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Para além do erudito e do popular

Foto: Igor Almeida

 

AO ASSOCIAR ELEMENTOS DA CULTURA NORDESTINA,
COMO A LITERATURA DE CORDEL, A REFERÊNCIAS DE OBRAS CLÁSSICAS,
ARIANO SUASSUNA PÔS EM PRÁTICA UM PROJETO DE ARTE NACIONAL

 

Realista esperançoso. Era assim, na expressão da dialética, que Ariano Suassuna se percebia. Nem otimista, nem pessimista. Com imaginação sem freio, conseguia atrelar seu universo criativo à realidade que se apresentava. Tudo para erigir uma obra pouco afeita a comparações, mas de grande capacidade de renovação, na poesia, no romance e no teatro. O ano de 2017, quando completaria 90 anos, fica como marco temporal do autor e suas realizações.

Nascido em João Pessoa, na Paraíba, em 1927, Suassuna mudou-se para o Recife em 1942, anos após o assassinato do pai, João Suassuna, motivado por razões políticas no contexto da Revolução de 1930. Ainda na Faculdade de Direito, criou o Teatro do Estudante de Pernambuco, no qual, em 1948, montou a primeira peça, Cantam as Harpas de Sião (ou O Desertor de Princesa).

Foi na adolescência que escreveu o primeiro conto, e costumava dizer que era um assassino implacável, pois, se o personagem não dava certo, não hesitava em matá-lo. Quem acompanhou de perto os anos de formação do escritor foi sua prima, Ana Rita Suassuna. Especialista em Educação pela Universidade Católica de Pernambuco e autora de Gastronomia Sertaneja – Receitas que Contam Histórias (2010), ela conta que a intimidade entre ambos se construiu neste período: “[Ariano] Tinha maneira simples e divertida de tratar acontecimentos cotidianos. Marcou a vida pessoal pela coerência, simplicidade, solidariedade, lealdade, bom humor, decência”, relembra.

“Para ele, o sertão era considerado ‘Território Sagrado’. Contemporâneo de Rachel de Queiroz e de Guimarães Rosa no Conselho Federal de Cultura, num convívio repleto de ‘Irmandade Sertaneja’, chegavam a trocar bilhetinhos jocosos em ocasiões mais formais”, recorda a pesquisadora, que também tem o sertão como matéria-prima de seu trabalho, no qual a cultura local é abordada na perspectiva da gastronomia.
Os anos 1950 foram permeados de montagens teatrais. Formado em Direito e exercendo a profissão, levou aos palcos textos importantes na história do teatro, como O Rico Avarento (1954) e o clássico O Auto da Compadecida (1955), que, recontado na TV e no cinema, simboliza o encontro máximo entre o autor e o público. Só o filme, lançado em 2000 (dirigido por Guel Arraes), levou mais de 2 milhões de cinéfilos às salas de cinema. Muda a plataforma, mas o impacto continua o mesmo. O crítico teatral Sábato Magaldi afirmou que o texto de O Auto da Compadecida era o mais popular do moderno teatro brasileiro.  

 

Mais do que original
Segundo o dramaturgo Bráulio Tavares, mais do que ser original, Ariano Suassuna concebeu a estética popular de uma forma “individual”. “A palavra original dá a ideia errada de que o artista está fazendo uma coisa que ninguém jamais fez”, explica Tavares, autor do livro ABC de Ariano Suassuna (2007, edição esgotada). “Individual quer dizer que ele está fazendo uma coisa que só ele poderia ter feito, com a combinação de fatos da sua biografia, da sua formação, dos canais de atuação que ele escolheu.”

Um exemplo é o Movimento Armorial, fundado por Ariano Suassuna, que propôs uma arte autêntica brasileira fundamentada na origem popular. Tal movimentação teórica refletiu em campos diversos, como na literatura, na dança, na política e na música. 

 

Arte e política
A professora Roberta Marques, do curso de Dança e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cita três experiências de gestão em que Ariano Suassuna tentou investir na construção da dança armorial. “Como secretário de Cultura entre 1974 e 1979, na gestão do então coronel Antônio Farias, criou o grupo Balé Armorial do Nordeste”, relata a especialista. Com a destituição desse grupo, teve vez, ainda nessa gestão, a criação e fundação do Balé Popular do Recife, existente ainda hoje, mas numa vida independente de gestão. “Em 1998, fundou o Grupo Grial, também existente até hoje, uma experiência mais duradoura e, ao que tudo indica, de resultados mais próximos do que Suassuna idealizava para uma dança armorial, já que os resultados até então obtidos pelo Balé Armorial e pelo Balé Popular não o tinham convencido”, conta Roberta.

