para pensar em como promover nossas lutas em quadrinhos. Também conheci colegas cujo trabalho admirava, como o da chilena Supnem, que vinha trabalhando no projeto Tetas Tristes Comics. As organizadoras também tiveram a ótima ideia de nos colocar juntas no mesmo quarto de hotel. E durante três dias idealizamos uma revista de quadrinhos feminista.

Quando voltaram ao Chile, Supnem e suas colegas impulsionaram o festival de autoras feministas Comiqueras. Da minha parte, combinei com outras autoras um espaço de intervenção feminista: Carnes Tolendas – Política Sexual em Viñetas, com o objetivo de articular as demandas do movimento de mulheres heterossexuais, lésbicas e trans com os quadrinhos e o humor gráfico. No começo deste ano, o coletivo internacional de autoras Chicks On Comics se reuniu em Buenos Aires, na sexta edição de uma mostra com sua produção depois de oito anos de trabalho. As integrantes do coletivo realizaram um censo que registrou mais de 300 autoras de quadrinhos que publicam na Argentina – um verdadeiro universo gráfico.

Nesse sentido, uma das mais importantes novidades foi o surgimento de autoras fazendo humor gráfico político, como se pode ver no site Esto es Poco Serio, de Mora Saramson, ou nas colaborações de Nani para Alegría, site de humor político. Outro resultado novo é a chegada ao campo [historietil] de autoras do universo dos quadrinhos feitos por mulheres que não vieram do mundo gráfico, mas que se utilizam do meio para comunicar suas práticas militantes ou identitárias. As experiências são variadas, mas se destacam os trabalhos de Maia Venturini Szarykalo, criadora de Escenas de La Vida Lésbica, e as histórias de Chica Trans, da autora Gaby Binder.

Essas são apenas algumas pinceladas sobre o mundo das criadoras de HQs na Argentina. Nossas experiências têm que ser narradas por nós mesmas, não porque isso garanta que seremos mais bem representadas, mas porque em uma sociedade mais igualitária, onde as experiências das mulheres são justamente valorizadas, temos o direito a ascender aos meios de produção e difusão da linguagem para narrar nossa experiência e gerar sentidos e representações novas e próprias de nossa forma de viver o mundo.

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o fato é que, até hoje, as chances que têm os autores de crescer nesse meio e de melhorar seu estilo com a existência das publicações não é algo que se estende às autoras

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Mariela Acevedo é pesquisadora da área de comunicação e gênero da Universidad de Buenos Aires, militante feminista, editora da revista Clítoris, organizadora das antologias Carnes Tolendas. Política Sexual en Viñetas.

 

 

 

Ilustração: Marcos Garuti


Quadrinhos: uma questão de gênero

por Gabriela Borges


Quadrinhos é coisa de menino? Mulher também lê gibi? Se nós seguimos lutando por direitos iguais na sociedade, o cenário dificilmente seria outro nos quadrinhos: a maioria das mulheres que produzem HQs, e das personagens femininas no mainstream, ainda ocupa um espaço marginalizado em relação ao dos homens. É importante lembrar que as histórias em quadrinhos são um produto da cultura de massa, assim como a TV ou o cinema, e por isso estão pautadas pelas normativas que regulamentam consumo, discursos, sentidos e valores. Sua indústria e seus personagens materializam representações do nosso mundo: o corpo, a personalidade, os desejos, toda a existência feminina, são idealizados por um olhar masculino.

O questionamento desse “feminino ideal” se tornou tão urgente que foi parar na Mulher-Maravilha. Criada em 1942 por William Moulton Marston, a personagem foi considerada nos anos 1960 um símbolo pela igualdade entre homens e mulheres quando surgiu como um contraponto aos super-heróis Batman e Super-Homem, para propagar a paz por meio do amor no pós-guerra. No entanto, revelava uma visão ancorada no discurso masculino e se tornou um símbolo sexual e de submissão ao homem.

Mas o mundo mudou e a Mulher-Maravilha também, como vimos no filme dirigido por Patty Jenkins, o primeiro longa de herói protagonizado por uma mulher – e que, contrariando as apostas de muita gente, arrastou para as salas de cinema milhões de pessoas ao redor do mundo. Vale destacar aqui que hoje temos uma brasileira nos estúdios da DC Comics, Bilquis Evely, desenhando a personagem.

No livro Babe in Arms, de 2015, a quadrinista norte-americana Trina Robbins diz que havia mais mulheres fazendo quadrinhos durante a Segunda Guerra Mundial (na década de 1940) do que em qualquer outra época, por conta do espaço deixado pelos homens que tiveram que ir para a guerra. Só que, quando esses homens voltaram para casa, eles lutaram para ter seus trabalhos antigos de volta, e as mulheres foram encorajadas a voltar para a cozinha, para o casamento, para os filhos. Daí vem a ideia de que quadrinhos não são feitos ou lidos por mulheres, “já que não eram mais produzidas histórias que o público feminino gostava de ler”, escreveu.