Outra experiência na área da gestão pública se deu a partir de 2007, quando Suassuna atuou como secretário especial de Cultura, no governo de Eduardo Campos. O direcionamento das ações foi, segundo Roberta, “investir na realização de aulas-espetáculo”, envolvendo música, teatro, dança, “para viajar pelo interior do estado e explicar à população preceitos estéticos e culturais e, de certa forma, estabelecer uma pedagogia de apreciação estética”. 

 

Foto: Alexandre Nobrega

Bom de ler e ouvir
Na ficção, escreveu os livros Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1976), este último considerado pelo autor um “romance armorial-popular brasileiro”.

Fora das páginas dos livros, são famosas as palestras e aulas-espetáculos de Suassuna, muitas delas registradas em vídeos na internet. Com estilo próprio, o intelectual esbanjava humor e agilidade para pinçar do próprio repertório um conhecimento vasto independentemente do tema. Da teoria da evolução à análise de músicas da banda Calypso e do seu gosto por “histórias de doidos”, tudo cabia no seu radar e era passível de argumentação.

Dantas Suassuna, filho de Ariano, confirma que o pai indicou caminhos que serviram de trilha para sua formação artística, “a arte rupestre, as gravuras populares e os altares ex-votivos”. Dantas é artista visual e responsável pelo espólio do escritor. Assim como o pai, também busca inspiração na história e na cultura nordestina para realizar seu trabalho.

A atuação de Suassuna como professor e gestor, além de toda a produção artística, de acordo com Bráulio Tavares, reforça seu modo de ver a arte, ou seja, “uma maneira de tratar algumas das questões cruciais da vida: a educação, a fome, o poder, o dinheiro”, assuntos recorrentes em sua dramaturgia e literatura. O diálogo e o embate crítico de ideias fizeram parte de sua trajetória pública. “Ariano foi um artista e um formador de artistas”, opina. Lembrando que em seus últimos anos de vida (a morte ocorreu em 2014, em consequência de uma parada cardíaca provocada por hipertensão intracraniana), por meio de suas palestras e viagens pelo Brasil, “levou muitos jovens de 20 anos a se interessar pelos temas que ele botava em discussão”. 

 

Minha poesia é pouco conhecida,
mas sempre a pratiquei e considero
a poesia fonte profunda de tudo
o que escrevo

Acho que o João Grilo é, para mim,
o que a Emília era para
o Monteiro Lobato

O otimista é um tolo.
O pessimista, um chato.
Bom mesmo é ser um
realista esperançoso

Quem gosta de ler
não morre só

Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 23 de julho de 2014.

 

Foto: Igor Almeida

 

 

Pensamento atemporal

Foto: Matheus José Maria


Trajetória intelectual e obra de Ariano Suassuna ganharam destaque no teatro e em debates sobre o Movimento Armorial

Suassuna – O Auto do Reino do Sol é uma homenagem da Companhia Barca dos Corações Partidos, que esteve em cartaz no Sesc Vila Mariana, em setembro, e na unidade de Santos, nos dias 19 e 20 de outubro. O musical traz canções inéditas de Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho, com encenação de Luiz Carlos Vasconcelos. O texto de Bráulio Tavares costura características de seu homenageado, Ariano Suassuna, defendendo a valorização da cultura brasileira.

Já no Centro de Pesquisa e Formação, a atividade Perspectivas tematizou um ciclo dedicado às dimensões e expressões artísticas que integraram a trajetória intelectual do escritor paraibano, diretamente relacionadas ao processo de formação e constituição do Movimento Armorial, fundado por ele em 1970 com a intenção de realizar uma arte autêntica brasileira baseada nas raízes populares. 

 

Movimento Armorial

Para Bráulio Tavares, trata-se do único movimento artístico importante a nascer dentro da universidade pública brasileira. O movimento armorial surgiu de uma inspiração estética e afetiva, como uma nova maneira de enxergar o Nordeste, de enxergar o mundo e de recriar suas formas.

Suassuna associava o movimento armorial a expressões diversas: literatura de cordel, música de viola, rabeca ou pífano, que acompanham seus cantares, a xilogravura que ilustra suas capas, assim como o espírito e a forma das artes e espetáculos populares. O ideário do pensador se deslocou para literatura, política, dança e música. Ao recriar esse universo, Suassuna obteve reconhecimento nacional e aumentou sua influência na cultura brasileira.

 

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