O italiano Orestes Del Bueno contou, no prefácio da HQ Valentina, em 1982, que o mundo dos quadrinhos dominicais norte-americanos, cena que aconteceu após a Segunda Guerra, era um mundo masculino. No mesmo ano, Alan Moore, escritor e roteirista inglês, criador de Watchmen e V de Vingança, deu uma entrevista em que afirmou que as mulheres não têm muitas oportunidades de serem notadas e de incluírem uma atitude feminina nos quadrinhos: “A representação do corpo feminino nos quadrinhos tem sido, há muitas gerações, um ‘lugar’ erotizado, de vigilância e controle sobre as sexualidades masculinas e femininas”.
 

Movimento feminista

A produção de quadrinhos acompanhou as ondas do feminismo ao longo da história. A partir dos anos 1960, durante a segunda onda do movimento feminista, quando muitas sociedades começaram a refletir sobre algumas concepções racistas ou machistas, surgiram novos espaços e oportunidades para as mulheres, que passaram a publicar HQs que representam questões sociais. Foi quando a francesa Claire Bretécher se tornou uma das primeiras a se destacar em grandes publicações impressas pelo mundo, num mercado dominado por homens.

Na mesma época, a brasileira Ciça publicava seus quadrinhos nos jornais brasileiros durante a ditadura militar. Em 1970, Trina Robbins foi pioneira ao abordar abertamente temas como aborto e homossexualidade e lutar por espaço na contracultura norte-americana, principalmente na produção de São Francisco.

A lista é grande e foi crescendo: Marjane Satrapi contou a história do Irã, assim como Maitena falou de relacionamentos na Argentina, Alison Bechdel publicou o primeiro romance lésbico em quadrinhos, nos Estados Unidos, Posy Simmonds fez sucesso com suas tiras no The Guardian, na Inglaterra, Chica Umino, com seus mangás no Japão. No Brasil, hoje temos autoras se destacando nacional e internacionalmente, como Sirlanney Nogueira, Cris Peter, Lu Cafaggi, LoveLove6, Luli Penna, Bianca Pinheiro e Chiquinha.
 

Mercado editorial

É preciso que as editoras e todo o mercado reconheçam que quadrinhos é, sim, coisa de mulher, de criança, de adulto, de todo mundo. Com temas cotidianos ou de militância, as mulheres vêm levando para as HQs o olhar feminino pela igualdade de direitos entre todos os gêneros.

No BAMQ!, banco de dados organizado pelo site Lady’s Comics, há o cadastro de quase 100 mulheres quadrinistas. O Guia dos Quadrinhos das Minas da Internet, organizado pelo site Minas Nerds, tem cadastradas quase 100 páginas individuais e coletivas na lista, que não para de crescer. Há muitas mulheres produzindo quadrinhos no Brasil e no mundo. O problema está na invisibilização desses trabalhos.

As transgeneridades e a diversidade sexual também são pouco abordadas e, quando isso acontece, também acabam ficando restritas a uma interpretação masculina em histórias de autores consagrados ou à produção underground. Um exercício bacana de fazer é: quando você for a uma livraria, preste atenção no tamanho da prateleira de quadrinhos em relação aos outros gêneros. Destes, quais são nacionais? Do que sobra, quais são feitos por mulheres?

Há quatro fatores importantes que vêm contribuindo muito para a promoção desses trabalhos: as coletâneas femininas, a popularização das graphic novels, a força da internet e o esforço de algumas editoras para publicar uma maior diversidade de autores. Trina Robbins foi, mais uma vez, pioneira nos Estados Unidos nos anos 1970 ao reunir os trabalhos de mulheres em It Ain’t Me, Babe e na antologia Wimmen’s Comix, publicada até 1992. Na mesma época da contracultura, na Europa havia também a revista AH!NANA. Hoje, no Brasil, essas coletâneas são decisivas na promoção dos trabalhos, como o Zine XXX.

As graphic novels publicadas por grandes editoras atraíram um público que não estava acostumado a ler histórias romanceadas em quadrinhos e abriram espaço para livros produzidos por mulheres. Já a internet deu espaço, voz e alcance às autoras. Se as mulheres não estão nos espaços institucionalizados, das livrarias e das premiações, elas vêm criando seus meios de autopublicação online e conquistando públicos fiéis em blogs, sites, redes sociais e publicações viabilizadas por meio de financiamentos coletivos. Algumas editoras declaram publicamente o empenho em publicar autoras mulheres, como as brasileiras Nemo, Plot! e Lote 42.

Se a busca por representatividade nos quadrinhos é tão difícil quanto a busca por representatividade na vida real, o importante é haver cada vez mais espaço para autoras cis e transgênero e para trabalhos que remetam ao feminino, ao prazer, à liberdade e à igualdade em todos os contextos e universos.

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Com temas cotidianos ou de militância, as mulheres vêm levando para as HQs o olhar feminino pela igualdade de direitos entre todos os gêneros

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Gabriela Borges é jornalista, mestre em Antropologia pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – Flacso Argentina – e criadora das páginas de redes sociais Mina de HQ – @minadehq – para dar visibilidade ao trabalho de mulheres cartunistas e às diferentes formas de representação de gênero nas HQs do Brasil e do mundo.

 

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